Julgamento da Baronesa de Grajaú: Exemplo de Erro Judiciário.

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JULGAMENTO DA BARONESA DE GRAJAÚ: EXEMPLO DE ERRO JUDICIÁRIO.

A magnitude de uma obra não está na sua beleza aparente, muito menos em seu nome ou no do autor, mas no conteúdo que desperta o interesse do público leitor. Este livro, denominado O CRIME DA BARONESA, que já atinge sua sexta edição, é a prova insofismável de que devemos ser fiéis à idoneidade sobre o tema proposto para o estudo, principalmente quando trata de investigação sobre fato histórico verídico, que envolve abordagem em diversos campos da ciência.

Amparado nesse raciocínio, pontuo que no processo em que foi acusada a senhora Anna Rosa Vianna Ribeiro, conhecida como Baronesa de Grajaú, existem duas vítimas. A primeira vítima, chamada Inocêncio, era uma criança escravizada que morreu em circunstâncias duvidosas. A segunda vítima, a própria Baronesa de Grajaú, Senhora Anna Rosa Vianna Ribeiro, acusada da autoria da morte do escravinho, em face de seu gênero feminino, ou seja, pela circunstância de ser mulher e ostentar estado civil de casada.

O escravo, pela legislação imperial, era considerado coisa; não possuía direito algum, nem podia exercer direito de petição contra seu proprietário. A baronesa, como era mulher casada, vivia na invisibilidade do lar doméstico, sob a tutela e pátrio poder de seu marido. E, por essa razão, não possuía capacidade jurídica para ser parte ativa ou passiva em juízo. Na verdade, a mulher, desde os tempos remotos, era vista, em geral, como alieni iuris.

Com efeito, a senhora Anna Rosa Vianna Ribeiro era conhecida como baronesa apenas pela circunstância da outorga do título de baronato ao seu marido. Portanto, pode-se dizer que, no caso vertente, o título de baronesa era simplesmente o equivalente feminino do título de nobreza de barão concedido ao seu esposo.

Além disso, não era proprietária do escravinho Inocêncio, haja vista seu estado civil de casada lhe impor submissão completa ao marido, posto que no mundo masculino do século XIX imperava a ideia da negação da humanidade e autonomia da mulher, a qual era tida como absolutamente incapaz e inimputável pela Constituição Imperial de 1824, condição que foi minimizada somente a partir da República, com o advento do Código Civil de 1916 (art. 6.º, inciso II), quando passou a ser considerada relativamente incapaz.

Esse estado matrimonial excluía, ao tempo da suposta consumação da infração penal suscitada, qualquer responsabilidade civil ou penal da senhora Anna Rosa Vianna Ribeiro, a qual devia ter sido atribuída ao marido dela, Senhor Carlos Fernando Ribeiro, conhecido como Barão de Grajaú, pela ausência de cuidados com a vida e a integridade física de seus escravos, entregues ou deixados sob os cuidados de uma pessoa absolutamente incapaz e inimputável, como era o caso de sua esposa.

Aliada a essas circunstâncias de ordem legislativa, histórica e social, pontua-se que a inexistência de uma criminologia feminista à época, voltada para a construção de novos paradigmas e seus vetores epistemológicos, favoreceu a incriminação exclusiva da senhora Anna Rosa Vianna Ribeiro, conquanto direcionar a acusação penal unicamente contra ela seria, a um só tempo, grandiosa oportunidade de impor ao seu marido Carlos Fernando Ribeiro, o Barão de Grajaú, manifesta desonra e humilhação pública, sob o ponto de vista jurídico, patrimonial, político, moral e familiar, considerando que a baronesa teve sua prisão preventiva decretada e foi levada a julgamento perante o tribunal do júri.

Embora a ideia a respeito de direitos do gênero humano já existisse desde a antiguidade na filosofia greco-romana, principalmente entre os estoicos, a segregação da mulher e a discriminação racial impediam o reconhecimento social de tais garantias, porque o interesse público administrado por homens brancos e machistas não lhes conferia o status dignitatis de cidadã com personalidade jurídica.

Portanto, a senhora Anna Rosa Vianna Ribeiro, Baronesa de Grajaú, e o menino Inocêncio, foram vítimas de uma sociedade patriarcal, machista e escravocrata, construída pelo domínio masculino, a partir da imposição do silêncio e do temor àqueles que tinham suas consciências domesticadas a partir de um modelo ideológico que não admitia mudança de paradigma para dar lugar de fala à mulher e ao elemento cativo.

No período do patriarcado brasileiro, a mulher era vista apenas como símbolo da função procriadora. E o escravo, simplesmente como coisa. A subordinação de ambos estava diretamente ligada ao domínio masculino do pater familiae que os via como seres alienados e inferiores, independentemente do gênero sexual ou racial.

Nem mesmo a proclamação da República modificou substancialmente o status quo ante, haja vista que a situação da mulher não melhorou. É que passou a ser relativamente incapaz, porém ainda submissa e subordinada ao marido.

Sem legislação que a protegesse, a mulher era apenas uma figura humana contingente em sua casa. Não podia votar, não tinha CPF (usava o do marido), nem título de eleitor. Em casa ou noutro local, nunca estava sozinha e precisava de autorização do marido para trabalhar, para estudar, para viajar, para ir a qualquer lugar, inclusive à igreja.

Sequer podia herdar ou ser proprietária. Caso real aconteceu no Estado do Maranhão com uma mulher casada, que foi aprovada em concurso público para exercer o cargo de promotora de justiça. Somente conseguiu tomar posse mediante a autorização do marido, por escrito.

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Situação igualmente estranha ocorreu no município de Viana, interior do Estado do Maranhão, na década de 50, do século passado, envolvendo uma mulher casada, que matou um homem, sob o argumento de que havia sofrido assédio da vítima. O delegado de polícia foi à residência onde o crime foi consumado e, entendendo que a esposa era penalmente inimputável e irresponsável, prendeu o marido, o qual foi levado a júri, contudo foi absolvido pelo soberano conselho de sentença. O fato em referência foi relatado por um dileto amigo, magistrado, historiador e membro da Academia Maranhense de Letras, em correspondência manuscrita dirigida ao autor deste estudo.

Pode-se dizer, sem a menor dúvida, que tanto a mulher como o escravo viviam numa sociedade patriarcal marcada pela discriminação, uma espécie de lugar inseguro, inóspito e insalubre, dominado por uma hierarquia tirânica de varões brancos, que nunca admitiram a possibilidade de vê-los como seres humanos.

A senhora Anna Rosa Vianna Ribeiro, Baronesa de Grajaú, objetificada como mulher, somente foi retirada da invisibilidade do lar para ser exposta publicamente aos olhos de toda a província do Maranhão, nas páginas do processo criminal e dos jornais, com o intuito de humilhar e destruir politicamente seu marido Carlos Fernando Ribeiro, o Barão de Grajaú, chefe do Partido Liberal na província do Maranhão.

Inocêncio também foi objetificado como escravo, na medida em que sua curta história, como criança negra, e sua morte prematura foram utilizadas apenas para dar fala e palanque a um promotor de justiça que buscava notoriedade e aplausos pela sua atuação acusatória, institucional, política, jornalística, patriarcal, machista e parcial.

Tudo leva a crer que o processo criminal em análise nos revela duas ocorrências trágicas: de um lado, um crime hediondo praticado contra uma indefesa criança negra; e de outro, uma acusação tendenciosa contra uma mulher branca que, pela legislação imperial, em face do seu estado civil de casada, não poderia responder criminalmente pelo fato imputado, porque não tinha a capacidade de compreender o caráter ilícito de sua conduta, porque o escravo era, à época, considerado coisa pela legislação imperial.

Aparentemente, temos um choque ou um conflito que envolve questão de gênero sexual e racial, cuja discussão não foi objeto dos debates entre o Ministério Público e a defesa, posto que a análise da hipótese restou exclusivamente concentrada sob o ponto de vista do homicídio.

Há nisto uma interseccionalidade de sexo e de raça. A baronesa, por ser mulher branca e casada. Inocêncio por ser negro e escravo, se entendermos ser possível mensurar a equiparação entre os dois paradigmas. A primeira, invisível e domesticada pela sóbria e silenciosa castidade do lar, era civilmente incapaz e penalmente inimputável; o segundo, excluído e coisificado pelo ordenamento jurídico vigente à época. Essas circunstâncias os tornaram vulneráveis ao tipo de violência que sofreram ao tempo da ocorrência dos fatos.

Cada um, de acordo com suas desigualdades sociais, sofreram opressões múltiplas e foram vítimas dos padrões instituídos por uma hegemonia social dominada por homens brancos, racistas, misóginos, sexistas, moralistas e preconceituosos, onde a disputa pelo poder patriarcal ignorava as relações interpessoais de qualquer natureza e dimensão.

O fenômeno da interseccionalidade, acima aludido, torna as duas personagens do processo crime, em análise neste livro, vítimas da opressão estrutural contra a mulher e contra o negro, porquanto não se pode afirmar, categoricamente, qual preconceito estrutural era preponderante, haja vista que ambos se equivaliam ao tempo da consumação dos fatos.

Por essa razão, suponho que tanto o escravinho Inocêncio, quanto a Senhora Anna Rosa Vianna Ribeiro foram vítimas do ordenamento jurídico vigente no Brasil Imperial, assim como da moral social que estabelecia preconceitos, sutilezas, regras, padrões, regimes e comportamentos sociais à época da ocorrência do fato.

Mas a senhora Anna Rosa Vianna Ribeiro, além de vítima do ordenamento jurídico brasileiro, foi alvo de erro judiciário grosseiro patrocinado pelo ministério público estadual e pelo judiciário maranhense, porque era absolutamente incapaz e jamais poderia ser acusada e processada judicialmente, muito menos ser presa por ordem do Tribunal de Justiça, após ter sido impronunciada pelo Juiz de Direito, o qual deveria ter rejeitado, ab initio, a peça acusatória.

O grave erro judiciário iniciou com o recebimento da denúncia do Ministério Público pelo Juiz de Direito e culminou com a prisão da baronesa por ordem injusta do Tribunal de Justiça. O abuso judicial somente cessou após sua absolvição proclamada pelo soberano conselho de sentença do júri popular.

Para concluir, trago ao conhecimento dos leitores o fato da sanção da Lei n.º 12.702, de 13 de novembro de 2025, pelo Governador do Estado do Maranhão, senhor Carlos Brandão, instituindo o “Dia Estadual de Combate à Discriminação Racial”, a ser observado anualmente no dia 13 de novembro.

Essa lei, cujo projeto é de autoria do deputado Neto Evangelista, teve como motivação a história verídica contada no livro “O CRIME DA BARONESA”, de minha autoria, porque foi no dia 13/11/1876 que o escravinho Inocêncio faleceu, supostamente em face de maus tratos e imoderados espancamentos atribuídos à Baronesa de Grajaú, Senhora Anna Rosa Vianna Ribeiro, na denúncia criminal formulada pelo Ministério Público perante a Justiça maranhense.

Sobre o autor
José Eulálio Figueiredo de Almeida

Professor de Direito Processual Penal da Universidade Federal do Maranhão - UFMA. Desembargador do TJMA. Membro da Academia Maranhense de Letras Jurídicas. Especialização em Processo Civil pela UFPE. Especialização em Ciências Criminais pelo UNICEUMA. Doutor em Direito e Ciências Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino - UMSA.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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