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Relativização da coisa julgada material.

Uma análise sobre o conflito entre a segurança jurídica e a justiça das decisões

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26/12/2008 às 00:00
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CONCLUSÃO

Pelo exposto, chega-se a conclusão que é inadequada a expressão relativização da coisa julgada, uma vez que há previsão legal de hipóteses de rescisão do instituto. Na realidade, o que os estudiosos vêm debatendo é a possibilidade de se ampliar as hipóteses de rescisão já previstas em lei.

Conclui-se, ainda, que a discussão sobre o tema não pode restringir-se às questões jurídicas, mas deve também envolver um debate filosófico.

Assim, diante da interpretação das teses favoráveis e desfavoráveis à relativização, ou melhor, desconsideração da coisa julgada material para além dos casos já previstos em lei, verifica-se que são mais consistentes os argumentos apresentados – ao menos até a presente data – pela corrente que não admite essa possibilidade.

Tal entendimento respalda-se no fato de ter sido constatado que o principal argumento da doutrina pró-relativização é a preponderância do valor justiça sobre a segurança jurídica, sem, contudo, ser oferecida uma explicação plausível sobre qual o significado do termo justiça.

Identificou-se, ainda, que o conceito de justiça, embora consista em um valor fundamental, almejado em qualquer tempo e lugar, é relativo e impossível de ser definido cientificamente.

Portanto, não há como acatar o argumento de que a decisão proferida, em processo resguardado de todas as garantias legais, deve ser rescindida porque, simplesmente, "injusta".

Como observa Marinoni (2004, p.31), os teóricos que defendem a relativização contrapõem a coisa julgada material ao valor justiça, mas não embasam a tese, ao menos, em uma das modernas contribuições da filosofia do direito sobre o tema e conclui que "é equivocado, em qualquer lugar, destruir alicerces quando não se pode propor uma base melhor ou mais sólida".

De outra banda, não há como deixar de observar que o direito é criação humana e, como tal, está sujeito às transformações históricas. Desse modo, vem ganhando força a idéia – bastante sensata, por sinal – de uma interpretação das normas jurídicas mais adequadas à realidade e aos valores de uma determinada sociedade.

Nesse diapasão, até concorda-se com a preocupação de alguns estudiosos em buscar rediscutir a autoridade da coisa julgada material no que diz respeito à ampliação do prazo de interposição da ação rescisória e de novas hipóteses de cabimento (ou novas interpretações sobre as já previstas)

Não é compreensível, no entanto, a forma como os defensores da tese da desconsideração vêm abordando o assunto, com base em argumentos frágeis, ou tentando estigmatizar o instituto, como se este não fosse necessário (ainda que um mal necessário) para uma ordem jurídica e social segura e, por que não, justa!

Não há como negar que no atual estágio de desenvolvimento da sociedade, é imprescindível a interferência do Estado, através da Jurisdição, para administrar (ou tentar) racionalmente os conflitos de interesses.

Deve-se compreender que a coisa julgada é instrumento de índole constitucional, previsto no título que trata dos direitos e garantias fundamentais, assumindo um papel fundamental na manutenção do Estado Democrático de Direito, sobre o qual está assentada a república federativa brasileira.

Entende-se que a decisão justa que se procura alcançar ao fim de uma demanda judicial é aquela que tenha sido produzida após um processo com ampla participação das partes, conduzido dentro dos trâmites legais e amparado em preceitos constitucionais.

Quando assim não ocorrer, e a decisão já tiver sido alcançada pela coisa julgada material, os interessados devem buscar a rescisão, apoiados em argumentos lógicos, em uma injustiça claramente identificada quando aquelas garantias processuais ou constitucionais foram desconsideradas.

Ao prever um instituto que objetivasse por fim aos litígios definitivamente, garantindo segurança e paz social, o sistema jurídico também idealizou uma forma de fazer justiça (como já dito, uma justiça possível).

Por outro, a previsão das hipóteses de rescisão da coisa julgada material comprovam que houve uma preocupação do legislador, em um primeiro momento, com a justiça da decisão, mas também com o restabelecimento da tranqüilidade das partes litigantes, e, por conseguinte, com segurança jurídica e social.

Desse modo, entende-se que qualquer corrente que pretenda questionar a autoridade da coisa julgada material, devia levar em consideração que o ideal é que os valores da segurança e da justiça sejam conciliados em uma decisão judicial e em todos os institutos a ela relacionados.

Nesse cenário, a coisa julgada material não poder ser interpretada como um obstáculo à realização da justiça, mas como um mecanismo estabelecido pelo sistema para conferir segurança às relações jurídicas e sociais, na falta de um outro modo de viver em sociedade (utópico, ideal) que permitisse aos homens resolver seus conflitos de forma pacífica e razoável, sem a intervenção estatal.


REFERÊNCIAS

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BARROSO, Luís Roberto. Temas de direito constitucional. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

CHERMONT, Michelle. Relativização da coisa julgada: análise crítica. Revista Dialética de Direito Processual. São Paulo: [s.n.], n. 44, p. 53-73, nov. 2006.

CONRADO, Paulo César. Introdução à teoria geral do processo civil. São Paulo: Max Limonad, 2003.

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MARINONI, Luiz Guilherme. O princípio da segurança dos atos jurisdicionais (A questão da relativização da coisa julgada material). Revista Jurídica. Porto Alegre: Notadez, ano 52, n. 317, mar. 2004.

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NOTAS

  1. § 1º Para efeito do disposto no inciso II do caput deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal.
  2. Paulo Otero (1993, p.42) ensina que o caso julgado comporta dois elementos: a) Primeiro, o caso julgado é uma decisão judicial; b) Segundo, o caso julgado é uma decisão que se consolidou na ordem jurídica.
  3. Sérgio Porto (2006, p.50) enfatiza que Liebman, "ao perquirir sobre as razões do instituto da coisa julgada, não vislumbrou a autoridade deste como mais um efeito da sentença, mas, sim, como uma qualidade que aos efeitos se somava, para torná-los imutáveis".
  4. Dispõe o referido dispositivo que a sentença de mérito, após ocorrido o trânsito em julgado, poderá ser rescindida nos seguintes casos:

    I - se verificar que foi dada por prevaricação, concussão ou corrupção do juiz;

    II - proferida por juiz impedido ou absolutamente incompetente;

    III - resultar de dolo da parte vencedora em detrimento da parte vencida, ou de colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei;

    IV - ofender a coisa julgada;

    V - violar literal disposição de lei;

    VI - se fundar em prova, cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal ou seja provada na própria ação rescisória;

    VII - depois da sentença, o autor obtiver documento novo, cuja existência ignorava, ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável;

    VIII - houver fundamento para invalidar confissão, desistência ou transação, em que se baseou a sentença;

    IX - fundada em erro de fato, resultante de atos ou de documentos da causa.

  5. Art. 5º, XXXV, CF/88 - A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
  6. Júlio César Tadeu Barbosa (1985, p. 54), discorrendo sobre a Justiça, esclarece que "as leis são feitas pelo Estado, tendo ele o seu monopólio, o que lhes dá um caráter público. Esta idéia historicamente é recente e surge com o Estado Moderno, o Estado-Nação. O sociólogo Max Weber (1864-1920) denominou a isto de ‘monopólio da violência física legítima’. Neste sentido, retirou o Estado aos senhores feudais o direito de reprimir, aboliu o duelo e todas as formas de dominação física do homem sobre o homem, sobre os escravos, os servos, as mulheres e as crianças"
  7. O art. 472 do CPC determina que "a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada. .."
  8. José Rogério Cruz e Tucci (2006, p.26), citando Willis Santiago Guerra Filho, afirma que "A coisa julgada aparece como artifício ou mecanismo para implementar o convencimento e a certeza sobre a existência ou não de um direito ou qualquer outra situação jurídica, exercendo assim o papel ideológico de legitimação desse mesmo ordenamento e de garantia da sua manutenção, pois evita o confronto dos indivíduos entre si e com o próprio ordenamento, ao tornar incontrovertido, em princípio, o resultado da função cognitiva do processo, que leva à atuação do direito em um caso concreto. Trata-se, portanto, de um conceito operativo, indissociável daquele outro a que se reporta, o de sentença.".
  9. Luís Roberto Barroso (2002, p. 68), explica que "a ponderação de valores é técnica pela qual o intérprete procura lidar com valores constitucionais que se encontrem em linha de colisão. Como não existe um critério abstrato que imponha a supremacia de um sobre o outro, deve-se, à vista do caso concreto, fazer concessões recíprocas, de modo a produzir-se um resultado socialmente desejável, sacrificando o mínimo de cada um dos princípios ou direitos fundamentais em oposição".
  10. Júlio César Tadeu Barbosa (1985, p. 18) assevera que "a discussão sobre justiça e seus fundamentos constitui-se em um dos capítulos fundamentais do pensamento humano e seus diversos níveis, quer no campo da Teoria e Filosofia Política, da Filosofia do Direito, da Moral etc." e que não há consenso, dentro dessas áreas, quanto a definição do termo justiça.
  11. Pedro Eduardo Pinheiro Antunes de Siqueira (2006, p.43), citando J.J. Canotilho.
  12. Pollyana Guimarães (2007, p. 262 e 259) observa que "nessa perspectiva, com o ideal de se garantir essa segurança e estabilidade quanto às expectativas sociais de comportamento necessárias ao homem, tem-se o princípio da segurança jurídica, elemento constitutivo do Estado de Direito, que consiste, pois, na segurança que o direito deve produzir para seus autores e respectivos destinatários de que poderão eles calcular as conseqüências do comportamento próprio e alheio". A autora apresenta, ainda, a solução dada por Jürgen Habermas para o conflito entre a segurança e a pretensão de tomar decisões corretas, que consiste, em suma, em proporcionar às partes, ao longo do processo judicial, todas as garantias de uma discussão dialética, participativa, que se estabeleça o diálogo entre as partes, advogados e juízes, para que desse modo a decisão final seja aceita, reconhecida e não mais questionada pelos partícipes, pois originada de um processo racional.
  13. Observa Barbosa Moreira (2007, p. 246) que na atualidade não se pode entender "o direito de ação como direito a uma sentença favorável; nem, por conseguinte, se há de conceber o dever de prestar jurisdição como o dever de dar ganho de causa a quem a requeira".
  14. Nelson Nery Jr. (2004, p. 47) afirma que "desconsiderar a coisa julgada é eufemismo para esconder-se a instalação da ditadura, de esquerda ou de direita, que faria desaparecer a democracia que deve ser respeitada, buscada e praticada pelo processo".
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Sobre a autora
Carla Blanco Rendeiro Martins

Advogada e servidora pública PGE- PARÁ, Especialista em direito civil e processual civil

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS, Carla Blanco Rendeiro. Relativização da coisa julgada material.: Uma análise sobre o conflito entre a segurança jurídica e a justiça das decisões. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 2004, 26 dez. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12117. Acesso em: 6 mai. 2024.

Mais informações

Professores Orientadores: José Manfroi - Graduado em Filosofia (FUCMT/MS); Mestre em Educação (UFMS);Doutor em Educação (UNESP/Marília/SP). Orientador do Trabalho de Conclusão do Curso de pós-graduação lato sensu da UCDB/CPC Marcato. Milena Inês Sivieri Pistori - Graduada em Direito pela Universidade Católica Dom Bosco.Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (2001) e em Direito das Relações Sociais pela UCDB (2006); Mestre em Educação pela Universidade Católica Dom Bosco (2004). Orientadora do Trabalho de Conclusão do Curso de pós-graduação lato sensu da UCDB/CPC Marcato

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