A assistência jurídica dos Municípios
Rodrigo Fantini Fernandes
Bacharel em Direito pela Universidade FUMEC (2003-2008). TCC: Direito de morrer: eutanásia e suicídio assistido (2008). Orientador: Luis Carlos Balbino Gambogi. Servidor público efetivo e estável. Exerceu voluntariamente a função de jurado no Tribunal do Júri. Coautor da página eletrônica https://familiafantini.com.br/ . Experiente como pesquisador histórico-genealógico, com registros públicos e na área do Direito de Família. Domina os idiomas Português, Espanhol, Italiano, Francês e Inglês (diferentes níveis de fluência). Titular da nacionalidade brasileira (“jus soli”) e da italiana ("jus sanguinis").
Sumário: 1. Introdução. 2. Competência e estrutura da defensoria pública. 3. Assistência jurídica municipal. 4. Conclusão. 5. Referências.
1. INTRODUÇÃO
No julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n° 279, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que os Municípios podem instituir serviço de assistência judiciária gratuita à população de baixa renda, de modo a ampliar o acesso à Justiça.
Entretanto, há entendimentos de que a existência de Defensoria Municipal é incompatível com a Constituição Federal, porque feriria o monopólio de atendimento das Defensorias Públicas.
Com breves considerações, o texto abaixo abordará tal questão, sumamente importante.
2. COMPETÊNCIA E ESTRUTURA DA DEFENSORIA PÚBLICA
A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do artigo 5° da Constituição Federal.1
É órgão existente apenas em âmbito federal (União), estadual (Estados) e distrital (Distrito Federal), criado mediante lei complementar, com autonomia funcional e administrativa.2
O número de defensores públicos, na unidade jurisdicional, deve ser proporcional à efetiva demanda pelo serviço da Defensoria Pública e à respectiva população.3 No entanto, na realidade brasileira, não há Comarcas em que os atendimentos sejam suficientes e não haja filas de espera. Todavia, o Estado deverá prestar a assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovem a insuficiência de recursos,4 sendo garantia fundamental a assistência jurídica gratuita aos hipossuficientes.
3. ASSISTÊNCIA JURÍDICA MUNICIPAL
Cabe destacar que o serviço de assistência jurídica às pessoas carentes é uma obrigação que deve ser cumprida, ainda que não seja pela atuação da Defensoria Pública.
O serviço de assistência jurídica é assistência pública, uma vez que promove o acesso à Justiça aos que não podem pagar advogado, garantindo-lhes igualdade de oportunidade.5
Insta ressaltar que a assistência jurídica é conceitualmente mais ampla que a assistência judiciária, já que a assistência judiciária envolve a ajuda relacionada a processo judicial, enquanto a assistência jurídica abarca outros serviços, como orientações individuais ou coletivas, esclarecimentos acerca de questões jurídicas, ainda que não estejam ligadas diretamente a processo judicial, programas informativos à comunidade.
Assistência jurídica gratuita, serviço que pode ser prestado pelo Município, visa garantir o acesso à Justiça aos carentes, tendo respaldo no art. 23, inciso II, da Constituição Federal, que estabelece ser competência comum dos entes federados cuidarem da assistência pública, tratando-se, pois, de competência administrativa.
Essa assistência pública deve ser entendida em toda a amplitude consagrada no texto constitucional, abrangendo políticas públicas assistenciais nas áreas da saúde, educação, incluindo-se a assistência jurídica. A atuação, no campo político-administrativo, permite ao Município formular política pública de atendimento jurídico aos cidadãos, garantindo-lhes as condições de efetivo exercício da cidadania.
Constitucionalmente, aos Municípios compete legislar sobre assuntos de interesse local.6 Nesse sentido, a criação de política pública municipal de acesso à Justiça, disponibilizando orientação sobre direitos e assistência jurídica às pessoas de baixa renda, é assunto de interesse local, por atingir diretamente a sua população, sendo uma atuação no âmbito político-administrativo. Não se trata, pois, de usurpação de competência da Defensoria Pública, porém, de disponibilização de assistência jurídica complementar à população carente, ampliando o acesso à Justiça, com vistas a minorar sua vulnerabilidade social e econômica.
A Lei da Hipossuficiência permite a prestação de assistência jurídica pelos Municípios à população de baixa renda, estabelecendo que a assistência judiciária aos necessitados é de responsabilidade dos poderes públicos federal e estadual, sem prejuízo da colaboração que possam receber dos Municípios. Tal colaboração inclui a prestação direta de serviços de assistência jurídica.7
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelece que a política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente deve ser um esforço compartilhado entre governo e entidades não governamentais em todos os níveis (União, Estados, Distrito Federal e Municípios).8
Ademais, os Estados e os Municípios têm responsabilidade de adaptar os seus órgãos e programas, conforme os princípios e as diretrizes do ECA.9 Dessa forma, para efetivar tais direitos, muitas vezes é necessário suporte jurídico e atuação do Poder Judiciário.
Nesse sentido, a disponibilização de Advogados pelo Município é crucial, a fim de garantir acesso das famílias carentes ou socialmente vulneráveis ao sistema de justiça, bem como a defesa de direitos de crianças e adolescentes. Saliente-se que os Advogados Municipais não atuam na Procuradoria Municipal, sendo exclusivamente ao atendimento à população carente.
Decerto que as Defensorias Públicas nos municípios não têm estruturas adequadas para o atendimento de seu público-alvo, mormente, da área de Direito de Família e que envolvem direitos de crianças e adolescentes.
Com efeito, sem a estrutura oferecida pelo Município, seus cidadãos carentes não terão o efetivo acesso à Justiça, já que o Estado não cumpre o seu papel de forma satisfatória. Logo, o Município não está a usurpar competência da Defensoria Pública, mas prestando um serviço de apoio jurídico à população carente, podendo ser um programa da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, por exemplo.
Ora, se a atividade de assistência jurídica gratuita fosse privativa do Município, não se poderiam autorizar particulares, como advogados dativos e núcleos de assistência jurídica gratuita de faculdades, a prestar serviços jurídicos gratuitos à população carente.
Nesse sentido, conforme interpretação lógico-sistemática e teleológica da Constituição Federal, os Municípios possuem competência legislativa em matéria de assistência jurídica também, ainda que o art. 24, inc. XIII, da Constituição Federal, aponte para a competência concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal.
Neste ponto, é importante salientar que não se objetiva a criação de Defensoria Municipal, mas, tão somente, a assistência jurídica municipal, para assegurar o acesso à Justiça. Não há, na Constituição Federal, o monopólio do serviço de assistência jurídica, de modo a impossibilitar, por exemplo, que núcleos de práticas jurídicas de instituições de ensino, convênios OAB (advocacia dativa), advocacia privada voluntária e gratuita (advocacia pro bono) e organizações da sociedade civil (OSCIPs) prestem aos indivíduos hipossuficientes o serviço de assistência jurídica, para que seja garantido o acesso à Justiça.
É relevante salientar ainda que, em grande parte, as demandas de assistência jurídica versam sobre o Direito de Família, abarcando, mormente, interesse de menores.
Com efeito, os Municípios podem oferecer assistência jurídica gratuita, em casos como de mulheres em situação de violência doméstica e familiar, de assistência jurídica a presos e a internados sem recursos financeiros para constituir advogado e de acesso à moradia para a população carente. Não somente isso, mas também a assistência jurídica municipal poderá colaborar, inclusive, no âmbito consumerista.
Por derradeiro, é crucial que os Municípios instituam o serviço de assistência jurídica gratuita, com estruturação de órgão específico, criação de cargos específicos e alocação de recursos no orçamento municipal, para garantir o direito de acesso à Justiça e minorar problemas sociais. Na concessão da assistência jurídica gratuita, devem ser avaliadas as situações financeiras dos cidadãos que busquem o serviço de assistência jurídica, com devida comprovação de insuficiência de recursos para arcar com honorários advocatícios. Os critérios de renda deverão ser estabelecidos em leis e normas.
4. CONCLUSÃO
A competência da prestação de assistência judiciária gratuita aos necessitados não é exclusiva da Defensoria Pública.
Os Municípios devem criar cargos de assistência judiciária (Advogado Público Municipal), por lei específica e provimento efetivo, mediante concurso público de provas e títulos, de modo a assegurar que o profissional seja vinculado somente às atribuições do referido cargo e aos interesses dos cidadãos assistidos. Juridicamente correto, garante-se, pois, a credibilidade, a independência funcional e a segurança jurídica, necessário ao exercício de tal cargo.10
Os serviços jurídicos gratuitos à população necessitada também podem ser prestados por advogados dativos, por núcleos de assistência jurídica gratuita de faculdades ou, ainda, por projetos voluntários. Ampliado o acesso à Justiça, os cidadãos carentes terão opções.
Contudo, tal como o Ministério Público, a Defensoria Pública tem a prerrogativa legal para defender os interesses sociais em ações que busquem proteger direitos de grande número de pessoas (difusos, coletivos e individuais homogêneos).11
A assistência jurídica do Município, prestando serviço diretamente à população local, não se enquadra no rol de legitimados para propor ações civis públicas ou impetrar mandado de segurança coletivo.
5. REFERÊNCIAS
Constituição Federal.
Lei Federal n° 1.060/1950.
Lei Federal n° 8.069/1990.
Lei Complementar Federal n° 80/1994.
Lei Federal n° 7.347/1995.
NOTAS
1. Art. 134, caput, CF/1988.
2. Art. 134, §§ 1° e 2°, CF/1988.
3. Art. 98, caput, CF/1988.
4. Art. 5°, inc. LXXIV, da CF/1988.
5. Art. 5º, caput, CF/1988; Art. 5°, inc. XXXV, CF/1988.
6. Art. 30, inc. I, CF/1988.
7. Art. 1°, Lei n° 1.060/1950.
8. Art. 86, Lei n° 8.069/1990.
9. Art. 259, parágrafo único, Lei n° 8.069/1990.
10. A impessoalidade, a legalidade e a eficiência são princípios fundamentais do Direito Administrativo (art. 37, caput, CF/1988).
11. Art. 4°, inc. VII, Lei Complementar Federal n° 80/1994; Art. 5°, inc. II, Lei Federal n° 7.347/1995.