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Estado-Ciência.

As bases racionalistas da modernidade: Educação, Ciência e Direito

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24/01/2009 às 00:00
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Realismo

Em seguida, o realismo também se avolumaria como método e rigor científico, à medida em que a razão e a verdade não poderiam estar, é claro, a não ser na própria realidade. Agora, a questão estava em saber como escarafunchar esta realidade a fim de que as aparências se discrepassem em virtude das ranhuras elucidativas. Contudo, em resumo, por realismo, temos que:

1) "Realismo" é o nome da atitude que se atém aos fatos "tal como são" sem pretender sobrepor-lhes interpretações que os falseiam ou sem aspirar a violentá-los por meio dos próprios desejos. No primeiro caso o realismo equivale a uma forma de positivismo [...] já que os fatos de que se fala aqui são concebidos como "fatos positivos" [...] No segundo caso temos uma atitude prática [...] O chamado "realismo político" (Realpolitik) pertence a esse realismo prático. 2) "Realismo" designa uma das posições adotadas na questão dos universais [...] a que sustenta que os universais existem realiter ou que universalia sunt realia. 3) "Realismo" é o nome que se dá a uma posição adotada na teoria do conhecimento ou na metafísica. Em ambos os casos, o realismo não se opõe ao nominalismo, mas ao idealismo [...] O realismo ingênuo supõe que o conhecimento é uma reprodução exata (uma "cópia fotográfica") da realidade. O realismo científico, empírico ou crítico adverte que não se pode simplesmente equiparar o percebido com o verdadeiramente conhecido, e que é preciso submeter o dado a exame e ver (para depois levá-lo em conta quando forem formulados juízos definitivos) o que há no conhecer que não é mera reprodução (Mora, 2001, pp. 2471-2473).

Como diria Giambattista Vico (1989), o restaurador do racionalismo na modernidade clássica (1668-1744), da rudeza nasce da ignorância, pois quem não sabe sempre duvida, citando em latim a lei das XII Tábuas: Si quis nexum faciet mancipiumque, uti lingua nuncupassit, ita ius esto.


Sobre o homem mau em Hobbes

Já em Hobbes, destaca-se a preocupação e a busca pela RETA RAZÃO: O contrato civil dá origem ao Estado de direito como uma moral civilizadora, reguladora das necessidades de sobrevivência; sublimando-as, subsumindo-as em um tipo de Estado (Angoulvent, 1996, p. 49). Para Hobbes, somos levados a um princípio passional: o medo.

A matematização da política seguia, sob o Renascimento, o mesmo influxo da geometrização das ciências: a ciência matemática da mecânica (terrestre). Ciência dividida em: estática, hidrostática e cinética. Porém, aliavam-se guerra e status político da própria ciência ao curso global das mudanças, o que, talvez, pudéssemos chamar com mais propriedade de mudanças de paradigmas: desenvolvimento tecnológico devem ser considerados em paralelo e entrecruzando-se, de forma radical ou revolucionária, em determinada época, com as alterações de maior relevância e significado, do papel social das ciências e das forças motrizes do telos, do comus e do ethos social. Com Hobbes e sua tentativa de fixar com precisão não só o poder do Leviatã, mas também do conatus não seria diferente, entendo-se conatus (ou endeavor) como uma espécie de conexão ampliada entre sentidos, sentimentos, significados que envolvem as inúmeras teias entre mente e mundo.

Assim, como se diz fortuitamente, se o homem é mau, por natureza, em Hobbes, como lobo de outro homem, sem restrições, então, para Hobbes a razão humana está submetida à própria maldade, assim como todas as demais características humanas.

Contudo, lembrando-se que sempre foi temente a Deus (até por conveniência), crente nos direitos naturais, jusnaturalismo, não se pode concluir como na premissa de cima, porque seria como que admitir que o direito derivasse da consciência mal-sã.

Sobretudo se pensarmos que o lobo do homem se revela pelo "estado de necessidade", então, o contrato social, motivado/motivador do conatus, aí o homem seria capaz de produzir uma RETA RAZÃO - razão esta que levaria de encontro ao juízo superior do soberano e, ao mesmo tempo, que o distanciaria da maldade que "lhe" seria natural e esperada em toda condição ou estado de necessidade.

No pensamento renascentista, seria como se a política (racionalismo-prático) suplantasse as emoções. Afinal, a política é organização da Polis. O ideal estaria em assegurar da melhor forma possível o poder, do Leviatã, isto é, em organizar e centralizar o poder, fundar o Estado-Nação e sua soberania subjacente à Razão de Estado (aliás, o tema mais candente entre os séculos XV e XVII).

Mas, se era uma fase de ampliação de horizontes, igualmente deveria ser de aplicação de novas ou de outras formas de utilização das mesmas ciências, com outro olhar e perspectiva muito mais dirigida pelos fins. Se saber era poder, com os matemáticos em ação não haveria margem de erro (em política, não haveria margem para perdão, isto é, o erro que seria absolvido):

Por mais contrário que o movimento da Terra possa parecer à filosofia natural, Copérnico insistiu, ele deve ser verdadeiro porque a matemática o exige. Isso foi revolucionário [...] Os fatores que contribuíram para estimular essa tendência foram variados e complexos, mas incluem a recuperação de textos matemáticos da Grécia antiga por eruditos humanistas que forneceram novos meios para a formulação de exigências quanto à unidade da matemática, sua utilidade e sua certeza como meio de estabelecer a verdade [...] (Henry, 1998, p. 22).

Todavia, tudo isto só seria possível se houvesse munição tecnológica suficiente, engenho e razão direcionados ao mesmo fim, à conquista e conservação de mais poder. Tudo feito com o máximo de objetividade — tanto a matemática o exigia que "navegar é preciso". Navegar é preciso, como necessidade de ampliação dos horizontes dos conquistadores, quanto à precisão de cálculo deveria se apoiar em determinado instrumental técnico: bússola e astrolábio, por exemplo. Nunca houve política sem tecnologia e, no Renascimento menos ainda:

Inovações nas operações militares, em particular a inventiva resposta ao cerco por canhões, o bastião resistente à artilharia e vários projetos de engenharia civil como a recuperação de terras, construção de canais ou mesmo o simples levantamento topográfico para propósitos fiscais, foram vistos como causas importantes não só do status mais elevado dos matemáticos nos primeiros tempos da Europa moderna, mas também do maior interesse da matemática [...] Mudanças na natureza e na estrutura das cortes reais numa Europa de Estados cada vez mais absolutistas também deram ao mathematicus oportunidades mais amplas de fazer sentir sua presença (Henry, 1998, p. 27).

Para se ver o Novo Mundo era preciso muita fé, sem dúvida, mas a fé com um pé na razão e na ciência e outro nos fins políticos. Decerto que este realismo não podia acertar como simples soma de dois mais dois, igual a quatro, porém, traçava aí as linhas gerais do realismo que habitaria toda a modernidade e a racionalidade técnica até meados do século XX. Um de seus grandes nomes, não só como cientista (matemático), mas sim como pensador político foi Pascal.

Se a ação política não é em si matematizável, diante das próprias condições da realidade que permeia o realismo político, especialmente na relação entre objetivos e efeitos, ao menos pode ser melhor escalonada (não precisamente raciocinada) entre meios e fins. Nisto será, enquanto prática social, uma ação política fria, realista, calculista — quanto a ser isenta de piedade, uma vez que o erro em política é sempre derrota e a derrota equivale à morte política: vita mea, mors tua. Como nos diz A. Comte-Sponville (Pascal, 1994), o político-matemático era um pensador de rara luz, de tão crua, capaz de ver com radicalidade e certo revolucionarismo moderno, de notável lucidez e desiludido. Por vezes, desesperado quando se voltava à sociedade que o cercava, mas sem se esconder no niilismo ou no individualismo a-político. Há uma virtù em Pascal e, talvez, seja a de ser profusamente realista e sem utopias, desilusões, mágoas ou rancores — o que, certamente, é raríssimo de se ver no cotidiano da vida real. Como nos diz, pela razão dos efeitos: "A concupiscência e a força são as fontes de todas as nossas ações: a concupiscência produz as voluntárias: a força, as involuntárias". (Pascal, 1994, p. 08). A concupiscência na vida diária, sinônimo de sensualidade, lascívia, em política é simplesmente sedução, oratória, impressionismo e/ou marketing.

Também podemos dizer que não lhe impressionava o maniqueísmo ou messianismo puritano, como idealista sem realidade, pois não há mal sem o bem e vice-versa. Se lemos somente o primeiro trecho da citação, sem o cuidado necessário, parece retomar o lendário do homem, lobo do homem:

Todos os homens se odeiam naturalmente uns aos outros. Faz-se o possível para utilizar a concupiscência em benefício do bem público; mas isso é fingimento, e uma falsa imagem da caridade; pois, no fundo, é apenas ódio [...] fundamentaram na concupiscência e dela extraíram regras admiráveis de governo, de moral e de justiça; mas esse fundo infame do homem, esse fingmentum malum, está apenas coberto: ele não foi tirado [...] Injustiça. — Não encontraram outro meio de satisfazer a concupiscência sem prejudicar os outros (Pascal, 1994, p. 10-11).

Ódio ou luta de classes? O silogismo se apóia em metáforas! Deste realismo político, além da prática da navegação precisa, exata, ainda temos como derivado o materialismo e o Positivismo (como perspectiva política, religião ou método), mas especialmente a partir dos séculos XIX e XX.

Este Homem Novo, marcado pelo individualismo, no período propriamente do Renascimento, não permitiu ver o Outro, mesmo sob constantes alertas morais, porque o EU era muito mais importante ao capital e sua expansão do que o apego ao comus e ao ethos:

O eu é odioso [...] Em suma, o eu tem duas qualidades: ele é injusto em si, ao fazer-se o centro de tudo; ele é incômodo aos outros, ao querer sujeitá-los: pois cada eu é o inimigo e gostaria de ser o tirano de todos os outros [..] Cada um é para si, pois, ao morrer, tudo está morto para si. E daí cada um acreditar ser tudo para todos [...] Um homem que se põe à janela para ver os que passam, se eu estiver passando, posso dizer que ele se pôs aí para me ver? Não, pois não em pensa em mim em particular. E quem ama alguém por causa de sua beleza, ama-a de fato? Não, pois a varíola que matará a beleza sem matar a pessoa, fará com que não mais a ame (Pascal, 1994, pp. 12-12).

Assim, o filósofo-matemático nos faz lembrar novamente de Hobbes e seu Homo homini lupus, porém não se deve confundir o individualismo do Renascimento nem com o hedonismo de um Epicuro, por exemplo, da Grécia clássica, nem com o niilismo ou cinismo abjeto atual. Isto fica mais claro no próprio Pascal quando se refere à conquista e à glória:

A maior baixeza do homem é a busca da glória, mas este é também o maior sinal de sua excelência; pois, não importa as posses que tenha na terra, a saúde e a comodidade essencial que possua, ele não estará satisfeito se não for estimado pelos homens. Julga tão grande a razão do homem que, mesmo tendo alguma vantagem na terra, não estará contente se não estiver vantajosamente situado também na razão do homem (Pascal, 1994, p. 18).

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Contudo, esta lógica seria demasiadamente refeita a partir do que Marx (1977) chamou de a acumulação primitiva do capital, sobretudo, entre as duas grandes revoluções industriais.


Materialismo

O materialismo e o realismo conheceram diversas fontes inspiradoras em idéias/ideologias e em autores: Demócrito; Maquiavel; Michelet; Marx. O materialismo afirma que todas as coisas são compostas de matéria e os fenômenos são o resultado de interações materiais: a existência dos objetos independe do pensamento e por isso pertence à classe da ontologia monista. A expressão foi utilizada por Leibniz (1702) e reivindicado por La Mettrie (1748). Alguns dos mais representativos filósofos pré-socráticos foram: Leucipo, Epicuro, Lucrécio e os estóicos.

Das Luzes ao Positivismo e, de lá para cá, como podemos (re)tomar o realismo, mas sem retirar-lhe o básico: o mínimo de realidade político-social? Neste caso, o Iluminismo ainda teria fogo e luzes para lançar-se sobre ideais nobres e que pudessem dobrar a dureza excessiva de alguns métodos. Afinal, agora diante das duas grandes revoluções tecnológicas (1750-1850), era mais necessária a crença de que no amanhã está o bem, a felicidade, a justiça. Este positivismo era especialmente herdeiro dos ideais da Revolução Francesa e não tanto dogmaticamente metódico.


Direito à Educação e Esclarecimento

A principal referência é Kant e o melhor produto teórico é o seu texto O que é Esclarecimento. Em suma, o Aufklärung instiga a que se "ouse pensar" e assim "ouse fazer": "Sapere aude!". "Tenha coragem de fazer uso do teu próprio entendimento". Desse modo, o esclarecimento instiga à saída do homem de sua menoridade. E o que é menoridade? "A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção (tutela) de outrem". O homem da menoridade precisa de um condottiere, seja na vida privada, seja para assuntos de relevância pública.

Depois de libertos do primitivo estado de natureza (naturaliter maiorennes), as causas internas à permanência do indivíduo na menoridade (intelectual, moral, política, cultural) são a preguiça ou comodidade e a covardia. É cômodo não ter de fazer por si mesmo – no senso comum, diz-se que "pensar dói". Também não se tem necessidade de pensar ou fazer, se é possível apanhar tudo pronto 11. Alguns ainda consideram difícil esta passagem, mas o perigo não é grande, porque só se aprende a andar após algumas quedas (está aí o método da "tentativa e erro"). Então, a maioridade corresponde a abandonar primeiramente o embrutecido estado de gado doméstico.

Para a menoridade ainda concorrem a adesão e a aceitação de verdades prontas, dogmas e preceitos inquestionáveis: preceitos e fórmulas, esses instrumentos mecânicos de uso "racional" ou dons naturais, são os grilhões da consciência à menoridade. Esta razão domesticada é, portanto, uma das causas centrais da menoridade. Também pode incorrer em grave erro quem considera ser viável saltar o fosso da liberdade sozinho, pois a liberdade é uma construção social.

Todavia, alguns podem iniciar essa cruzada, sozinhos e mesmo que seja longa e penosa. Alguns que tenham pensamento próprio, libertando-se do jugo de tutores e da comodidade, espalharão ao redor de si o espírito da avaliação racional do próprio valor e da vocação inata ao homem de pensar (e agir) por si mesmo. Instigada por um líder consciente, a massa oprimida e subjugada pode gritar e lutar por sua liberdade (mas, desde que seja um líder e não outro tutor). Por isso, o preconceito, a indiferença, o ranço da menoridade 12 podem voltar-se contra seus agentes e ainda alimentar, em alguns sobreviventes, o direito de rebelião ou sedição.

Neste movimento social e temporal, de que tratam os libertários, o povo seria levado a pensar — até porque é rara a germinação natural. Mas, a instigação a se rebelar contra o status quo viria de uma vanguarda, uma vez que, raramente, pensa-se em ser livre, sendo-se criado como escravo. Por esta dialética negativa, o próprio Senhor de Escravos não é um liberto, nem se encontra na maioridade, simplesmente porque necessita (para tudo) de seus escravos, ou seja, de alguém que faça por ele.

Neste caso, ainda é interessante pensar a aliança que se pode tecer entre cultura e política: Uma revolução talvez realize a queda do despotismo pessoal, da opressão pelo lucro incessante ou da dominação descabida, porém nunca produzirá verdadeira reforma (libertária) no modo de pensar. Este seria o real limite da própria vanguarda que conduz à liberdade, uma vez que ninguém é conduzido à liberdade, como estado-de-ser, sem saber do que se trata, isto é, sem ter a consciência dessa mesma liberdade. Portanto, só a iniciativa leva à liberdade e esta conduz ao esclarecimento — sendo que a base da liberdade (para os antigos) estava na isegoria e na isonomia. Então, o que é liberdade? Simplesmente, fazer uso público de sua razão em todas as questões.

Por sua vez, o uso público da razão traz um interstício entre esclarecimento e conhecimento: quando o homem SÁBIO se expressa, livremente, diante do grande público do mundo letrado. Já o uso privado da razão é de pertencimento do SÁBIO que pode fazer uso de sua razão em função de certo cargo/função pública a ele atribuídas. Assim, para Kant, há certos casos inevitáveis ou necessários em que se constroem mecanismos de comportamento passivo ou de unanimidade artificial: em tais casos, não é permitido raciocinar, porque se espera a obediência. A educação dos antigos falava no temor reverencial.

Pergunta-se: sob esta análise, o educador (professor) está mais para o SÁBIO (como especialista ou intelectual que faz um uso público da razão) ou se aparenta ao sacerdote (restrito ao uso privado da razão)?

Em todo caso, para ficarmos nos casos sugeridos por Kant, pensemos na democracia representativa e no princípio da legalidade. Para o administrador público, a liberdade de agir está cercada, cerceada pela legalidade, impondo-se a este uma condição de agente público da obediência. O administrador público só pode fazer (agir), estritamente, diante do que a lei (anterior a seus atos) assim prescrever e autorizar 13.

Outro caso considerado por Kant se refere à obrigatoriedade do pagamento de impostos que recai sobre todo cidadão. Obrigação da qual ninguém se desobriga, dado o caráter social da arrecadação dos impostos: originário e necessário à conservação do Contrato Social. A recusa ao pagamento de impostos pode gerar ou fortalecer o sentimento de descompromisso social ou de anomia (Durkheim, 1988) e daí derivar-se no movimento social da Desobediência Civil (Thoreau, 1966).

Do que não se depreende, obviamente, o imobilismo: Nada existe aqui que possa constituir um peso na consciência. Isto é, constitui-se em dever cívico (ou da consciência daquele que não é senhoreado) questionar e se impor contra a opressão e a injustiça: um "Ouse questionar!". Mesmo o religioso tem o dever de se impor contra o erro, a exemplo das alegações da Reforma e de Lutero, insurgindo-se contra a venda de indulgências. Ao se deparar com tal nível de estranhamento ou de contradição, o indivíduo que ousa pensar (e agir) é compungido a renunciar à adesão ou promover uma ampla reforma dos pressupostos: Pois se acreditasse encontrar esta contradição, não poderia em sã consciência desempenhar sua função, teria de lha renunciar.

A este tempo de Kant, um século antes, o liberalismo clássico de Locke (1632-1704) já havia anunciado a urgência da tolerância, principalmente religiosa. Portanto, nem sob o impacto do Contrato Social (ou da deliberação religiosa, invocando-se dogmas e preceitos sagrados), nem sob o codinome o livre-arbítrio, há legitimidade (para ser coerente com o uso pessoal da razão) para se abrir mão da liberdade ou, o que dá no mesmo, colocar-se livremente sob o jugo da escravidão (há contradição interna aos termos). Pela lógica (ou sob o império da lei) não são válidas ou legítimas tais cláusulas leoninas ou ainda as assim chamadas Leis de Plenos Poderes (porque se não se admite a divergência, não há liberdade e nem esclarecimento ou maioridade). De tal modo, condenar o povo à ignorância (negando-lhe o acesso à informação, a educação) é um crime de lesa pátria, pois o progresso é natural ao esclarecimento.

Mas o povo, como coletivo, pode impor a si próprio leis de restrições, a começar da "liberdade de pensamento 14"? Pensemos no chamado Estado de Emergência 15: Seria certamente possível, como se esperasse por lei melhor, mas por determinado e curto prazo, e para (re)introduzir certa ordem. Ao que ainda se poderia acrescentar sob rígida vigilância e estrita ou crítica e urgente circunstância (ou em condições determinadas, espaço delimitado e um curto prazo pré-estabelecido). Historicamente, mesmo sob condições gravíssimas, seria difícil de se legitimar a opressão desmedida e sem fim. Este era o caso da nomeação de um Imperador 16 romano, a fim de se normalizar graves instabilidades institucionais, suspendo-se a vigência das garantias da República (mas não subtraindo-se ao Senado, que continuava como seu juiz).

Durante a República, o título de imperator sinaliza apenas um "comandante das forças militares" e não Imperador. É óbvio, mas Imperador não combina com a idéia de República. Já a figura do Cônsul implicava que este comandante teria o mais importante cargo executivo da República.

Por outro lado, renunciar ao esclarecimento não seria um direito individual, sagrado e consagrado pelo liberalismo e pelo Iluminismo?

Um homem sem dúvida pode, individualmente, e mesmo assim por tempo limitado, no que lhe diz respeito, adiar o seu esclarecimento. Contudo, renunciar ao esclarecimento, para si ou para seus descendentes, é ferir os direitos mais sagrados da Humanidade. Portanto, se não é lícito ao povo tomar tal decisão, menos ainda será lícito a um governante decidir sobre esse fim.

Renunciar ao esclarecimento é ir contra o "caminho normal, natural" da vida em sociedade, da Humanidade como um todo. É como se dissesse: a ninguém é dado o direito de se escusar da tarefa de ser humano. Seguindo Max Weber (1979), ainda se diria: "o desencantamento do mundo é inevitável, inexorável".

O BOM governo, ao contrário, deve evitar que um súdito impeça a outros de trabalharem, de acordo com sua capacidade (e mais ainda se de forma violenta), para a determinação e a promoção de si mesmos. Também aquele se expõe à censura, sem reagir, ou o censurador padecem do mesmo mal: Ceaser non est supra grammaticos ("erra muito quem censura").

De tal modo, a obrigatoriedade do ensino — como parte do direito à educação — teria reflexos diretos na tarefa da construção social do conhecimento e da consciência e da responsabilidade social.

Assim, se é verdade que "erra muito quem censura", então, deve-se concluir pela afirmação tanto do "direito de livre pensamento" quanto pela "livre expressão", e se esta última condição for tomada, igualmente, como parte do direito à educação, logo, concluiremos pela necessidade da constância da "liberdade de cátedra".

Neste contexto, o laicisismo (o Estado Laico como empuxo ao Estado Moderno) mostrou-se muito eficaz à luta pela liberdade e pelo reconhecimento de direitos, incluindo-se aí a educação. Isto se deu, em parte pela via armada da guerra civil, a exemplo da Inglaterra do século XVII, em parte como movimento social e cultural pela tolerância e pela liberdade. Serve de exemplo o fato de que num regime de liberdade, a tranqüilidade pública e a unidade social apaziguam fontes de inquietação.

Nesse estado de liberdade pública, os indivíduos se desprendem progressivamente do estado de selvageria inicial e, talvez, sobrevivente à vida social contingente. Portanto, se fizermos uso de um raciocínio equivalente, podemos concluir que a não-liberdade ou o autoritarismo não podem nos conduzir à liberdade: não há como forçar à liberdade. Há sedução pela liberdade (como ação política ou religiosa, no caso dos movimentos pela tolerância religiosa) ou por seu ideal e isto, por si, já esclarece e elimina o que não-é-liberdade.

Esse estado de liberdade pública, entretanto, encontrará uma ressalva quanto ao alargamento da liberdade ou, em sentido inverso, quanto a suas restrições: a Razão de Estado. Somente aquele, embora sendo esclarecido 17 , não tendo medo de sombras e com um exército numeroso à disposição, bem treinado, pode dizer aquilo que não é lícito 18 a um Estado livre supor: raciocinais tanto quanto quiserdes e sobre qualquer coisa, contanto que obedecei! Parece clara a minuta da Razão de Estado que se constituiria sob o Estado Moderno.

Em síntese, para o Iluminismo, a dignidade está em pensar livremente, para que o indivíduo deixe de ser máquina, a fim de se ver livre do jugo da cangalha do tutor ou do moinho da fortuna — e que geralmente falha em termos políticos. Por fim, vale indagar, hoje, será que experimentamos um mundo em tempos de esclarecimento? Ousemos um pouco e logo saberemos — como queria aquele Kant de há muito tempo:

"Ouse saber!"

"Ouse querer!"

"Ouse questionar!"

"Ouse fazer!"

"Ouse lutar!"

"Ouse vencer!"

Em suma, nada mais era do que a súmula do projeto político ideal-Iluminista de se construir o reino da liberdade e da felicidade na Terra, com a ajuda da ciência, das artes (Renascença) e dos ofícios e tecnologias (da manufatura à grande indústria). No entanto, as exigências do século XIX, novamente, traziam à baila o inelutável método que melhor se aplicaria à vida social, política, ao mundo do trabalho ou à academia. É chegada a hora do positivismo de Comte se apresentar, como antecessor dos métodos modernos de produção do fordismo e do taylorismo.

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Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Estado-Ciência.: As bases racionalistas da modernidade: Educação, Ciência e Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2033, 24 jan. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12240. Acesso em: 16 abr. 2024.

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