Código de Conduta para Ministros dos Tribunais Superiores: Integridade, Governança Judicial e Legitimidade da Jurisdição Constitucional

08/12/2025 às 18:31

Resumo:


  • O código de conduta para ministros dos tribunais superiores é uma proposta importante para a integridade e legitimidade da jurisdição constitucional no Brasil.

  • A análise comparada com outros países, como Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido e Canadá, mostra que a adoção de códigos de conduta é uma tendência consolidada entre as cortes constitucionais contemporâneas.

  • O compliance judicial, como expressão contemporânea da governança do Poder Judiciário, é fundamental para garantir a transparência, integridade e imparcialidade na atuação dos ministros dos tribunais superiores.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Código de Conduta para Ministros dos Tribunais Superiores: Integridade, Governança Judicial e Legitimidade da Jurisdição Constitucional

Resumo

O presente artigo examina, sob perspectiva dogmática e institucional aprofundada, a proposta de criação de um código de conduta aplicável aos ministros dos tribunais superiores, conduzida pelo presidente do STF e do CNJ. Partindo de uma interpretação sistemática da Constituição de 1988, demonstra-se que a integridade judicial constitui elemento estrutural da legitimidade da jurisdição constitucional, razão pela qual mecanismos formais de autorregulação ética são não apenas possíveis, mas constitucionalmente exigíveis. A análise integra as funções típica e atípica do Poder Judiciário, evidenciando que a jurisdição depende de ambiente de governança adequado, capaz de assegurar imparcialidade objetiva, transparência, prevenção de riscos reputacionais e distanciamento institucional perante interesses privados. Ao dialogar com experiências comparadas, especialmente Alemanha, Estados Unidos, Reino Unido e Canadá, o texto revela que a adoção de códigos de conduta é tendência consolidada entre cortes constitucionais contemporâneas. Conclui-se que o código de conduta, no Brasil, representa mecanismo de aperfeiçoamento institucional e de fortalecimento da confiança pública, conferindo densidade normativa ao princípio republicano da moralidade e assegurando condições para o exercício legítimo da jurisdição constitucional.

Palavras-chave: Código de conduta judicial; Integridade; Compliance judicial; Imparcialidade objetiva; Governança judicial; STF; CNJ; Jurisdição constitucional.

Abstract

This article provides an in-depth doctrinal and institutional analysis of the proposal to implement a code of conduct for the Justices of Brazil’s superior courts, an initiative led by the President of the Federal Supreme Court and of the National Council of Justice. Drawing on a systematic interpretation of the 1988 Constitution, the study argues that judicial integrity is a structural component of the legitimacy of constitutional adjudication, making formal ethical self-regulation not only permissible but constitutionally necessary. By examining the typical and atypical functions of the Judiciary, the article demonstrates that the exercise of jurisdiction requires a governance environment that guarantees objective impartiality, transparency, risk prevention and institutional distance from private interests. The comparative analysis, referring to systems such as Germany, the United States, the United Kingdom and Canada, shows that codes of judicial conduct have become a consolidated trend among modern constitutional courts. It concludes that the Brazilian initiative is a key instrument for institutional improvement and for strengthening public trust, giving normative density to the republican principle of integrity and enabling the legitimate exercise of constitutional jurisdiction.

Keywords: Judicial code of conduct; Judicial integrity; Judicial compliance; Objective impartiality; Judicial governance; Brazilian Supreme Court; National Council of Justice; Constitutional adjudication.

Sumáriro: 1. Introdução. 2. Fundamentos constitucionais do poder normativo e da integridade judicial. 3. Função típica, função atípica e a necessidade dogmática de integridade sistêmica. 4. Compliance judicial como expressão contemporânea da governança do Poder Judiciário. 5. Direito comparado e a convergência internacional em torno da ética judicial. 6. Conclusão.

1. Introdução

A discussão contemporânea acerca da criação de um código de conduta específico para os ministros dos tribunais superiores emerge de um movimento institucional cujo amadurecimento se desenvolve ao longo dos últimos anos e alcança, no presente momento, densidade suficiente para configurar um marco de autorregulação do Poder Judiciário. Embora se articule publicamente no contexto da gestão do ministro Edson Fachin, os elementos que fundamentam esse debate são anteriores e refletem transformações profundas no modelo de governança judicial adotado nas democracias constitucionais.

O aumento exponencial da visibilidade pública do Supremo Tribunal Federal, especialmente após a consolidação de sua posição como órgão central de arbitragem das tensões políticas e sociais, produz um fenômeno típico das jurisdições constitucionais: a transposição do tribunal de vértice do espaço tradicional de tecnicidade para o espaço da esfera pública ampliada. Em tal cenário, cada gesto extrajudicial dos ministros — desde entrevistas, palestras, viagens, participação em eventos privados, até manifestações em redes sociais — adquire relevo institucional e simbólico. Essa mudança de escala e de exposição produz inevitável intensificação da atenção social, midiática e política dirigida ao comportamento dos magistrados, gerando a necessidade de instrumentos mais rigorosos de autorregulação e integridade.

As reportagens que relatam a iniciativa de Fachin registram que o ministro vem trabalhando na matéria desde o início de sua gestão, em diálogo com ministros do STF e presidentes dos demais tribunais superiores, revelando que o debate não é episódico, mas resultado de um processo de maturação institucional. A compreensão de que a integridade judicial exige normatividade clara, estável e formalizada corresponde a uma tendência global de fortalecimento da legitimidade institucional das supremas cortes. Ao mesmo tempo, a menção explícita ao Observatório da Integridade e Transparência do CNJ, com seus eixos temáticos voltados à ética, governança, transparência remuneratória e conflitos de interesse, demonstra que o Judiciário brasileiro reconhece, com crescente clareza, a necessidade de desenvolver mecanismos próprios de governança ética.

A emergência desse debate decorre também da percepção de que a legitimidade das decisões de uma corte constitucional não se esgota na correção jurídica dos fundamentos invocados, mas se ancora em elementos extrajurídicos, como a confiança pública, a reputação institucional e a aparência de imparcialidade. A intensificação do escrutínio público — fenômeno típico das democracias de alta circulação informacional — produz, por conseguinte, maior sensibilidade a possíveis riscos reputacionais e a comportamentos extraprocessuais capazes de fragilizar a autoridade decisória da Corte. É justamente essa transição sociológica que intensifica a demanda por um código de conduta: a ordem constitucional transformou o tribunal em protagonista político-institucional, e essa centralidade exige padrões mais elevados de integridade.

A proposta de criação de um código de conduta não surge, portanto, como iniciativa isolada, mas como expressão normativa de uma fase mais avançada do constitucionalismo brasileiro. Trata-se de reconhecer que, embora o Judiciário detenha independência formal e autonomia funcional, ele está inserido em um ambiente institucional que exige mecanismos de autorregulação compatíveis com sua crescente visibilidade e protagonismo. Em outras palavras, quanto maior o poder de uma instituição, maior deve ser sua capacidade de governar a si mesma segundo padrões éticos objetivos — e é precisamente esse o núcleo do debate.

Por isso, a iniciativa de Fachin encontra ambiente de legitimidade ampliada: ela não apenas responde a preocupações pontuais sobre condutas específicas, mas reflete movimento mais profundo de alinhamento do Judiciário brasileiro ao paradigma contemporâneo de integridade pública. O STF, ao assumir o papel de guardião da Constituição, necessita não apenas de autoridade jurídica, mas de autoridade moral; não apenas de independência, mas de autocontenção; não apenas de imparcialidade real, mas também de aparência inequívoca de imparcialidade. A emergência institucional do debate ético, assim, é a resposta natural ao estágio alcançado pela própria democracia constitucional brasileira.

2. Fundamentos constitucionais do poder normativo e da integridade judicial

A sustentação jurídico-dogmática da criação de um código de conduta para ministros dos tribunais superiores repousa sobre um conjunto de dispositivos constitucionais que, interpretados sistematicamente, conferem ao Poder Judiciário não apenas a competência, mas o dever de estruturar mecanismos internos de integridade, transparência e governança. O modelo constitucional brasileiro organiza o Judiciário como poder dotado de autonomia normativa, administrativa e correicional, condição indispensável para o exercício independente da jurisdição. Essa autonomia, no entanto, não implica ausência de padrões éticos; ao contrário, pressupõe que a própria instituição desenvolva instrumentos de autorregulação capazes de assegurar a legitimidade de seu exercício.

O ponto de partida é o art. 96 da Constituição, que assegura aos tribunais competência para elaborar seus regimentos internos, disciplinando seu funcionamento, organização, procedimentos e, por derivação lógica, comportamentos institucionais de seus membros. A normatividade regimental não se limita à organização administrativa ou processual; ela alcança a conformação de deveres funcionais diretamente relacionados à integridade e ao decoro. A jurisprudência do próprio Supremo Tribunal Federal reconhece a amplitude dessa competência, admitindo que regimentos internos podem disciplinar não apenas aspectos internos de tramitação processual, mas também matérias correlatas à governança e ao exercício da função judicial, desde que não contrariem a lei.

Outro eixo relevante é o art. 103-B, que institui o Conselho Nacional de Justiça, órgão de controle administrativo e disciplinar do Judiciário. O CNJ recebeu da Constituição não apenas poderes correicionais, mas também competência normativa para expedir atos regulamentares destinados à realização de suas atribuições. A criação do Observatório da Integridade e Transparência — mencionado nos documentos jornalísticos — é manifestação explícita desse poder normativo secundário, mediante o qual o CNJ estrutura políticas que reforçam a integridade da magistratura. O surgimento de eixos temáticos como ética, transparência remuneratória, governança e conflitos de interesse revela que o Judiciário já reconhece a imprescindibilidade de mecanismos formais de integridade, cuja culminação natural é a adoção de um código de conduta.

A esse quadro soma-se a incidência direta do art. 37 da Constituição, que exige de toda Administração Pública, inclusive o Poder Judiciário, a observância dos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. A moralidade administrativa, enquanto princípio estruturante, não se resume à proibição de atos ilícitos, mas incorpora um conjunto de deveres positivos — transparência, integridade, imparcialidade objetiva — que extrapolam a mera ausência de desvios. A dogmática administrativa contemporânea consolidou a tese de que a moralidade é um dever de conformidade ética, não apenas uma vedação de comportamentos fraudulentos. Assim, a instituição de um código de conduta judicial é manifestação direta do princípio da moralidade constitucional.

A esses dispositivos acresce o art. 93, que trata do Estatuto da Magistratura. Embora a lei complementar exigida para sua regulamentação permaneça pendente, sua ausência não impede que o Poder Judiciário discipline, por regimento, regras éticas específicas, justamente porque tais regras não invadem matéria reservada, mas complementam aspectos já reconhecidos como de autogestão. A lacuna legislativa, longe de impedir a normatização, reforça a necessidade de que os próprios tribunais se adiantem na construção de parâmetros éticos mínimos, sobretudo diante da complexidade contemporânea das relações institucionais em que se inserem.

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Dessa interpretação sistemática, emerge uma premissa dogmática essencial: a integridade judicial não é acessória, mas elemento estrutural da jurisdição. Não se trata de mera questão administrativa ou organizacional. A integridade é componente constitucional da legitimidade do Poder Judiciário. Ela assegura que a função típica da jurisdição seja exercida em ambiente de confiança, neutralidade e respeito da ordem republicana. Para preservar essa função, a Constituição outorgou aos tribunais poderes normativos, administrativos e correicionais necessários para garantir sua própria integridade.

Assim, a criação de um código de conduta não afronta a independência judicial, pois não condiciona o conteúdo das decisões. Ao contrário, protege e reforça essa independência ao estabelecer barreiras objetivas contra comportamentos que possam suscitar dúvidas razoáveis sobre a neutralidade do julgador. O direito comparado demonstra que cortes constitucionais maduras utilizam códigos de conduta não como instrumentos de restrição, mas como mecanismos de reforço da confiança social e de blindagem contra pressões externas.

A dogmática constitucional contemporânea, especialmente influenciada pela teoria da integridade (Dworkin) e pela imparcialidade objetiva (proveniente da jurisprudência da Corte Europeia de Direitos Humanos), reconhece que a legitimidade da jurisdição depende da coerência entre a conduta institucional do julgador e os valores constitucionais subjacentes ao exercício da magistratura. Nessa perspectiva, códigos de conduta não são opcionais; são instrumentos indispensáveis de densificação normativa do próprio princípio republicano.

O poder normativo dos tribunais, o dever de governança imposto ao CNJ, a moralidade administrativa como princípio estruturante e a necessidade de integridade como elemento intrínseco da função jurisdicional compõem, assim, o alicerce constitucional que legitima e exige a adoção de um código de conduta para ministros dos tribunais superiores. A iniciativa proposta no âmbito do STF não apenas encontra respaldo nesses fundamentos; ela os realiza em sua máxima expressão dogmática.

3. Função típica, função atípica e a necessidade dogmática de integridade sistêmica

A compreensão rigorosa da pertinência de um código de conduta aplicável aos ministros das Cortes superiores exige a análise dogmática das funções que o Poder Judiciário exerce no arranjo constitucional. A separação de Poderes no Brasil não se estrutura sob compartimentos estanques, mas sim a partir de funções típicas e atípicas que se entrelaçam, condicionando-se reciprocamente e produzindo um modelo de atuação institucional no qual a legitimidade de cada exercício funcional depende da integridade estrutural do órgão. No Judiciário, essa característica assume relevo singular, dada a natureza contramajoritária e contrafática de muitas de suas decisões.

A função típica, a jurisdição, consiste no exercício da autoridade estatal para dizer o direito e impor soluções vinculantes a conflitos concretos e abstratos. No constitucionalismo contemporâneo, essa função ganhou densidade política e simbólica inaudita. Tribunais constitucionais passaram a decidir questões que ultrapassam o domínio estritamente jurídico, influenciando a formulação de políticas públicas, redefinindo a compreensão de direitos fundamentais, modulando crises institucionais e corrigindo distorções produzidas pelo sistema político. A jurisdição constitucional tornou-se, assim, uma atividade cujo impacto ultrapassa as partes e irradia-se para a sociedade inteira. Isso produz uma alteração fundamental: a legitimidade da decisão judicial deixa de repousar exclusivamente na correção técnica de seus fundamentos e passa a depender também da confiança pública na imparcialidade e na integridade da instituição que decide.

É nesse ponto que a imparcialidade objetiva, desenvolvida pela Corte Europeia de Direitos Humanos e incorporada à dogmática brasileira, revela sua força estruturante. O julgador não deve apenas ser imparcial, mas também parecer imparcial. A aparência de neutralidade — que se projeta a partir da conduta extrajudicial, da distância institucional em relação a interesses privados, da transparência de vínculos e da ausência de comportamentos ambíguos — passa a integrar o conteúdo normativo do devido processo legal. A função típica, portanto, é diretamente dependente de um ambiente institucional de integridade: ela se fragiliza quando os julgadores, por suas ações externas, se expõem a riscos reputacionais capazes de comprometer a confiança na neutralidade decisória.

Esse cenário revela o papel essencial da função atípica normativa. Ao elaborar seu regimento interno ou códigos correlatos, o tribunal disciplina não apenas o processo judicial, mas também a conduta institucional de seus membros. Trata-se de expressão do poder de autogoverno, por meio do qual o Judiciário estrutura o seu próprio arcabouço de integridade. A normatividade ética, ao estabelecer padrões de comportamento extrajurisdicional, não constitui ingerência na atividade decisória, mas sua salvaguarda. É na esfera normativa interna que o Judiciário previne a deterioração da autoridade simbólica que sustenta sua capacidade de decidir.

Além da função normativa, a função atípica administrativa exerce papel decisivo na compreensão do fenômeno. O Judiciário moderno não é apenas um órgão de julgamento; é também gestor de recursos, de pessoas, de infraestrutura, de tecnologias e de relações institucionais. Essa dimensão administrativa coloca o tribunal em contato com atores privados, convites para eventos, contratos, convenções institucionais e ambientes potencialmente suscetíveis a conflitos de interesse. A governança administrativa, quando desprovida de padrões claros de integridade, pode comprometer a autoridade da função típica ao gerar percepções públicas de promiscuidade institucional ou dependência indevida.

Por sua vez, a função atípica correicional, exercida pelo Conselho Nacional de Justiça, funciona como guardiã da integridade sistêmica do Judiciário. O CNJ, ao estabelecer políticas de integridade e mecanismos de accountability, atua como instância de compliance judiciário, prevenindo a deterioração do ambiente institucional e fortalecendo a confiança pública. A criação do Observatório da Integridade e Transparência é expressão dessa dimensão correicional, pois sistematiza riscos e propõe diretrizes capazes de orientar a conduta dos magistrados segundo parâmetros republicanos.

Essas três funções — normativa, administrativa e correicional — convergem para uma mesma conclusão: o Judiciário não exerce apenas uma função jurídica; exerce também uma função institucional que requer governança ética. A integridade passa a constituir elemento transversal que condiciona o desempenho de todas essas funções. A jurisdição, enquanto função típica, depende da credibilidade construída pelas funções atípicas. Assim, quando o tribunal se autorregula por meio de códigos de conduta, está, em rigor, fortalecendo a própria jurisdição. A integridade não limita a independência judicial; ela a viabiliza. A ausência de padrões objetivos de conduta extrajudicial expõe o julgador a riscos que, ainda que não produzam parcialidade real, são suficientes para comprometer a legitimidade de suas decisões.

O que se depreende desse arranjo funcional é uma compreensão dogmática sofisticada: o código de conduta é instrumento de integração entre as funções típicas e atípicas do Poder Judiciário. Ele assegura a coerência entre a atividade decisória e o comportamento institucional, garantindo que o tribunal, ao exercer o poder de julgar, seja percebido como instância neutra, íntegra e distinta de interesses privados ou políticos. Assim, a integridade deixa de ser acessório moral e torna-se elemento constitucional da estrutura do Poder Judiciário.

4. Compliance judicial como expressão contemporânea da governança do Poder Judiciário

A incorporação da lógica do compliance ao Poder Judiciário representa uma das transformações mais significativas do constitucionalismo institucional contemporâneo. Embora originado no setor privado, como mecanismo destinado a assegurar conformidade normativa, gestão de riscos e prevenção de ilícitos, o compliance evoluiu para se tornar modelo de governança aplicável a instituições públicas — e, de modo especial, àquelas cujo funcionamento depende da confiança social em sua neutralidade e independência, como ocorre com as cortes constitucionais. No âmbito do Judiciário, o compliance não se configura como simples transplante terminológico, mas como desenvolvimento natural de exigências constitucionais vinculadas à moralidade administrativa, à transparência e à legitimidade da jurisdição.

O primeiro ponto a destacar é que o Judiciário, diferentemente do setor privado, não é orientado pela maximização de resultados econômicos, mas pela realização de valores republicanos. Isso significa que, quando se fala em compliance judicial, não se trata de assegurar conformidade com metas financeiras ou estratégicas, mas com princípios estruturantes do Estado de Direito: imparcialidade, integridade, impessoalidade e accountability. A lógica do compliance, quando transposta ao Judiciário, adquire função epistemológica distinta: deixa de ser mecanismo de autocontrole empresarial e passa a operar como sistema de proteção da credibilidade institucional do órgão responsável por exercer o poder de dizer o direito.

Nesse sentido, o Observatório da Integridade e Transparência criado no âmbito do CNJ, conforme relatado nas reportagens, constitui marco institucional de grande relevância. Seus eixos temáticos — ética, transparência remuneratória, prevenção de conflitos de interesse, governança, uso de tecnologia e mitigação de riscos — reproduzem, adaptados ao contexto público, os pilares clássicos dos programas de compliance. A diferença fundamental é que, no Judiciário, tais mecanismos assumem função constitutiva: eles não apenas previnem desvios, mas preservam a integridade da jurisdição enquanto poder contramajoritário.

A imbricação entre compliance judicial e governança pública revela-se mais claramente quando se observa que tribunais superiores interagem, cada vez mais, com diversos atores — setores econômicos, organismos internacionais, universidades, entidades de classe, organizações da sociedade civil — ampliando a exposição dos ministros a riscos reputacionais. Em tal ambiente, comportamentos extrajudiciais que outrora eram desprovidos de relevância institucional passam, hoje, a possuir significado jurídico-político expressivo. Participações em eventos patrocinados, viagens financiadas por terceiros, remunerações por palestras, relações informais com atores estratégicos e manifestações públicas potencialmente sensíveis se convertem, em democracias de alta visibilidade, em vetores de risco que devem ser mapeados, monitorados e regulados.

É nesse ponto que o compliance judicial assume sua importância dogmática. A gestão de riscos, que constitui elemento essencial da estrutura de integridade, deixa de ser ferramenta opcional e passa a integrar a função administrativa do tribunal. Risco reputacional não é mera externalidade simbólica: é fator capaz de alterar a percepção pública de imparcialidade, influenciar a recepção social das decisões judiciais, fragilizar a autoridade simbólica da Corte e, por conseguinte, comprometer o próprio exercício da jurisdição constitucional. Um tribunal que decide questões de alta sensibilidade política não pode prescindir de ferramentas que reduzam tais riscos.

O código de conduta, nesse contexto, opera como instrumento normativo de primeiro nível dentro do programa mais amplo de integridade judicial. Ele não se limita a enunciar recomendações morais; estabelece padrões objetivos cuja observância pode ser fiscalizada pelo CNJ e cuja racionalidade se vincula diretamente à proteção da função típica da jurisdição. A normatividade ética, ao identificar condutas permitidas, proibidas ou condicionadas, cumpre função preventiva: evita que comportamentos extrajudiciais comprometam a confiança pública no tribunal e garante que a instituição permaneça distante de pressões externas ou associações indevidas.

A racionalidade do compliance judicial é, portanto, dupla. De um lado, ele assume função garantista, ao proteger a independência judicial contra interferências externas e internas. De outro, cumpre função republicana, ao assegurar que o tribunal se comporte como instituição exemplar em termos de transparência e integridade. A Corte, ao adotar padrões mais elevados de conduta, reafirma seu compromisso com os valores constitucionais que lhe incumbe proteger.

Além disso, o direito comparado confirma que a adoção de mecanismos formais de integridade judicial constitui tendência consolidada. A Suprema Corte dos Estados Unidos, após resistir por décadas, aprovou em 2023 seu primeiro Código de Conduta, reconhecendo que a ausência de padrões formais fragilizava sua autoridade institucional. A Corte Constitucional alemã opera, há muito, sob rígidos padrões de autocontenção que serviram de referência explícita para a proposta apresentada por Fachin. Tribunais do Reino Unido, do Canadá e de outras democracias consolidadas possuem guias de conduta destinados a prevenir conflitos de interesse, promover transparência e proteger a aparência de imparcialidade.

Com isso, percebe-se que o compliance judicial não é moda passageira, tampouco importação acrítica. É expressão de um movimento global que reconhece que tribunais constitucionais, ao exercerem poder de altíssima relevância institucional, precisam de arcabouço de integridade proporcional ao alcance de suas funções. A integridade não é atributo decorativo, mas condição de legitimidade.

Em síntese, o compliance judicial é instrumento de governança que reforça a autoridade do Poder Judiciário no paradigma democrático contemporâneo. Ele impede a erosão da confiança pública, reduz riscos sistêmicos, protege a independência judicial e densifica o princípio republicano da moralidade. Ao adotar um código de conduta como núcleo normativo desse sistema, o STF e o CNJ não inovam arbitrariamente, mas realizam passo necessário em direção a uma Justiça mais íntegra, transparente e confiável.

5. Direito comparado e a convergência internacional em torno da ética judicial

(versão amplamente expandida)

A análise comparada revela que o desenvolvimento de códigos de conduta aplicáveis a ministros de tribunais constitucionais ou supremos não é fenômeno isolado nem brasileiro; trata-se de tendência global consolidada, associada ao amadurecimento das democracias constitucionais e à crescente visibilidade pública das Cortes de vértice. Em sistemas nos quais a jurisdição constitucional desempenha papel central na proteção dos direitos fundamentais, na mediação de crises políticas e na definição dos limites do poder, a integridade dos magistrados e a aparência de imparcialidade tornam-se elementos indispensáveis ao funcionamento do Estado de Direito.

A Suprema Corte dos Estados Unidos constitui exemplo paradigmático. Por mais de dois séculos, resistiu à formalização de um código de ética próprio, sob o argumento tradicional de que a independência judicial seria suficiente para garantir a integridade da Corte. Entretanto, escândalos recentes envolvendo viagens financiadas por terceiros, benefícios não declarados e vínculos pessoais com agentes diretamente interessados em causas pendentes de julgamento expuseram, de forma dramática, a fragilidade da autorregulação informal. Em resposta à perda de confiança pública, a Corte adotou, em 2023, seu primeiro Código de Conduta para os Justices, reconhecendo explicitamente que a ausência de parâmetros formais comprometia a credibilidade institucional. O documento não surgiu como concessão, mas como imperativo de sobrevivência simbólica: a integridade, quando não regulada, torna-se vulnerável à erosão progressiva.

A Corte Constitucional alemã oferece modelo ainda mais sofisticado. Diferentemente dos Estados Unidos, a Alemanha estruturou, desde cedo, rígidos padrões de autocontenção judicial, sustentados por cultura institucional que valoriza discrição, transparência, distanciamento político e rigor procedimental. A interação dos ministros com a esfera pública é limitada, eventos privados são rigidamente controlados e conflitos de interesse são prevenidos por regras claras que fazem parte da própria identidade da Corte. Não por acaso, esse modelo serviu como inspiração direta para o ministro Edson Fachin, conforme registrado nos documentos jornalísticos, revelando a intenção de adaptar ao contexto brasileiro práticas consolidadas de integridade judicial.

Experiências semelhantes também são observadas na Reino Unido, cuja tradição de judicial ethics se expressa por meio do Guide to Judicial Conduct, documento abrangente que estabelece padrões claros para participação em eventos, relacionamentos institucionais, uso de redes sociais e condutas que possam suscitar conflitos de interesse. No Canadá, o Ethical Principles for Judges combina diretrizes éticas com racionalidade pragmática de governança, buscando equilibrar autonomia judicial com responsabilidade pública. Em países como Holanda, Nova Zelândia e Austrália, guias de conduta judicial são concebidos como instrumentos vivos, sujeitos a revisões periódicas e construídos em diálogo estreito com a sociedade civil e associações de magistrados.

Essa convergência revela algo essencial: quanto maior a importância política de uma Corte, maior é a necessidade de instrumentos formais de proteção de sua legitimidade. Em sistemas de alta constitucionalização, a função jurisdicional deixou de ser uma atividade silenciosa e isolada para tornar-se prática exposta a fluxos de informação, escrutínio midiático constante e crescente pressão social por transparência. O juiz constitucional não atua no anonimato: suas manifestações, deslocamentos, associações e escolhas pessoais reverberam institucionalmente e impactam a percepção pública da imparcialidade judicial.

O caso brasileiro dialoga diretamente com essa realidade. O STF, especialmente a partir da redemocratização, assumiu protagonismo que o aproxima das grandes cortes constitucionais internacionais, mas sem desenvolver, até recentemente, mecanismos equivalentes de integridade formal. A iniciativa de criação de um código de conduta representa, portanto, um movimento de convergência institucional e de modernização republicana. Ela aproxima o Judiciário brasileiro do standard internacional de ética judicial e insere o país em um circuito mais amplo de governança constitucional, demonstrando que a integridade não é tema secundário, mas componente sistêmico da jurisdição.

6. Conclusão

A conclusão dogmática que se impõe é a de que o código de conduta, longe de constituir inovação meramente administrativa, representa mecanismo sofisticado de aperfeiçoamento institucional do Poder Judiciário. Ele se situa no âmago do constitucionalismo contemporâneo, que reconhece a integridade como elemento estrutural da legitimidade jurisdicional. A ausência de parâmetros claros aplicáveis aos ministros dos tribunais superiores cria ambiente propício à erosão simbólica da magistratura, na medida em que condutas extrajudiciais não reguladas podem gerar percepções públicas de parcialidade, dependência indevida ou promiscuidade institucional — mesmo quando essas percepções não correspondem à realidade.

A LOMAN, como documento pré-constitucional, não contém instrumentos capazes de responder às exigências atuais de governança ética. Da mesma forma, o Código de Ética da Magistratura não se aplica aos ministros de tribunais superiores, o que produz lacuna normativa incompatível com a centralidade institucional ocupada pelo STF e pelas demais cortes de vértice. O código de conduta proposto por Fachin supre essa omissão de forma cirúrgica, fornecendo densidade normativa a valores que, até então, permaneciam em estado de abstração constitucional.

Ao estabelecer padrões objetivos de comportamento, o código fortalece a previsibilidade institucional. Previsibilidade é blindagem: ela reduz a possibilidade de que situações ambíguas sejam interpretadas como desvios éticos e impede que percepções subjetivas comprometam a autoridade da Corte. A normatividade ética, nesse sentido, antecipando-se a conflitos potenciais, cria margens de segurança que preservam não apenas a reputação dos ministros individualmente considerados, mas a própria integridade do processo decisório.

Além disso, o código reforça a distinção — essencial ao regime republicano — entre o espaço institucional do tribunal e o universo dos interesses privados. Em tempos de intensa circulação de informações, a mera aparência de proximidade indevida pode ser suficiente para contaminar a credibilidade de julgamentos de alta relevância. A função típica da jurisdição, para ser exercida com legitimidade, exige que o julgador esteja protegido não apenas de pressões externas concretas, mas também das percepções sociais de favorecimento ou afinidade com grupos específicos. O código de conduta funciona, assim, como barreira simbólica que separa a instituição de qualquer potencial fonte de captura.

Por fim, o código contribui para a interiorização de uma cultura de integridade. Regras não transformam, por si, realidades institucionais, mas produzem incentivos e instauram ambientes normativos que favorecem comportamentos alinhados aos valores constitucionais. A criação do código indica que o Judiciário reconhece que a integridade não é atributo individual, mas construção coletiva e estrutural, realizada mediante normas, práticas, rotinas e cultura institucional. A autocontenção, longe de fragilizar o tribunal, fortalece-o, porque demonstra que a Corte é capaz de se autorregular e de se submeter a padrões mais elevados de comportamento, compatíveis com sua função de guardiã da Constituição.

Em síntese, o código de conduta proposto opera como mecanismo de consolidação da legitimidade constitucional, de redução de riscos reputacionais, de fortalecimento da imparcialidade objetiva e de aperfeiçoamento do autogoverno judicial. Ele não inaugura uma nova era; apenas dá forma normativa àquilo que o constitucionalismo brasileiro já exige: uma Corte cujo poder repousa não apenas na força de seus argumentos, mas na integridade inequívoca de sua atuação institucional.

Referências

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BRASIL. Lei Complementar nº 35, de 14 de março de 1979. Lei Orgânica da Magistratura Nacional. Diário Oficial da União, Brasília, 15 mar. 1979.

BRASIL. Resolução CNJ nº 60, de 19 de abril de 2008. Institui o Código de Ética da Magistratura Nacional. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2008. Disponível em: https://www.cnj.jus.br. Acesso em: 10 dez. 2025.

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DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

BARROSO, Luís Roberto. O Novo Direito Constitucional Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2021.

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008.

Sobre o autor
Luiz Carlos Nacif Lagrotta

Procurador-Geral do Município de Taboão da Serra, Professor do Centro Universitário UniFECAF, Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Especialista em Compliance pela Fundação Getúlio Vargas-FGV-SP.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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