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Registro de aposentadorias e pensões, o devido processo legal e a Súmula Vinculante n° 3

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7. A função exercida pelo Tribunal de Contas.

O Tribunal de Contas é órgão administrativo integrante do Poder Legislativo que o auxilia na fiscalização contábil, financeira e orçamentária do Poder Executivo. Não exerce, por conseqüência, função jurisdicional, sendo as decisões que profere de natureza administrativa [18].

Esse entendimento não é significativo de que suas decisões sejam desprovidas de validade e eficácia no plano em que proferidas. Elas são obrigatórias para os órgãos administrativos, que não podem ignorá-las ou desconsiderá-las, conquanto possa o Poder Executivo, se discordar da hermenêutica adotada, discuti-la no âmbito do Poder Judiciário [19]. Embora não seja freqüente esse tipo de litígio, nada impede que a União ou entidade federada, dissentindo, v.g., da exegese sustentada pelo Tribunal de Contas quanto à contagem de tempo de serviço ou de contribuição para efeito de aposentadoria, ou relativamente à inclusão, ou não, de determinada gratificação no cálculo dos proventos, procure no âmbito jurisdicional sustentar a correção do entendimento manifestado por sua Procuradoria Geral.

Não se pode perder de vista que o Tribunal de Contas, além de ser órgão de outro Poder, porque auxiliar do Legislativo, desempenha funções de relevância ímpar que lhe são cometidas pela própria Constituição Federal. Ao considerar certos atos administrativos de suma importância para a economia e as finanças públicas, o constituinte optou por sujeitá-los a regime especial de fiscalização e controle, cuja competência atribuiu a órgão do Poder Legislativo, porque a este cometeu a atribuição exclusiva de fiscalizar e controlar os atos do Poder Executivo (CF, art. 49, X).

O registro de aposentadorias e de pensões é uma das relevantes atribuições constitucionais conferidas ao Tribunal de Contas e deve ser interpretado no contexto da importância institucional desse órgão. A Administração Pública pode anular seus próprios atos quando portadores de vício de ilegalidade (Súmula 473), mas a peculiaridade dos atos administrativos de concessão desses benefícios é a de poderem ter sua eficácia e exeqüibilidade sustadas por órgão auxiliar do Poder Legislativo, ao qual a Constituição conferiu a competência fiscalizadora de controle externo. Se a Lei Maior lhe atribuísse a tarefa de simples registradora dessas concessões, a função fiscalizadora restaria inócua porque, ainda que detectasse ilegalidade, a Corte de Contas não disporia do dever-poder de paralisar os efeitos do ato ilegal. Sua manifestação valeria como mera recomendação, sem eficácia específica, porque o ato continuaria a produzir todos os efeitos até então gerados até que a própria Administração, convencida da ilegalidade apontada, o anulasse pela via adequada.

Do ponto de vista da efetividade prática e concreta, a decisão do Tribunal de Contas denegatória do registro surte os mesmos efeitos da decisão proferida pela autoridade administrativa competente que, detectando vício de ilegalidade, anula o ato de concessão. A negativa de registro de aposentadoria acarreta para o jubilado a perda do direito à percepção dos proventos e obriga-o a retornar à atividade. Essas conseqüências, idênticas às resultantes da anulação administrativa do ato de concessão, geram a desconstituição do ato praticado pela Administração. Por conseguinte, a decisão denegatória do registro proferida pela Corte de Contas consubstancia ato resolutivo da concessão.

Sendo assim, tem-se que a concessão da aposentadoria e da pensão não é ato complexo, mas sim ato sujeito a condição resolutiva, que se implementará se o Tribunal de Contas negar-lhe o registro.

Pode-se equiparar o registro a cargo da Corte de Contas ao ato ad referendum, que, na lição de Caio Tácito, "tem como motivo determinante a urgência no resultado pretendido, é de natureza provisória, sujeito a condição resolutiva" [20].


8. Economia processual e menor onerosidade.

Conceba-se, por apego a conceitos enraizados, que o interessado não deva ser ouvido quando o Tribunal de Contas houver de decidir pela denegação do registro. Que lhe restará ao saber que sua aposentadoria ou pensão cessou de produzir os efeitos que, até então, surtira? Salvo a hipótese de sua aquiescência, não terá alternativa que a de invocar a tutela judicial. Proporá, destarte, a ação apropriada para desconstituir a decisão e manter o direito à percepção do benefício. E certamente argüirá desrespeito ao devido processo legal, afronta ao direito de defesa e do contraditório, porque, queira-se ou não, ele, sem ter ciência de que seu direito ao benefício se encontrava em discussão e – mais grave – sem ter a possibilidade de aduzir suas razões fáticas e jurídicas, foi privado desse bem. Essa abrupta supressão, quando atinge aquela parcela da população desprovida de outros recursos, significa a privação do único bem revestido de conteúdo econômico e destinado à subsistência do interessado e de sua família.

Caso o Judiciário acolha a argüição, tal como se deu no MS 24.927-7-RO, tornará a querela ao seio da Corte de Contas para, assegurada a oitiva do interessado, nela se reapreciar o tema central, qual seja, o direito ao benefício. Movimentou-se a máquina judiciária e, por tal razão, despenderam-se recursos humanos e materiais sem que o litígio, agora renovado, houvesse sido solucionado. Não é, com certeza, procedimento que privilegie o princípio da economia processual, agora inscrito na Lei Magna na medida em que "a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação" (CF, art. 5°, LXXVIII, acrescido pela EC 45/2004).

Quando o Tribunal de Contas, sem ouvir o interessado, denega o registro da aposentadoria ou da pensão, impõe-se-lhe o ônus de ir a juízo, suportar os dispêndios de uma demanda e aguardar por tempo hoje imprevisível seu desfecho, sem contar o mais angustiante de todos, que é a privação, enquanto durar o processo judicial, do bem que lhe foi subtraído. Entretanto, se de outra forma se concebesse o problema e sua solução, facultar-se-ia ao interessado a exposição, no âmbito administrativo, de suas razões fáticas e jurídicas, concluindo-se, depois de assegurado o devido processo legal, pelo registro ou por sua denegação. Ocorrendo a negativa devidamente fundamentada, como deve ser todo ato ou decisão administrativa – e o Tribunal de Contas não escapa aos ditames, entre outros, do art. 37 da Constituição – não poderia o interessado convencer-se do acerto dessa deliberação e aceitá-la? A probabilidade de um comportamento dessa natureza deve ser admitida, o que eliminaria a invocação jurisdicional de tutela jurídica. Difícil é, com certeza, alguém se convencer da inexistência de seu direito, seja aos proventos da aposentadoria, ao benefício da pensão ou a qualquer outro bem, sem ter a oportunidade de pronunciar-se no tempo e modo devidos. Menos ainda quando, impedido de expor suas razões, o ato que o priva desse bem não se apresenta adequadamente fundamentado e, por força mesmo da infringência ao devido processo legal, não repele a argumentação que ele julga militar em prol de seu direito. Seja qual for o comportamento do interessado ante a negativa de registro, certo é que a escorreita obediência ao devido processo legal acarreta-lhe um gravame infinitamente menor. Ainda que inconformado com a denegação do registro, mas tendo sido ouvido antes dessa decisão, sua insatisfação voltar-se-á, unicamente, contra os fundamentos da decisão desfavorável, incumbindo-lhe demonstrar que ela não encontra amparo nos fatos e no direito aplicável. Não terá, entretanto, como na hipótese decidida no MS 24.927-7-RO, de aguardar nova decisão do Tribunal de Contas e de tornar, talvez, a debatê-la no Judiciário. O princípio da menor onerosidade é vinculativo para Administração e de sua observância não está exonerada a Corte de Contas. É decorrência inevitável do princípio da economia processual, constituindo-se em instrumento que garante a celeridade da tramitação do processo e, principalmente, de solução do litígio.


9. Conclusão.

A Súmula Vinculante n° 3 tem por inaplicável o princípio do devido processo legal, de que são corolários os princípios do contraditório e da ampla defesa, quando o Tribunal de Contas aprecia a legalidade do ato de concessão inicial de aposentadoria e pensão.

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Por ocasião do julgamento do MS 24.927-7-RO, embora alguns Ministros da Suprema Corte tenham reiterado o entendimento jurisprudencial cristalizado na parte final dessa súmula, o voto condutor do aresto, pelo menos, dele se afastou, sustentando a inviabilidade constitucional de, sem ouvir-se o interessado, negar-se o registro de pensão que vinha sendo paga há mais de quatro (4) anos e, por conseqüência, suprimir-se o pagamento desse benefício. Embora as peculiaridades do caso apreciado possam ensejar a interpretação de que foi em razão delas que a maioria do plenário acompanhou o voto do relator Ministro Cezar Peluso, não se pode ignorar que a decisão do tribunal afastou-se da exegese consagrada pela súmula.

Como explicitado por alguns votos proferidos nesse julgamento, em consonância com precedentes do próprio tribunal, o fundamento essencial dessa compreensão é a de que a concessão da aposentadoria e da pensão é um ato complexo. Conseqüentemente, seu aperfeiçoamento, validade e eficácia dependeriam de manifestação favorável do Tribunal de Contas, que integraria o ato administrativo. Essa interpretação, no entanto, é passível de contradita. As lições colacionadas demonstram não ser dessa natureza o ato de concessão, havendo decisão do plenário da Suprema Corte, proferida quando diversa era sua composição, asserindo, textualmente, que "a aprovação da aposentadoria de servidor da União pelo Tribunal de Contas não compõe, não integra o ato que a tenha outorgado".

De outra parte, é sustentável que a hermenêutica adotada pela parte final da súmula não convive harmonicamente com o princípio do devido processo legal. Que a negativa de registro do ato de concessão tem por efeito imediato a supressão do pagamento do benefício é fato inquestionável. Sendo assim, não há como negar que decisão dessa natureza subtrai do jubilado ou do pensionista, sem lhe ter facultado sua oitiva, bem que até então compunha seu patrimônio.

Além do mais, a fria aplicação da parte final da súmula maltrata o inciso LXXVIII, do art. 5° da Lei Fundamental, que a todos assegura, no âmbito judicial e administrativo, "a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação". Deixar de ouvir o interessado sobre os fatos e o direito que embasaram sua aposentadoria ou pensão é desatender também aos princípios da economia processual e da menor onerosidade possível.

Deve-se, portanto, reexaminar essa questão em busca de interpretação que dê efetividade a todos os princípios constitucionais, transformando o processo administrativo em instrumento de real e eficiente solução de conflitos de interesses.


Notas

  1. "Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete: (...) III - apreciar, para fins de registro, a legalidade dos atos de admissão de pessoal, a qualquer título, na administração direta e indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, excetuadas as nomeações para cargos em comissão, bem como a das concessões de aposentadorias, reformas e pensões, ressalvadas as melhorias posteriores que não alterem o fundamento legal do ato concessório".
  2. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 33ª ed., 2007, Malheiros, p. 150. Para este autor o ato administrativo "é toda manifestação unilateral de vontade da Administração Pública que, agindo nessa qualidade, tenha por fim imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar, extinguir e declarar direitos, ou impor obrigações aos administrados ou a si própria".
  3. Mandado de Segurança (MS) 21.466-DF, STF-Pleno, RTJ 153/151.
  4. BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil (obra em conjunto com Ives Gandra Martins), 1989, Saraiva, 2° vol., p. 261.
  5. CRETELLA JR, José. Comentários à Constituição de 1988, 1ª ed., 1989, Forense, vol. I, p. 530.
  6. NERY JÚNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria Andrade. Constituição Federal Comentada e legislação constitucional, 2006, Revista dos Tribunais, p. 134.
  7. CASTRO LOPES, Maria Elizabeth de. Reflexões sobre o devido processo legal e a execução civil, em Processo e Constituição – Estudos em homenagem ao Professor José Carlos Barbosa Moreira, 2006, Revista dos Tribunais, p. 389.
  8. SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição, 2005, Malheiros, p. 154.
  9. MS 23.550-1-DF, Pleno, DJU de 31.10.2001.
  10. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, Malheiros, 18ª ed., 2005, p. 396.
  11. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, Atlas, 15ª ed., 2003, p. 215.
  12. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, Malheiros, 33ª ed., 2007, p. 173.
  13. TÁCITO, Caio. Ato ad referendum. Ratificação. Sanatória em Temas de Direito Público (Estudos e Pareceres), Renovar, 2º vol., p. 1.098.
  14. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de Direito Administrativo, Malheiros, 18ª ed., 2005, p. 387.
  15. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, Malheiros, 33ª ed., 2007, p. 159.
  16. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, Malheiros, 33ª ed., 2007, p. 160.
  17. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, Malheiros, 33ª ed., 2007, p. 160.
  18. Cfr. minha Eficácia das Decisões dos Tribunais de Contas, RDA 185/63, julho/setembro – 1991.
  19. Cfr. minha Eficácia das Decisões dos Tribunais de Contas, RDA 185/63, julho/setembro – 1991.
  20. TÁCITO, Caio. Ato ad referendum. Ratificação. Sanatória. Temas de Direito Público (Estudos e Pareceres), Renovar, 2º vol., p. 1.099.
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Sobre o autor
Antonio Joaquim Ferreira Custódio

Advogado. Procurador do Estado de São Paulo aposentado. Autor de "Constituição Federal Interpretada pelo STF" (Juarez de Oliveira, 9ª edição).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CUSTÓDIO, Antonio Joaquim Ferreira. Registro de aposentadorias e pensões, o devido processo legal e a Súmula Vinculante n° 3. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1947, 30 out. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11904. Acesso em: 25 abr. 2024.

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