A CLASSIFICAÇÃO DE "BATMAN – O CAVALEIRO DAS TREVAS"
No "caso Batman", o Ministério da Justiça, por seu Departamento de Justiça, Classificação, Títulos e Qualificação da Secretaria Nacional de Justiça – DEJUS/MJ, parece ter tido uma visão pouco rigorosa dos parâmetros estabelecidos no próprio Manual de Classificação Indicativa instituído por aquele órgão de governo. Vejamos alguns itens destacados do referido manual (disponível no sítio do Ministério na internet).
Em dada altura se diz:
A idéia central desses critérios de análise é valorizar as programações que tragam comportamentos constitucionalmente desejáveis. Ou seja, programas que ressaltem atitudes que contribuam para transformar crianças e adolescentes em indivíduos mais harmônicos com o restante da sociedade e respeitadores dos direitos humanos.
Batman mostra-se um justiceiro que se sobrepõe à legalidade, com métodos violentos e vingativos. É óbvio que essa postura, além de não contribuir para a formação do comportamento constitucionalmente desejado, nem para a harmonia do indivíduo com a sociedade, muito menos ainda, para a compreensão dos direitos humanos, não parece ajudar a psique de crianças de 08, 06 ou 02 (!!) anos, a desenvolver outro parâmetro importante visado pela classificação, qual seja, conforme a expressão que consta do Manual:
Cultura de paz.
Batman não é um exemplo de resolução pacífica de conflitos. Parece que o Ministério se intimidou frente ao "vingador mascarado" também no cumprimento dos itens que seguem:
Formas de análise e interpretação que podem REDUZIR a gradação das tendências Conteúdos Violentos:
• Apresentação de formas alternativas de resolução de conflitos;
• Apresentação das conseqüências da violência para as vítimas de forma não sensacionalista, ou seja, a cena deixa claro o fato de que ser vítima de violência implica seqüelas (físicas, emocionais, financeiras, sociais etc), entretanto, o faz sem amplificar a exposição destas mesmas conseqüências, sem apelar para a exploração das condições em que se encontram as vítimas;
• Há condenação à violência;
• A violência é apresentada dentro de um contexto de fantasia onde fica clara a sua não correspondência com a realidade;
• A apresentação de fundo musical minimiza o conteúdo violento;
• A apresentação de sonoplastia minimiza o conteúdo violento;
• O enquadramento da imagem minimiza o conteúdo violento;
Formas de análise e interpretação que podem ELEVAR a gradação das tendências Conteúdos Violentos e envolvendo Drogas:
• Apresentação de violência como a única forma ou a forma predominante de resolução de conflitos;
• Apresentação de realização de justiça com as próprias mãos;
• Presença de violência do tipo "mocinhos batem em bandidos";
• Perpetração de violência por personagens de imagem valorizada (os mais bonitos, os mais sadios, os mais inteligentes, os heróis);
• Apresentação de cenas de vítimas em estado de agonia;
No filme, a justiça é feita pelas próprias mãos do "mocinho". O filme é realista. Não há fantasia. Por isso é tão assustador que o Coringa seja tão crível (e, em muitos casos, sabemos, existente, atuante e ativo). Vítimas são mostradas em estado de agonia e deformidades horríveis são mostradas como seqüelas. Trilha sonora, sonoplastia e edição valorizam o conteúdo violento. A violência não é condenada, na verdade vencida pela violência maior. Logo, é admitida como ferramenta redentora da caótica "Gotham City".
Em meu entendimento, data venia, caberia revisão da classificação indicativa para faixa superior. Entretanto, isso não impediria a desatenção ou negligência parental, já que a portaria só institui vedação absoluta na faixa de 18 anos. Nesta, mesma acompanhados, menores não podem entrar. Em todas as demais, apenas acompanhado do responsável ou por este autorizado, o jovem ou criança pode ter acesso à obra indicada para idade superior à sua.
Houve uma portaria anterior do Ministério da Justiça, a de nº 1.597, que chegou a ser mais rigorosa, admitindo o acesso em faixa de classificação superior das crianças ou adolescentes com idade enquadrável na faixa imediatamente anterior (crianças de 10 e 11 anos poderiam entrar, acompanhadas ou autorizadas, em filmes classificados para 12 anos, mas não o fariam nas classificações para idades superiores e assim sucessivamente). Como essa ferramenta não existe mais, resta apelar à consciência dos pais.
O mecanismo atual produz um absurdo. É impossível a um pai permitir o ingresso de seu filho de 17 anos em um filme classificado para 18 anos. Mas o mesmo pai pode levar seu filho de 05 anos ao filme classificado para 16 anos! Ora, em qual situação mais se violenta o direito da criança e do adolescente?
Em Teresópolis, considerando a violência apresentada na película, o assunto foi tratado com base na Portaria nº 03/06, da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso daquela Comarca, baixada pela MMª Inês Joaquina Sant’Ana Santos Coutinho [10] que, num dos seus artigos determina a proibição, a crianças e adolescentes, de produtos que estimulem a violência, como se vê:
Art. 18. PRODUTOS PROIBIDOS A MENORES - É proibido o fornecimento, a venda ou locação a crianças e adolescentes de:
(...)
II – quaisquer produtos eróticos, que contenham ilustração ou mensagem obscena ou pornográfica, estimulem a violência (Lei Estadual nº 2.918, de 20/04/1998) ou façam apologia ao uso de drogas, de bebidas alcoólicas ou de quaisquer outras substâncias que possam causar dependência física ou psíquica a crianças e adolescentes, inclusive jornais, revistas, livros, fitas de vídeo, CD-ROM, DVD, disquetes, programas de computador, cartuchos de jogos eletrônicos e similares.
Entretanto, a proibição é relativizada pela possibilidade da interferência parental na decisão sobre o fornecimento/exibição do produto. Isso porque o parágrafo 4º do mesmo artigo reporta-se à Portaria 1.100 do Ministério da Justiça.
Parágrafo quarto. Os cinemas, as locadoras, lan-houses e as empresas que efetuem exibição, venda ou locação de produtos sujeitos à classificação indicativa do Ministério da Justiça deverão cumprir as determinações de alerta aos pais, constantes da Portaria 1.100 do Ministério, mediante placas, cartazes e catálogos informativos, bem como manter nos produtos a marca da classificação determinada, obedecendo, na inexistência de ordem conflitante da autoridade judiciária, à coleta de autorização formal dos responsáveis legais do adolescente, em caso de se proceder à cessão, exibição, venda ou locação de produtos de faixa etária superior, mantendo-as em arquivo próprio no estabelecimento para fiscalização do Conselho Tutelar, do Ministério Público, e do Comissariado de Justiça.
A Portaria Ministerial referida traz no rol de consideranda, os seguintes parâmetros:
- a responsabilidade dos pais no exercício do poder familiar, de acordo com os arts. 1.630 e seguintes da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil;
- a co-responsabilidade da família, da sociedade e do Estado na garantia à criança e ao adolescente do direito à educação, ao lazer, à cultura e à dignidade, de acordo art. 227 da Constituição Federal;
Logo, se é que não podemos, a esta altura, interferir na classificação indicada pelo Ministério da Justiça, e presente a realidade de estarem as salas de exibição repletas de crianças ainda em primeira infância, o que é absolutamente inadequado, cabe-nos ativar os dispositivos legais que instrumentalizam a orientação e advertência aos pais, para que melhor decidam.
Diversos artigos da Portaria do Ministério da Justiça, dizem respeito ao caso, todos exigindo ampla divulgação da indicação etária e das características do produto audiovisual, como forma de alerta aos pais. Seguem os artigos, com os grifos que achei mais relevantes:
Art. 13. Sob pena de constituir infração tipificada nos arts. 252 e 253 do Estatuto da Criança e Adolescente, compete aos produtores, distribuidores, exibidores ou responsáveis por diversões públicas, anunciar e afixar, em lugar visível e de fácil acesso, à entrada do estabelecimento, informação destacada sobre a natureza da diversão e sobre a faixa etária para a qual não se recomende.
Parágrafo único. As informações de que trata o caput deste artigo deverão ser produzidas, fornecidas e veiculadas de acordo com os parâmetros estabelecidos no Manual de Classificação Indicativa.
Art. 15. A produtora, exibidora, distribuidora, locadora e congêneres, ao realizar a exibição ou comercialização de diversão pública regulada por esta Portaria, fornecerá e veiculará a informação e o símbolo identificador a ela atribuído na Classificação Indicativa, nos termos do Manual de Classificação Indicativa.
Parágrafo único. O símbolo e informação de que trata o caput deste artigo deverá ser veiculado de acordo com o seguinte exemplo: NÃO RECOMENDADO PARA MENORES DE XX ANOS, e ainda, com a descrição objetiva das inadequações de conteúdo e do tema.
Art. 16. O responsável pelo estabelecimento de exibição, locação e revenda de diversões públicas reguladas por esta Portaria, deverá afixar em local de fácil leitura, a seguinte informação: "O Ministério da Justiça recomenda: Srs. Pais ou Responsáveis, observem a classificação indicativa atribuída a cada diversão pública. Conversem com as crianças e adolescentes sobre as inadequações indicadas antes de exibir conteúdo impróprio à sua faixa etária".
Art. 18. A informação detalhada sobre o conteúdo da diversão pública e sua respectiva faixa etária é meramente indicativa aos pais e responsáveis que, no regular exercício de sua responsabilidade, podem decidir sobre o acesso de seus filhos, tutelados ou curatelados a obras ou espetáculos cuja classificação indicativa seja superior a sua faixa etária.
Parágrafo único. O acesso de que trata o caput deste artigo está condicionado ao conhecimento da informação sobre a classificação indicativa atribuída à diversão pública em específico.
Parece-me que os alertas tanto no cinema de Teresópolis, quanto em muitos outros, não têm observado os cuidados devidos, nem quanto à forma, nem quanto ao conteúdo e muito menos no que concerne à ênfase necessária. Note-se que há um padrão de cartaz de alerta determinado pelo Ministério da Justiça na Portaria 1.100, que muitos exibidores não observam.
Quanto à possível infração administrativa, ela ocorreria, como prevê a portaria ministerial, por descumprimento dos artigos que seguem anotados:
Art. 252. Deixar o responsável por diversão ou espetáculo público de afixar, em lugar visível e de fácil acesso, à entrada do local de exibição, informação destacada sobre a natureza da diversão ou espetáculo e a faixa etária especificada no certificado de classificação: Pena - multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência.
Art. 253. Anunciar peças teatrais, filmes ou quaisquer representações ou espetáculos, sem indicar os limites de idade a que não se recomendem: Pena - multa de três a vinte salários de referência, duplicada em caso de reincidência, aplicável, separadamente, à casa de espetáculo e aos órgãos de divulgação ou publicidade.
Na Comarca de Teresópolis a gerência do cinema foi intimada para cumprimento da Portaria do Juízo (que remete à Portaria Ministerial), afixando os avisos devidos e efetuando os alertas aos pais com maior rigor.
CONCLUSÃO
Esperamos ter demonstrado que houve, no mínimo, imprudência na atribuição da faixa classificatória, pelo Ministério da Justiça, a um filme tão violento. Por isso a conclusão é a de que "O Cavaleiro das Trevas explodiu a classificação indicativa". Esperemos que não tenham falado mais alto os interesses econômicos. Até porque José Mojica Marins, cujo mais recente filme, "Encarnação do demônio", foi classificado pelo Ministério da Justiça como adequado para maiores de 18 anos, protestou dizendo: "Para os gringos [filmes estrangeiros] eles dão uma classificação bem menor. O ´Batman [O Cavaleiro das Trevas]´ teve classificação de apenas 12 anos e é um filme bem violento!". [11]
Sabemos que o protesto de Zé do Caixão não é infundado. Em tese, quanto maior a restrição etária, menor a bilheteria. Por isso as major americanas lutam tanto para fazer prevalecer a classificação etária que permita o acesso de seu maior consumidor, o público infanto-juvenil.
Não valeria a pena me alongar sobre as incoerências da classificação e suas motivações. Entretanto, um último registro. No sábado, dia 30/08/08, no canal MGM, assisti às 04 horas do filme Caravaggio, produção da RAI, a estatal italiana de televisão. Sabemos que aquele fabuloso pintor era também bissexual, inclusive já tendo o cineasta inglês Derek Jarman produzido versão bem explícita de sua biografia que realçava esse aspecto. Entretanto, a produção italiana, além de ter cuidado de mostrar mais os relacionamentos heterossexuais do pintor, é muito econômica nas cenas de sexo ou de violência, privilegiando o lado aventuresco e os conflitos artísticos do gênio. Pois bem, sabem qual a classificação do filme, de conteúdo, até certo ponto, pueril? 14 anos! Ou seja, as agruras do pintor quinhentista foram consideradas mais gravosas do que as aventuras sombrias do Cavaleiro das Trevas.
Concluindo, permito-me a petulância de sugerir maior rigor aos classificadores. Devem ter presente que, num país de tradição autoritária como o Brasil, a chancela estatal raramente é contestada. A transferência de poder decisório aos pais, por isso, deve ser prudente. Eles tenderão a abdicar de seus próprios juízos de valor, já que alguém já ‘pensou por eles’. Também os exibidores deveriam exercer maior divulgação das restrições que levaram à classificação. Os Juízes da Infância e da Juventude podem, também, contribuir fiscalizando os estabelecimentos por seus Comissários, o que também pode fazer o Conselho Tutelar. Devemos todos lembrar que a diretriz da proteção integral a crianças e adolescentes, conforme o art. 227 da Constituição Federal, exige a aplicação do princípio da precaução, conforme estipulado no art. 70 do ECA.
CF/88 - "Art. 227 (caput). É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão."
ECA - "Art. 70. É dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente."
Crianças e adolescentes são seres em fase especial de formação da personalidade. Não podem ser expostos a violência de qualquer ordem, ainda que virtual. Cabe a todos efetuar essa proteção.
NOTAS
- "The Dark Knight", produção de 2008, da Warner Brothers, com direção de Christopher Nolan, tendo Cristian Bale no papel principal e Heath Ledger como o vilão "Coringa".
- Conforme consta em "Classificação do último ´Batman´ não é unânime" de Luiz Felipe Rodrigues, no Diário de Noticias de Lisboa, edição on-line de 10/08/08: "(...) Esta questão não tem sido levantada pela imprensa portuguesa, mas nos meios de comunicação anglo-americanos muitos comentadores criticam a classificação atribuída ao filme. O deputado britânico Keith Vaz declarou também que o filme não é recomendável para crianças, pois mostra facas, algo que não pode ocorrer num objecto classificado como 12A. No Reino Unido, para receber esta classificação, um filme não pode "cingir-se à violência", nem "colocar ênfase na lesão ou na representação de sangue". A British Board of Film Classification (BBFC) não pretende, porém, alterar a classificação do filme (12A). No entanto, em declarações à BBC, um porta-voz do comité admitiu que chegaram a equacionar classificá-lo com o rótulo "15". (...)"
- Conforme reportagem "Violência na TV não provoca comportamento violento da criança", na internet no endereço: http://www.comciencia.br/reportagens/violencia/vio07.htm.
- Conforme o artigo "Sobre a mídia, a infância e a adolescência", dos psicólogos Fernando Falabella Tavares de Lima e Eliane Scherb no sítio http://www.netpsi.com.br/artigos/98_midia_infancia.htm.
- Conforme consta em: http://www.saudela.com/edicoes/2003/abril/principal.asp?send=pedagogia.htm.
- "Redução da Maioridade Penal – Uma questão ética", disponível em alguns sítios na Internet.
- Conforme a investigadora Cecília Von Feilitzen, no texto "Crianças e Tv: perigos de uma coexistência desregrada" constante no endereço www.saudelar.com/edicoes/2003/abril/principal.asp?send=pedagogia.htm
- Em http//www.ufrgs.br/psiq/vio_impa.html
- Idem.
- Portaria baixada nos autos 2006.061.006391-2, em procedimento com respeito ao contraditório e à ampla defesa, nos termos da Resolução 30/06 do Conselho da Magistratura do TJ-RJ. Sobre o tema, estão publicados na internet os seguintes trabalhos deste autor: "O Edifício da Proteção Integral Precisa de Portaria – sobre a edição de portarias normativas pelo Juiz da Infância e da Juventude" (http://jus.com.br/artigos/9632), "É possível a edição de portarias normativas pelo Juiz da Infância e da Juventude" (http://www.clubjus.com.br/?artigos&ver=2.19733) e "Roteiro Básico para Edição de Portaria Normativa Pelo Juiz da Infância e da Juventude com base na Resolução 30/06 do Conselho da Magistratura do Rio de Janeiro" (http://www.clubjus.com.br/cbjur.php?artigos&ver=2.20086&hl=no).
- Folha online de 12/08/08. Declarações ao jornalista Miguel Arcanjo Prado.