A problemática da culpabilidade em Hart: exigibilidade, excludentes e o declínio da vontade

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14/12/2025 às 11:20

Resumo:


  • Hart aborda o conceito de Direito, utilizando métodos como a jurisprudência analítica e a sociologia descritiva, e discute a importância das regras primárias e secundárias na estrutura do sistema jurídico.

  • O estudo de Hart sobre o direito penal destaca a importância da teoria utilitarista e retributivista, mas ressalta que nenhuma delas sozinha é capaz de resolver todos os problemas desse campo do direito.

  • Greco, por sua vez, questiona a necessidade da vontade no conceito de dolo, propondo que o conhecimento e o domínio da ação sejam elementos mais relevantes para a imputação penal do que a vontade em si.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

INTRODUÇÃO

O debate sobre o conceito jurídico de culpabilidade possui muitas frentes, incluindo não apenas a esfera jurídica, mas com impacto inclusive no campo da neurociência. Com este estudo, buscamos principalmente desmembrar os estudos e observações trazidos por Hart e suas implicações, neste estudo, especificamente, sobre a esfera jurídico-penal e o conceito de culpabilidade.

No escrito “O Conceito de Direito”, Hart adota uma perspectiva generalista, concentrando-se nas questões estruturais do sistema jurídico. Contudo, não utilizando somente deste tipo de abordagem, se dedicando também ao estudo do direito penal, tendo como argumento principal o entendimento de que o modelo positivista clássico se demonstra encantador e desejado na teoria, mas que sua prática se revela dissociada da realidade, no sentido de que não consegue abarcar as nuances presentes no direito penal prático.

Em seus estudos sobre direito penal temos dois escritos de destaque, quais sejam, “Direito, Liberdade, Moralidade” publicado em 1963 e “Punição e responsabilidade, Ensaios em Filosofia do Direito” publicado em 1967. O primeiro escrito, traz em sua abordagem e argumentação, a imposição legal da moral; já o segundo se concentra em classificar e definir os conceitos jurídicos primordiais na esfera jurídico-penal, quais sejam, os conceitos de culpa, dolo, excludente, entre outros.

Sendo assim, busca-se demonstrar neste estudo, as conclusões encontradas por Hart para caracterização destes conceitos, mas não somente, objetivamos também demonstrar a importância destes estudos feitos por Hart não apenas na esfera jurídica-penal, mas no direito em geral, preservando o direcionamento generalista que Hart apresenta em seus estudos. Em adendo aos estudos de Hart, abordar-se-á em conjunto o estudo do artigo “Dolo sem vontade” de Luís Greco, apresentando a perspectiva acerca da conceituação de vontade/dolo como estado mental (psicológico-descritivo) e a conceituação da vontade/dolo como a forma de interpretação de um comportamento (atributivo-normativo).

1. O conceito hartiano de direito

No prefácio da obra, Hart descreve os métodos que orientam sua investigação: a jurisprudência analítica e a sociologia descritiva1. A jurisprudência analítica tem como objetivo esclarecer os conceitos jurídicos centrais a partir de seus usos práticos, porém sem proceder a qualquer crítica normativa. Trata-se, portanto, de um método que se limita a clarificar, adotando uma postura descritiva de elucidação conceitual, sem avançar para avaliações do direito existente ou formulações de ideais jurídicos.

A sociologia descritiva, por sua vez, dedica-se ao esclarecimento indireto das práticas sociais nas quais esses conceitos são empregados. Ela opera pela investigação das marcas que tais práticas deixam na linguagem com que falamos sobre o direito. Pensa-se que o exame indireto, por meio da linguagem, traz à tona sutilezas ocultas e pressupostos não confessos, que só deixam rastros no modo como usamos as palavras e que, portanto, só se podem descobrir por meio da análise conceitual.

É importante ressaltar ainda que Hart não se interessa pela sociologia empírica, isto é, o que o exame direto tem a dizer sobre as práticas sociais. Seu foco recai sobre os aspectos dessas práticas que se cristalizam no uso dos conceitos jurídicos e que só se tornam visíveis mediante o esclarecimento de seu significado.

Em conceito de direito, podemos dizer que Hart faz tudo, menos fornecer um conceito de Direito. Isso é obviamente deliberado. O autor não acha possível formular uma definição capaz de abranger todos os sistemas jurídicos, pois não há um conjunto de características invariáveis que permita classificar universalmente um fenômeno como jurídico.2

Em vez de buscar essa essência, Hart procura reorganizar a discussão em torno de três questões persistentes3: 1. Em que se diferencia o Direito das ordens respaldadas por ameaças? 2. Em que se distingue a obrigação jurídica da obrigação moral? 3. O que são as normas jurídicas e, em que medida, o Direito é uma questão de normas? O autor transforma a indagação “o que é o direito?” em agora perguntas bem formuladas e problemas filosoficamente tratáveis, não mais caídos em uma abstração quase metafísica comparável à tentativa de definir “o que é a vida”.

Em síntese, as respostas tradicionais ao “o que é o direito”, para Hart, não são úteis, bem como, a própria pergunta é equivocada. Como nenhuma fórmula pode dar uma definição satisfatória do direito, no sentido de responder a cada uma daquelas perguntas recorrentes, o que o autor nos fornece, na verdade, “é um conjunto de elementos que formam uma parte central comum às respostas às três questões persistentes.” Certo, mas o que seria este elemento? Para Hart, a união de regras primárias e secundárias.4

1.1 O direito como a reunião de regras primárias e secundárias

Após três curtos capítulos de desconstrução de antigas teorias, o autor vai no quinto capítulo começar uma nova construção. Para Hart, o ordenamento jurídico é composto por um conjunto de regras divididas entre primárias e secundárias. As regras primárias são normas de primeira ordem, que impõem obrigações, determinando o que os indivíduos podem ou não fazer e indicam quando devem abster-se de certas condutas. Em suma, são regras que estabelecem deveres tanto positivos quanto negativos.5

Já as regras secundárias conferem poderes aos sujeitos para criarem, modificarem ou aplicarem normas. Em outras palavras, permitem que seres humanos produzam novas regras. Hart as organiza em três tipos, regras de reconhecimento, de alteração e de adjudicação. Cada uma delas cumpre funções específicas no sistema jurídico e serve como resposta aos defeitos inevitáveis de um sistema baseado apenas em regras primárias: a ausência de certeza, a dificuldade de adaptar o direito às mudanças sociais e a insuficiência da pressão social difusa para assegurar o cumprimento das normas.

Entretanto, a que mais merece destaque, e ocupa posição central na teoria do direito de Hart é a norma de reconhecimento6. Esta é a regra que indica quais são os critérios para identificar o Direito, dentre todas as regras ela se revela a mais complexa. Ela permite identificar se todas as demais normas pertencem a um sistema jurídico, funcionando como um critério geral de validade.

Na maioria dos ordenamentos, a regra de reconhecimento não aparece formalmente enunciada. Ela se revela, antes, na prática cotidiana de identificação das normas, tanto por tribunais e demais agentes estatais quanto por particulares e seus assessores jurídicos. Em certos sistemas, a regra última de reconhecimento pode remeter a múltiplas fontes superiores, sem que isso elimine a existência de uma regra final comum. Já nos sistemas de civil law, essa regra ocupa posição ainda mais elevada, se situa acima da própria Constituição.

É importante destacar que “a regra de reconhecimento existe apenas como uma prática complexa, ainda que geralmente convergente, dos tribunais, dos funcionários e dos particulares ao identificarem o Direito por referência a certos critérios”7. Desse modo, as normas quando identificadas a partir desse critério, passam a ser reconhecidas como válidas dentro de um ordenamento jurídico. Embora uma norma subordinada possa conservar sua validade mesmo sem ser eficaz, no sentido de amplamente obedecida, o mesmo não pode ocorrer com a norma de reconhecimento. A norma de reconhecimento exige para sua existência, que a prática social a obedeça e reconheça, isto é, para ser válida, ela precisa ser rotineiramente obedecida.

Mesmo quando os motivos que levam os indivíduos a obedecer o Direito divergem dos critérios estabelecidos pela regra de reconhecimento, como a obediência decorrente do temor às sanções, a conformidade generalizada com as normas constitui indício da existência de um sistema jurídico e da vigência desta regra. Contudo, aferir o grau de eficácia da regra de reconhecimento exige mais do que a constatação do cumprimento, mas a aceitação da mesma por seus destinatários, ou seja, que eles a considerem como pauta correta de conduta.8

Nesse sentido, a regra de reconhecimento representa a mais importante criação humana no âmbito jurídico, funcionando como remédio para a incerteza. É ela que torna possível falar em “sistema” jurídico, distinguindo o direito de outros sistemas normativos, como a moral, as regras de trato social ou as regras de jogo, os quais não dispõem de uma regra última capaz de identificar todas as normas que os compõem e estabelecer sua pertinência e validade.

É importante ressaltar que a regra de reconhecimento não pretende determinar exaustivamente os resultados jurídicos de todos os casos concretos. Seu objetivo é fornecer condições gerais que permitam identificar quando uma decisão jurídica pode ser considerada correta, e não antecipar a solução específica de cada controvérsia9.

Em vez de oferecer mais uma síntese expositiva da filosofia jurídica de Hart, tarefa já realizada de modo mais competente e completo por diversos comentaristas, este estudo busca evidenciar as tensões e insuficiências que o pensamento de Hart apresenta quando confrontado com os problemas do direito penal. O objetivo é demonstrar que certos pressupostos teóricos do autor se revelam limitados, especialmente no que diz respeito à culpabilidade. Nesse sentido, o capítulo que segue cumpre em realizar breve síntese das ideias de Hart referentes ao Direito Penal.

2. Hart e o Direito Penal

Conforme brevemente introduzido, Hart possuía como característica principal de suas investigações da esfera jurídica a presença de generalização e abstração dos conceitos, permitindo a aplicação destes em qualquer âmbito do direito.

Contudo, Hart buscou promover escritos que fugiam desta primazia, escritos que buscavam entender os conceitos norteadores da esfera jurídico-penal, sendo “Direito, Liberdade, Moralidade” e “Punição e responsabilidade, Ensaios em Filosofia do Direito” o sendo sendo o conjunto dos escritos hartianos, ou seja, consiste em uma série de artigos publicados a partir de 1959 e reimpressos em um único volume. Em seu primeiro escrito Hart demonstra preocupação em discutir as questões morais que circundam a lei penal.

Considerando o ano de publicação de seus escritos, Hart encontrava-se vivenciando a predominância da moralidade cristã, onde os “crimes” tidos como “pecados” ou inaceitáveis pelos cristãos, eram veementemente punidos. Porém, com o desenvolvimento social tais penalidades aos “crimes” conhecidos como imoralmente cristãos foram reformuladas, e ficou determinado que eram condutas meramente imorais, inofensivas a qualquer patrimônio jurídico que justificasse a coerção penal.10

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Por conseguinte, após inúmeras discussões e até promulgações de textos legislativos, como a Lei do suicídio (1961), Hart definiu neste escrito que a esfera jurídico penal, em específico sobre a finalidade da pena, de que esta não poderia ser apenas para punir mera imoralidade, no caso, a cristã.

Já a segunda obra, advinda do agrupamento dos escritos de Hart, traz ainda mais debates e questionamentos. Todos estes escritos têm como similaridade, e objetivo comum a busca pela conceituação de conceitos jurídicos como dolo, culpa, excludente, entre outros; todos estes tendo como base fundamental as teorias: do utilitarismo e do retributivismo.

Em síntese, primeira teoria do utilitarismo ou relativa, se divide na prevenção geral ou na prevenção especial as duas podendo ser “negativas” ou “positivas”; já a teoria do retributivismo ou absoluta, busca retribuir ao criminoso o mal causado a sociedade, originando também o princípio de culpabilidade - nullum crimen sine culpa11 Em suma, Hart buscou demonstrar que nenhuma destas teorias é capaz - de forma singular - de resolver todas as questões de um sistema como o direito penal.

2.1 Diferenças entre os institutos da propriedade e os institutos da pena

Em consonância com a abordagem do tópico anterior, Hart não concordava com a definição de uma única teoria para regular o direito penal, ele acreditava que era necessária a elaboração de diversos princípios para justificar cada “ordem” do direito penal.

Para isto, como Hart também defendia que o direito penal deve punir a ofensividade ao patrimônio, ele buscou fazer a definição destes princípios pela diferenciação entre os institutos da propriedade e da pena, e para isso utilizou-se de questões norteadoras, sendo elas: (i) o que é a pena, ou o que é a propriedade?; (ii) o que justifica a prática punitiva do estado?; (iii) por que e em que circunstância ela é uma boa instituição para se manter?; (iv) quem deve ser punido (ou quem deve adquirir a propriedade); (v) e quanto de pena lhe deve ser infligida (ou quanto de propriedade lhe deve ser atribuída)12.

Apesar de Hart estar fazendo um estudo aprofundado sobre uma área específica do direito, ele seguiu usando sua abordagem metódica, em primeiro instante buscando compreender o cerne da pena, e dela extraiu cinco elementos: (i) que ela tem como “objetivo” a “devolução’ do mal; (ii) deve ser aplicada sob justificativa jurídica; (iii) imposta ao criminoso; (iv) administrada por terceiros, e não pelo próprio causador do mal (criminoso); e (v) aplicada e administrada por uma autoridade.

Contudo, em meio a sua análise Hart traz o questionamento sobre a forma com que tais penas reverberam na sociedade, ou até mesmo da falta de aplicação àqueles por quem a pena é administrada, entramos assim, novamente, na aplicação de pena baseada em fundamentos puramente morais. Em seu escrito O conceito de direito publicado em 2009, expõe em resumo que “embora a lei criminal proíba ou prescreva certas ações sob a cominação de uma pena, todas estas ordens são baseadas em ameaças, que são dadas de um indivíduo para o outro, mas que tal ameaça se demonstra de forma diferente quando se trata do indivíduo que aplica a pena.”13

E para entendimento das formas de reverberação da pena no ambiente social, existem duas teorias predominantes, quais sejam a do utilitarismo e do retributivismo - do qual Hart discorda com vigor - Hart, defensor declarado do utilitarismo, prega que para que a aplicação da pena seja eficaz é preciso a análise de que haverá mais proveito com a punição do que apenas pela devolução do mal ocasionado. Por outro lado, a discordância de Hart da teoria retributivista está por acreditar que a vingança é um sentimento irracional, que por sua vez não deve ser usado como senso de justiça.

Em suma, Hart defende que a pena deve ser usada não como retribuição, mas sim como desestimuladora, daquele que cometeu, e dos que sofreram deste mal, mas de forma proporcional; em síntese, Hart diz que os sistemas penais desenvolvidos adotam a aplicação da teoria utilitarista em seu objetivo geral justificador, porém, que não seguem a mesma adoção quanto a distribuição da pena, apresentando traços retributivistas. 14

Por fim, Hart defende que apenas um princípio ou teoria não serão capazes de suprir todas as necessidades do direito penal, e que portanto, o fato de “adotarmos”, entre muitas aspas, diferentes teorias e em momentos distintos, não é um desqualificador da aplicação desta pena. Não trata-se aqui de um emaranhado de princípios ou teorias que são aplicados à livre escolha, mas sim de acordo com a necessidade e característica específica de cada fase do direito penal.

2.2. Antijuridicidade, excludente de culpabilidade e atenuantes

Hart utiliza-se destes princípios em inglês, justification, excuses, e mitigation. Justification, análoga à antijuridicidade do direito penal brasileiro, trata-se de um fato que embora seja um crime, não é condenado como tal, como o homicídio em legítima defesa; já as excuses, análoga às excludentes de culpabilidade, ocorrem quando apesar de típico não é culpável, ou seja, foi cometido em circunstâncias que não era perceptível a conduta criminosa. Como os crimes cometidos por pessoa com deficiência mental; e mitigation, análoga às atenuantes, são os crimes típicos, culpáveis, mas a situação em que o agente foi exposta prejudicou sua capacidade de controle, ou até mesmo de cálculo de risco, como os crimes cometidos sob violenta emoção ou coação.

Tais atenuantes, no sentido formal, são capazes de atribuir uma pena máxima inferior à pena máxima do crime original15, já no sentido informal também é capaz de atenuar a pena mas por sua vez a livre convencimento do juiz.

Ele defende a criação destes institutos reguladores da aplicação da pena, justificando que são uma espécie de amparo à justiça pois auxiliam na tomada de decisões quando deparado com interesses conflitantes, vítima e apenado, e destaca dois benefícios delas: (i) tratam a todos igualmente como pessoas ao atribuírem um significado especial à ação humana voluntária; e (ii) proíbem o uso de um ser humano para o benefício de outros exceto se como punição por suas ações voluntárias contra eles16.

Evitando que ocorra a seu principal ponto de crítica à justiça social, onde basicamente diz que não havendo autoridade dotada de poder, as punições ficaram nas mãos dos indivíduos ofendidos ou de um grupo, e que estas serão aplicadas de forma intermitente17.

3. Para o direito penal é um problema não existir vontade?

O título do capítulo escancara uma dúvida que, à primeira vista, parece banal, algo que qualquer estudante de primeiro ano da faculdade de direito responderia de imediato: sim, é um problema. Mas, será mesmo? O penalista Luís Greco ousaria discordar.

Em 2009 o autor publica o artigo Dolo sem vontade, no qual sustenta, em síntese, que “não se enxerga até a presente data qualquer fundamento convincente para exigir uma vontade no conceito de dolo”18. Trata-se de uma posição minoritária, e até hoje surgem artigos rejeitando integralmente sua tese. A posição é minoritária, e até hoje são escritos artigos críticos rejeitando completamente a teoria.

O professor Greco, partindo da adoção no código penal brasileiro à teoria volitiva, fazendo paralelos com o direito portugues e alemão, mas que não nos cumpre neste artigo destacar. Em síntese, destaca que na concepção adotada, o que domina é a ideia de dolo enquanto composto por dois elementos psicológicos: o competente cognitivo (saber o que faz) e o volitivo (relativo à vontade). Assim, um crime para a teoria volitiva é somente quando existe o conhecimento e a vontade de realizar o tipo objetivo.19

O problema está justamente na parte volitiva, pois, a doutrina trabalha com conceitos de “vontade” que se contradizem entre si. Ele identifica duas concepções principais: (i) a psicológica-descritiva, em que a vontade é um estado mental interno, algo que é relativo ao universo psíquico de um indivíduo; (ii) atributivo-normativo, qual a vontade é uma atribuição, qual imaginamos diante do caso concreto a interpretação jurídica cabível.

Com base em uma modificação do emblemático caso do atirador de Lachmann, realiza um exemplo fundamental para entender a questão. Duas pessoas estão brincando de tiro a alvo, quando surge uma aposta. O desafio era que se um dos atiradores conseguisse acertar o chapéu de uma menina sem feri-la, ganharia todo o patrimônio do perdedor. Assim, a primeira pessoa aceita e atira, porém, atinge a menina que acaba morrendo. Nesse sentido, o atirador não quis o resultado, pois acabaria além de matar a menina, perdendo todo o seu patrimônio. Logo, em sentido psicológico-descritivo, não era possível caracterizar vontade, ainda assim, nenhum penalista negaria a existência de dolo. Disto Greco conclui que o Código Penal brasileiro e a doutrina já conhecem casos de dolo sem vontade (em sentido psicológico)20.

Com base nessa crítica inicial, Greco passa a reconstruir o fundamento normativo que distingue dolo e culpa. Para ele, o elemento decisivo não é a vontade, mas o domínio da realização do fato, que deriva exclusivamente do conhecimento da estrutura da ação e dos riscos envolvidos. O conhecimento é o fator subjetivo que permite ao agente controlar o curso causal de sua conduta. Isso justifica a punição mais severa do dolo tanto por razões consequencialistas (maior necessidade de prevenção) quanto por razões deontológicas (maior responsabilidade pela ação e pelas consequências que dela advêm)21.

Nesse sentido, a vontade, em contraste, não desempenha qualquer papel justificável. Para isso, ele mobiliza o caso Thyren: um leigo efetua, com uma pistola normal, um disparo a uma enorme distância em direção à pessoa que ele deseja matar. Há dolo?

Nesse exemplo, a pessoa não domina a situação, ela não sabe atirar e as circunstâncias (distância) tornam a produção do resultado altamente improvável. Há vontade, mas não há domínio. Punir tal caso da mesma forma que se puniria alguém que domina completamente sua ação, significa aceitar que a vontade basta, o que não faz sentido em um direito penal do fato, ainda mais quando “a eventual ocorrência do resultado se dá em parte por acaso”.22 Os penalistas ainda assim restariam a caracterizar o dolo.

Poder-se-ia objetar que a teoria volitiva também exige domínio, e isso é verdade. Racionalmente, não parece possível que a mera vontade, sem que haja domínio, possa substituí-lo. A exemplo, no caso de um indivíduo que deseja furtar um cofre de metal e tenta fazê-lo com uma faca de serra. Neste caso também há vontade, mas não domínio. Qualquer penalista diria que trata-se de crime impossível. Mas quando confrontado com o caso Thyren, isso parece ser invertido de maneira irracional.

A análise demonstra que a vontade não é nem necessária nem suficiente para afirmar o dolo, ao passo que o conhecimento permanece indispensável. Isso revela: (i) a ausência de consenso sobre o que “vontade” significa no direito penal; (ii) a impossibilidade, em um sistema fundado no fato, de transformar vontade (em sentido psicológico-descritivo) sem domínio em dolo; e (iii) a dificuldade probatória da vontade diante da presunção de inocência e do in dubio pro reo.

Diante disso e inspirado em Herzberg23, Greco defende que o decisivo não é a atitude interna, mas o conhecimento de um risco que deveria ter sido levado a sério. Assim, para que haja dolo, o agente deve atuar com um conhecimento que lhe dê domínio sobre o que faz, isto é, deve criar conscientemente um risco suficientemente elevado para que o resultado possa ser considerado algo sob seu controle.24

A relação entre essa concepção e a crítica hartiana à noção de vontade, porém, exige um exame dedicado, tarefa que será desenvolvida no capítulo seguinte.

3.1 Crítica à culpabilidade volitiva em Hart

Adentrando agora o campo da culpabilidade penal em Hart. Como dito antes, Hart vai definir a culpabilidade não como o que ela é, mas como quando ela não acontece, isto é, haveria culpa nas situações em que ela desaparece. É um conceito negativo de culpa.

Não se trata, portanto, de um catálogo fechado nem de um núcleo essencial do conceito, mas de um conjunto flexível de exceções. A adoção desse modelo negativo possui vantagens evidentes. Ao evitar a formulação de um conceito positivo de culpabilidade, o legislador se abstém de assumir uma posição teórica sobre questões filosoficamente controversas, como a validade do livre-arbítrio, preservando assim uma margem de manobra normativa.

Porém, esse arranjo revela a estrutura real da imputação penal, o sistema parte da presunção de culpabilidade, que somente é afastada quando o autor demonstra a presença de uma circunstância excepcional que a exclua. Trata-se, de um modelo de “regra e exceção”,25 no qual a culpabilidade é aquilo que permanece quando não há nenhuma excludente.

Hart descreve esse funcionamento como um caso de “atribuição refutável”, cujo indivíduo é responsável prima facie, cabendo-lhe afastar essa imputação mediante razões excepcionais.26

Justamente por ainda a culpabilidade se ancorar na formação da vontade individualmente reprovável, voltamos a uma censura penal a partir de uma estrutura volitiva que novamente pressupõe a questão da vontade. Deve-se recordar que Greco buscou demonstrar que a vontade, em qualquer acepção psicológica, deve ser irrelevante para justificar o maior desvalor do dolo. O que importa é a reprovação do querer pela centralidade do conhecimento e do domínio da ação.

Mas poderia surgir agora uma primeira questão do leitor: Greco trata do conceito de dolo e culpa, não da culpabilidade, qual sentido então dessa crítica visto que tratam de elementos diferentes do conceito analítico de crime? Isso não é bem verdade, pois a crítica fundamental de Greco estava no querer fundamentar uma ação criminosa com base “na ideia indemonstrável da liberdade de vontade”.27 Seguindo ainda com as palavras de Greco, fundamentar seja a culpabilidade ou o dolo e a culpa na vontade, é dizer que “estamos punindo baseados em algo cujo fundamento desconhecemos”.28

Voltando ao mérito, enquanto a abordagem de Hart mantém uma concepção volitiva de culpabilidade, reforçando a suposição de que o agente poderia e deveria ter decidido de outra forma, porém, a perspectiva “grequiana” converge com as descobertas neurociência ao retirar a ideia de um livre-arbítrio robusto, propondo em verdade uma imputação penal independente de estados internos de vontade, mas do conhecimento suficiente para que determine uma ação.

A maior crítica a este movimento se deve a uma interpretação, ou talvez, conclusão diferente quanto aos estudos da neurociência. A vertente crítica ao estudar que não possuímos liberdade, não a menos aos moldes católicos, nota de maneira sagaz que o direito penal é portanto, injusto, pois, se não temos liberdade, como exigir que alguém aja de modo outro que não aquele que foi condicionado pelo ambiente, a agir?

Se essa proposição fosse verdadeira em seus próprios termos, estaríamos diante de uma vitória definitiva do abolicionismo penal. Em um cenário no qual simplesmente não existe liberdade para escolher aquilo que poderíamos ter feito, não seria possível falar em culpa. As prisões ao redor do mundo deveriam ser imediatamente esvaziadas, e todas as penas convertidas em indenizações. Isso porque todos os indivíduos encarcerados teriam, por hipótese, agido sob uma evidente excludente de culpabilidade.

Em outras palavras, a culpabilidade tal como delineada por Hart, pressupõe um tipo de liberdade contrafactual robusta, cujo diante das mesmas condições antecedentes, o agente teria, de fato, a capacidade real de produzir um curso de ação alternativo. Mas se as ações humanas são moldadas por fatores causais complexos, então a afirmação de que o agente poderia ter feito diferente perde grande parte de seu conteúdo empírico.

Justamente por isso, a exigibilidade de conduta diversa talvez seja hoje o ponto mais delicado do direito penal. Diante das descobertas da neurociência, não se trata de negar a ciência e preservar cinicamente o modelo tradicional, tampouco de levar às últimas consequências a crítica determinista e simplesmente abandonar todo o sistema punitivo. A alternativa mais promissora é reconhecer essas descobertas e, a partir delas, remodelar a culpabilidade não como fenômeno volitivo, mas como categoria normativa.

Isto é, a exigibilidade de conduta diversa não deve se ancorar na liberdade mas na validade. A exigibilidade assim seria constantemente modulada não por propriedades internas do sujeito, mas por juízos normativos acerca das condições externas de atuação. Assim, quando alguém viola uma norma, não se presume uma liberdade metafísica anterior à ação, mas se reconhece que o próprio sistema jurídico previamente estabeleceu as condições normativas que tornavam a conduta diversa socialmente esperada e institucionalmente exigida. A punição não decorre da suposição de que o agente “escolheu livremente” desrespeitar a norma, mas da necessidade de restabelecer a validade da norma violada, que assim o foi, por um agente que tinha conhecimento da conduta e seu possível resultado.

Um segundo leitor poderia ainda se perguntar (sendo otimista que este texto possuiria um segundo leitor), tal ideia não abre espaço para uma ampliação do poder punitivo? Primeiro, uma teoria que depende de um elemento cuja existência não pode ser demonstrada (a vontade livre) permite tanto ampliar quanto restringir a imputação conforme a conveniência interpretativa do intérprete. Na verdade, isso é justamente o que ocorre na prática, o direito regulando uma expectativa de conduta, É isso que o artigo propõe, pois a punição baseada na expectativa normativa é menos hipócrita29.

Mas aqui poderia surgir uma nova dúvida do segundo leitor (até porque a hipótese de existir um terceiro leitor parece-me otimismo demais): Tal alternativa não acaba operando como uma solução conformista e derrotista quanto aos direitos humanos? Na verdade, não se trata aqui de negar a dignidade humana nem de reduzir o sujeito a um mero objeto das forças causais do mundo.

Assim, se somos criaturas de contexto, isto é, se vivemos em um mundo em que o ambiente nos condiciona, sendo o direito parte inseparável desse mesmo ambiente, ele também nos atravessa e modela. Ele não deve ser visto como uma instância pura, mas como criação humana que define expectativas úteis e ordena condutas de forma distribuir sentidos de coesão, fabricando uma proteção necessária para a vida em sociedade30.

CONCLUSÃO

O presente artigo objetivou o desmembramento e análise das contribuições dos escritos O conceito do direito e Punição e responsabilidade, Ensaios em Filosofia do Direito, ambos de H.L.A. Hart, focando na esfera jurídico-penal.

Inicialmente identificou-se que Hart abordava em sua análise o uso da jurisprudência analítica e da sociologia descritiva, visando a clarificação conceitual, mas sem a presença da crítica normativa. Acerca do direito, Hart não apresenta uma definição essencialista, mas de destaque dos principais elementos, tais como as regras primárias, secundárias, e dentre as secundárias, tendo como principal a regra de conhecimento que atua como forma de validade das demais normas.

O foco recaiu no entanto em analisar a contribuição de Hart no direito penal. Focando inicialmente em sua proposta de que a teoria utilitarista ou a teoria retributivista não são capazes, de forma singular, de resolver todas as questões do direito penal. Posteriormente, consagrou-se focar na ideia de culpabilidade em Hart, qual ao menos nas obras escolhidas, carregava uma definição negativa bastante problemática, que se demonstrou como um dever de se provar que não é culpado, uma inversão estranha aos princípios do direito penal.

A análise conjunta de Greco e Hart evidencia que a insistência do direito penal em fundamentos volitivos especialmente na noção psicológica de vontade e em concepções metafísicas de livre-arbítrio, produz mais obscuridade do que esclarecimento. Se a vontade não pode ser demonstrada empiricamente, e se seu uso gera contradições internas na própria doutrina, então ela não deve ocupar papel estruturante na teoria do delito. O caminho mais consistente é deslocar o foco para critérios normativos, em especial, o conhecimento, domínio da ação, risco criado e expectativas institucionalmente estabelecidas.

Por isso, a tarefa dos filósofos e teóricos do direito penal não deveria concentrar-se em debates irresolúveis sobre estados internos da vontade, mas em esclarecer como normas, decisões e práticas jurisprudenciais constroem a imputação e moldam expectativas de conduta. Em vez de se apoiar em suposições indemonstráveis, uma teoria do delito comprometida com segurança jurídica e limites ao poder punitivo deve operar a partir daquilo que pode ser normativamente justificado e institucionalmente controlado. Esse deslocamento não apenas torna o sistema penal mais coerente, como também mais honesto quanto às suas reais bases de funcionamento.

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Sobre o autor
Odair Fernando Duarte Junior

Formando em Direito pelo Mackenzie. Possui interesse em Direito Penal, filosofia e teologia. Dedica seus estudos a um grupo de pesquisa em criminologia e politica criminal, bem como no estudo da filosofia da religião.

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