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A propaganda governamental no diálogo entre Estado e sociedade

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4. Controle dos atos do Poder Público relacionados à propaganda governamental

As considerações feitas acima teriam pouco relevo, se não se tratasse, também, no presente estudo, de instrumentos de controle utilizáveis para conter abusos ou desvios com propagandas governamentais.

Inicialmente, deve-se observar que tanto é certo destinarem-se muitas vezes as campanhas institucionais não a realizar um diálogo verdadeiro entre sociedade e Estado, mas sim a promover a imagem de governantes que a Justiça Eleitoral, interpretando o art. 73 da Lei 9.504/97, vem impedindo a divulgação de propagandas governamentais no período de três meses que antecede cada pleito [13], sobre o fundamento de possível violação à isonomia entre candidatos. Ou seja, a propaganda institucional inegavelmente possibilita, com grande facilidade, a promoção de agentes públicos.

Seja como for, considerando o montante da verba utilizada na realização de propaganda, agride a sensibilidade jurídica negar a concretização de um direito fundamental, sob o pretexto de que o Estado não dispõe de meios materiais (verba) para cumprir seus deveres constitucionais, quando se sabe que dispõe, sim, de verba destinada a divulgar a imagem de um mesmo Estado próspero, o que contradiz a negativa de entrega do direito pleiteado.

Dessa forma, assim como outrora a Ciência Jurídica avançou para possibilitar o controle da atuação estatal por meio de princípios, é preciso entender que a juridicidade desses princípios tem por fim possibilitar a efetivação do Estado Social.

É inteiramente retrógrado afirmar que referido controle viola a separação de Poderes. Afinal, quando Montesquieu apontou as formas de interseção entre poderes, o Estado não tinha a feição de agora. A propósito, o que caracteriza o Estado Social? Apesar de genérica, pode-se afirmar que a resposta é: um dever geral de solidariedade.

Arrecada-se mais com finalidades sociais específicas. Se, por um lado, o cidadão se compromete a colaborar mais, o Estado se compromete a atuar em áreas específicas que possibilitem o desenvolvimento individual e social.

Ora, de nenhuma utilidade teria limitar constitucionalmente os gastos do Estado se, em verdade, a adequação desses gastos não fosse controlável por outro Poder, pois a cada dever jurídico deve corresponder a possibilidade de seu controle.

Seguindo essa linha de raciocínio, recentemente o Tribunal Regional Federal da 5ª Região proferiu decisão notável. No julgado, examinava-se o dever de Estado-membro de assegurar o pagamento de tratamento fora de domicílio, através de repasse de verbas do SUS. Como defesa, o Estado-membro, precisamente o Estado do Rio Grande do Norte, invocou o argumento de que o pagamento de diárias com tratamento fora de domicílio comprometeria o equilíbrio das contas públicas. Examinando o orçamento, porém, os Desembargadores Federais constataram a destinação de verbas para a realização de propaganda governamental. Diante desse fato, concluíram que o custeio dos tratamentos fora de domicílio não afetaria o equilíbrio das contas públicas, já que tanto o Estado dispunha de verba, que a estava destinando a realizar ato de somenos importância, considerando seus próprios fins. A própria ementa do acórdão é longa, mas destacamos alguns trechos elucidativos sobre a questão.

"PROCESSUAL CIVIL, CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TFD - TRATAMENTO FORA DO DOMICÍLIO. SUS - SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE. DIÁRIAS. PORTARIA Nº 55/99 DO MINISTÉRIO DA SAÚDE. REGULAMENTAÇÃO. OMISSÃO DA ENTIDADE FEDERADA. RESPONSABILIDADE. CONDENAÇÃO. NÃO PROVIMENTO DOS RECURSOS.

- Recurso necessário (tido por interposto) e voluntário contra sentença de procedência do pedido formulado em ação civil pública, tendo sido condenado o Estado do Rio Grande do Norte no pagamento de diárias, para despesas com alimentação e pernoite, aos cidadãos necessitados do TFD - Tratamento Fora do Domicílio do SUS - Sistema Único de Saúde e seus acompanhantes, tendo como valores mínimos os previstos na tabela de referência da Portaria nº 55/99 do Ministério da Saúde.

(...)

- Nos termos da Norma Constitucional (arts. 5º, 6º e 196), o direito à saúde é marcado por sua "fundamentalidade", considerando-se mesmo que sua garantia é expressão de resguardo da própria vida, maior bem de todos, do qual os demais direitos extraem sentido. Analisando o conceito de "fundamentalidade", J J Gomes Canotilho concebe-o sob duas perspectivas: a "fundamentalidade formal", correspondente à constitucionalização, à localização de direitos reputados fundamentais no ápice da pirâmide normativa, com as conseqüências desse fato derivadas – demarcação das possibilidades do ordenamento jurídico e vinculatividade dos poderes públicos –, e a "fundamentalidade material", identificadora dos direitos fundamentais a partir do seu conteúdo "constitutivo das estruturas básicas do Estado e da sociedade", permissiva do reconhecimento de outros direitos não expressamente tipificados no rol constitucional, mas equiparáveis em dignidade e relevância aos direitos formalmente constitucionais ("norma de fattispecie aberta"). Em ambas as visões, exsurge a magnitude da essencialidade, embora seja patente a maior significância compreensiva da segunda. "No qualificativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que todos, por igual, devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados" (José Afonso da Silva). Os direitos fundamentais cumprem, nessa contextura, determinadas funções: exigem prestações do Estado, protegem diante do poder público e de terceiros, fomentam a paridade entre os indivíduos, designam os alicerces sobre os quais se constrói e se orienta o ordenamento jurídico ("eficácia irradiante"). Têm força, ao mesmo tempo, por assim dizer, de princípio e de regra.

(...)

- Se o Estado-membro, confessadamente, não está honrando com a obrigação de pagar as diárias para os trajetos interestaduais, como lhe compete, na distribuição das incumbências entre os entes da Federação, em relação à saúde, e, particularmente, se ele se omitiu, deixando de expedir, como se lhe foi exigido, a regulamentação necessária à implementação adequada do programa TFD (apenas o fazendo quando a ação civil pública já havia sido ajuizada, transcorridos mais de sete anos desde a determinação de expedição de regulamento), deve ele ser impelido a cumprir suas atribuições.

- Por certo que não se ajusta ao Texto Constitucional inviabilizar o deslocamento de pacientes às localidades com assistência médica adequada, mormente no caso de enfermidades extremamente graves, como as relatadas nos autos (doentes submetidos a cirurgias na coluna, transplantados renal e hepático, um dos quais também acometido de câncer).

- "O Estado, ao negar a proteção perseguida nas circunstâncias dos autos, omitindo-se em garantir o direito fundamental à saúde, humilha a cidadania, descumpre o seu dever constitucional e ostenta prática violenta de atentado à dignidade humana e à vida. É totalitário e insensível" (Primeira Turma, RESP 948579/RS, Rel. Min. José Delgado, j. em 28.08.2007).

- Diversamente do alegado, os valores envolvidos não têm o condão de colocar em risco o orçamento do Estado (a diária é orçada, na tabela de referência do SUS, em R$ 30,00). Ainda que ele não tivesse o importe à disposição sob essa rubrica, a garantia da preservação da saúde dos cidadãos autoriza determinação judicial para que os recursos, inicialmente previstos para fins publicitários, sejam direcionados ao TFD, tudo em função do sopeso dos bens jurídicos a resguardar.

- A norma não exige a condição de "carência" do paciente para que ele possa gozar do benefício, apenas asseverando que "o TFD será concedido, exclusivamente, a pacientes atendidos na rede pública ou conveniada/contratada do SUS" (§ 2º do art. 1º da Portaria nº 55/99).

- Ônus de sucumbência regularmente arbitrados.

- Pelo não provimento da remessa oficial e da apelação.

Apelação Cível nº 425.249-RN (Processo nº 2006.84.00.005522-4)

Relator:Juiz Francisco Cavalcanti(Julgado em 8 de novembro de 2007, por unanimidade)

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Realmente, não se pode falar em Estado Social, sem que o Poder Judiciário controle a atuação administrativa em relação ao cumprimento de deveres que caracterizam esse tipo de Estado. Já se mostra superado o argumento dos que se contrapõem ao alargamento da atuação do Poder Judiciário em relação ao controle dos atos do poderes Executivo e Legislativo, sob a afirmativa de que aquele não teria legimitidade, e de que haveria ofensa ao próprio princípio democrático.

A legitimidade para esse controle decorre da pópria Constituição, aceita pela sociedade, instrumento da democracia, que assegura que nenhuma lesão ou ameça de direito será afastasta da apreciação judicial. Além disso, a legitimidade do Poder Judiciário decorre da razoabilidade [14] das decisões e de sua fundamentação, controlável pelos jurisdicionados e pela sociedade. Sabe-se que, depois de eleitos, os legisladores e agentes políticos do Executivo não atuam ato a ato em atenção aos verdadeiros anseios sociais. O Poder Judiciário é o último reduto de que dispõe o cidadão no controle da violação a deveres constitucionais da Administração.

Agora, apenas uma ressalva deve ser feita. Como o controle gira em torno da viabilização do Estado Social, entendemos que as ações coletivas são as mais adequadas para o exercício do controle financeiro e orçamentário. Realmente, é preciso atentar para o fato de que a concretização de direitos sociais (que devem ser assegurados a toda uma coletividade), não necessiariamente se faz com a individualização de direito social pleiteado em juízo. Ao assegurar, através de ações individuais, determinados direitos sociais de custo elevado, como alguns tratamentos médicos, o Poder Judiciário pode terminar por retirar da coletividade o acesso ao mínimo social de qualidade. [15]


Considerações finais

Diante do exposto, considerando o papel da propaganda governamental na atual era do Estado Democrático e Social, é possível apresentar as seguintes conclusões quanto aos limites jurídicos ao uso de verba pública na sua realização:

a) Gastos com publicidade de utilidade pública devem ser realizados até o limite em que a campanha se demonstre eficiente para evitar gastos do Estado com o reparo a danos, caso a sociedade tivesse sido devidamente informada de como evitá-los;

b) gastos com publicidade institucional, ou propaganda governamental, devem ser mínimos, uma vez que, atualmente, o Governo dispõe da tecnologia da internet para divulgar com igual alcance e menor custo suas informações, ainda que tenham por fim unicamente prestar contas sobre obras e serviços realizados. Assim, conciliam-se de forma mais harmônica os princípios da eficiência, economicidade e publicidade. Além disso, os recursos de marketing utilizados em propagandas divulgadas em meios televisivos, impostas disfarçadamente durante programação de outra natureza, podem encobrir a realidade, levando a um diálogo entre governantes e governados com conteúdo forjado;

c) mesmo sem analisar os aspectos antes referidos, considerando apenas a razoabilidade e a proporcionalidade, gastos com publicidade institucional não podem ultrapassar os valores efetivamente utilizados com os incrementos materiais realizados e que se pretende divulgar. Do mesmo modo, gastos dessa natureza não podem pôr em risco novos atos materiais de natureza social cuja realização se faça necessária;

d) sobretudo quanto a este último aspecto, o Tribunal de Contas e principalmente o Poder Judiciário podem controlar a atuação estatal. O Poder Judiciário pode inclusive determinar à Administração Pública que não se abstenha de realizar atos materiais a pretexto de comprometimento do orçamento, quando, diante de uma análise deste, constatar que o contingenciamento de verbas refere-se a gastos publicitários.


Notas

  1. "O poder só é efetivado enquanto a palavra e o ato não se divorciam, quando as palavras não são vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não são empregadas para velar intenções, mas para revelar realidades, e os atos não são usados para violar e destruir, mas para criar relações e novas realidades." (ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10 ed. Forense Brasília, p. 212)
  2. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia. Entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, v.1., p. 165.
  3. Como afirma K. Marx, refletindo sobre a utilidade de algumas doutrinas filosóficas, "Os filósofos não fizeram mais que interpretar o mundo de forma diferente, trata-se porém de modificá-lo" (MARX, Karl. "Teses sobre Feurbach". In: Obras Escolhidas. São Paulo: Alfa-Omega, 1960, p. 208)
  4. BUCCI, Eugênio. Em Brasília, 19 horas. Rio de Janeiro: Record, 2008, pp. 74-79 – grifos não contidos no original.
  5. A violência até pode, eventualmente, participar na instituição de uma nova ordem jurídica (sendo necessária para destituir as bases da anterior), mas não a alimenta. "Toda pressão que dura é indício certo de revolução que se retarda." (MIRANDA, F.C. Pontes de. Sistema de Ciência Positiva do Direito, Campinas: Bookseller, 2000, v. 3., p. 116). No mesmo sentido: PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica. tradução de Vergínia K. Pupi. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 241; SEARLE, John R. Libertad y neurobiologia. traducción de Miguel Candel, Barcelona: Paidós, 2005, p. 108; VASCONCELOS, Arnaldo. Direito e Força – Uma visão pluridimensional da coação jurídica, São Paulo: Dialética, 2001, passim.
  6. Por isso mesmo, Luhmann observa que o poderoso sempre luta para manter uma aparência que não corresponde à realidade, usando para isso a propaganda. (LUHMANN, Niklas. Poder. Tradução de Martine Creusot de Rezende Martins. Brasília: UnB, 1985, p. 22)
  7. DALLARI, Adilson Abreu. Divulgação das atividades da administração pública – publicidade administrativa e propaganda pessoal. In: RDP, n.º 98, p. 247.
  8. "A propaganda governamental na verdade é feita para promoção pessoal dos governantes, tanto que no passado veiculava seus nomes e fotografias. Já não pode fazê-lo, mas veicula, ainda que indevidamente, mensagens que, de algum modo, ainda que apenas em razão das circunstâncias, identificam os favorecidos com a divulgação." (MACHADO, Hugo de Brito. "Carga tributária e gasto público: propaganda e terceirização". In: Interesse público. Curitiba: Notadez. 2006, Ano VIII, n.º 38, p. 179)
  9. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. 2 ed. São Paulo: Atlas. 2007, p. 155.
  10. Como relato histórico comparável e que demonstra o perigo do uso da propaganda governamental indireta, tem-se a propaganda realizada durante as ditaduras de Mussolini e Hitler. Realmente, em obra na qual se busca fazer análise social através das artes, Laura Malvano observa que "a partir da década de 1920, baseando-se num projeto preciso do departamento de imprensa de Mussolini, o culto ao Duce tornou-se um dos mais importantes temas de mobilização nacional. Contudo, foi no decorrer da década de 1930 que, ao redor da imagem do Duce, se estruturou uma operação de propaganda de grandes proporções e uma articulação sem precedentes." ("O mito da juventude transmitido pela imagem: o Facismo italiano". In LEVI, Giovanni Levi; SCHMITT, Jean Claude (orgs.) História dos Jovens. Vol. 2. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 279)
  11. Cf. MACHADO, Hugo de Brito. "Carga tributária e gasto público: propaganda e terceirização". In: Interesse público. Curitiba: Notadez. 2006, Ano VIII, n.º 38, p. 179 e ss.
  12. BUCCI, Eugênio. Em Brasília, 19 horas. Rio de Janeiro: Record, 2008, pp. 74-79.
  13. Assim como entendemos ser possível a veiculação de algumas propagandas institucionais, desde que os gastos correspondentes não sejam desproporcionais (considerando os fins e os demais gastos necessários), concordamos com Clèmerson Merlin Clève, Paulo Ricardo Schier e Melina Breckenfeld Reck, quando defendem a aplicação da norma de acordo com o resultado e não com a mera conduta. (cf. "Vedação de propaganda institucional em período eleitoral". on-line.http://jus.com.br/artigos/7193, acessado em 26.09.08.
  14. "A razoabilidade é a medida preferível para mensurar o acerto ou desacerto de uma solução jurídica." (trecho de decisão proferida no RMS 25.652-PB, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 16/9/2008 e divulgada no Informativo nº 368 do STJ)

15.Exemplo foi a decisão que assegurou o custeio de cirurgia para redução de estômago, ao valor de R$ 500.000,00, a um individuo, por pequeno Município. Certamente, o valor respectivo poderia ser usado para implementar inúmeras ações médicas e de saúde preventiva para grande quantidade de outros indivíduos.

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Sobre a autora
Raquel Cavalcanti Ramos Machado

Advogada. Mestra em Direito pela UFC. Membro do ICET – Instituto Cearense de Estudos Tributários. Professora de Direito Administrativo da Faculdade Sete de Setembro

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACHADO, Raquel Cavalcanti Ramos. A propaganda governamental no diálogo entre Estado e sociedade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1972, 24 nov. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12000. Acesso em: 5 nov. 2024.

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