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Estado-Ciência.

As bases racionalistas da modernidade: Educação, Ciência e Direito

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24/01/2009 às 00:00
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O Renascimento foi marcado pela transição para o capitalismo, centralização dos Estados, laicização e avanços científicos, impulsionando a formação do Homem Novo.

Resumo: O objetivo do texto é traçar em linhas gerais o espírito revolucionário que ostentou e instigou o período histórico que ficou conhecido como Renascimento. Além da enorme influência da chamada Rota da Seda, é de conhecimento comum que a passagem ao capitalismo foi marcante, assim como organização e centralização dos Estados, a laicização que está por trás da formação do Estado-Nação, o fortalecimento do pensamento em prol da unidade jurídica secular, as inúmeras profissionalizações, descobertas científicas, o papel social incalculável de "notáveis homens de ciência", as suas invenções técnicas e o aprimoramento tecnológico, a Expansão Ultramarina e a demanda inquestionável pela Educação do Homem Novo: (re)público, laico, nacionalista, empreendedor, conquistador, individualista.


Homo homini lupus (Hobbes)

Saber é poder (Bacon)

A rudeza nasce da ignorância (Vico)

Sapere aude! (Kant)


Estudar o Renascimento, em pleno século XXI, não é uma fuga ascética do mundo, diria Weber (1979), nem tampouco uma expectativa tola de se encontrar respostas milagrosas. Porém, diante dessa real crise de civilização 01 que enfrentamos é, no mínimo, um retorno, como tentativa, de nos socorrermos contra a mediocridade reinante. Para fins didáticos, iniciaremos o artigo com uma apresentação dos conceitos fundamentais a este entendimento global do Renascimento e de suas conseqüências e heranças deixadas ao futuro, ou seja, nós e a modernidade que nos abrigou.

Em suma:

O termo "Renascimento" foi empregado pela primeira vez em 1855, pelo historiador francês Jules Michelet, para referir-se ao "descobrimento do Mundo e do homem" no século XVI. O estudo da literatura antiga, da história e da filosofia moral tinha por objetivo criar seres humanos livres e civilizados, pessoas de requinte e julgamento, cidadãos, mais que apenas sacerdotes e monges. No campo do direito, procurou-se substituir o abstrato método dialético dos juristas medievais por uma interpretação filológica e histórica das fontes do direito romano. Os renascentistas afirmaram que a missão central do governante era manter a segurança e a paz. Maquiavel sustentava que a virtù (a força criativa) do governante era a chave para a manutenção da sua posição e o bem-estar dos súditos 02.

O poder político forte, organizado e pronto para agir, em seguimento à Razão de Estado, ainda era preciso fortalecer o escopo ideológico do homem do Renascimento. Um dos primeiros autores a se debater em torno disto foi Comenius (1592-1670), com sua obra máxima Didática Magna (escrita entre 1627 e 1632) ou Tratado da arte de universal de ensinar tudo a todos. No título já está posta sua inclinação: o método deveria permitir aos professores ensinar menos e aos alunos aprenderem mais. Logo se vê aí a posição ocupada pela disciplina e pela pesquisa.

Como um dos expoentes do Movimento do Mecanismo (veremos adiante), escrevia que a ordem é a alma das coisas e que a repartição do tempo, da matéria e do método dever ser como a de um relógio. Como temente a Deus e ainda preso à Escolástica, dita a Sagrada Escritura como corretivo do relógio moral humano: "Não há melhor meio para corrigir a corrupção do que a reta educação dos jovens. Do mesmo modo, não há Estado sem escola, pois a educação é um viveiro de virtudes (neste sentido será seguido por Helvétius (tributário de J. Locke): "A harmonia social poderia ser, mediante tal enfoque, obtida do agenciamento pedagógico da sociedade" (Boto, 1996, p. 23).

Humanista como era e realista, escreveu que os bons mestres são poucos e seguem aos ricos e não povo. Por essa razão citará Diógenes, discípulo de Pitágoras: "Qual é o fundamento de todo Estado? A educação dos jovens" (Monteiro, 2006, p. 49. – grifos nossos). Afinal, sem cuidados, a maior parte da juventude cresce em meio a uma selva. Este traço de seguir aos ricos, neste período, entretanto, tinha outra interpretação que não somente a usura ou da ostentação. É uma relação entre estética e política:

Opiniões saudáveis do povo — Ser elegante não é coisa vã; pois é mostrar que um grande número de pessoas trabalha para si; é mostrar pelos cabelos que se tem um criado pessoal, um perfumista, etc; pelo peitilho, o bordado, os passamanes... Ora, não é uma simples superficialidade, nem simples arreios, ter vários braços. Quanto mais braços se tem, mais forte se é. Ser elegante é mostrar sua força (1994, Pascal, p. 07).

Contudo, Comenius dirá que a excelência do homem está na instrução, a virtude (a moral) e a piedade. Portanto, a verdadeira educação não introjeta nada do exterior, pois deverá fazer aflorar o que há dentro de cada um, como uma videira (que dá vida): "Os órgãos dos sentidos são os órgãos do conhecimento, do desejo de saber que é inato e permanente" (Monteiro, 2006, p. 49).

Para tanto, não bastava o Estado Guarda-Noturno, que desse segurança aos seus súditos, era necessário o tal Estado Empreendedor, não apenas conquistador como no passado bárbaro, mas sim de bases racionais, ou seja, plausíveis, críveis e confiáveis diante da margem de acerto e erro. Este Estado erigiu um porto-seguro no direito, ou melhor, num sistema jurídico unificado (ao revés do pluralismo jurídico medieval), nas palavras de Antonio Carlos Wolkmer:

A questão jurídica irá ser tratada de forma distinta pelos dois expoentes da Reforma. Enquanto o teólogo Lutero desprezava o jurídico e detestava os juristas tanto quanto a filosofia de Aristóteles e a escolástica metafísica, Calvino, formado em Direito, aplica no estudo da Bíblia o método exegético do mundo jurídico. Trata-se de um jurista que, em Genebra, incorpora e leva adiante os propósitos da Reforma naquilo que Lutero desconsiderava: a organização da Igreja reformada [...] A orientação humanista incidiu, como não poderia deixar de ser, no âmbito da teoria e da prática jurídica. Assim, o humanismo no Direito contribuiu para uma natural e clássica revisão crítica da cultura jurídica produzida pela Idade Média. O próprio eixo explicativo de sustentação da doutrina do Direito Natural começa a se deslocar para a sociedade humana e para a natureza racional do homem, antecipando-se, assim, o que seria mais tarde a proposição filosófica do contrato social [...] Algumas características da época, como a secularização, a racionalização, a individualidade e o antropocentrismo, marcam a passagem para a construção e consolidação de um novo mundo que legitima também uma nova forma de produzir, pensar e praticar o Direito. Assim, a "nova consciência jurídica européia" nasce da convergência histórica do naturalismo, da individualidade e da centralização política burocrática. A par de toda essa dinâmica específica, a nascente cultura jurídica eurocêntrica está profundamente afetada por fenômenos radicais e criadores que têm suas raízes no Humanismo renascentista e na Reforma Protestante. Tanto um quanto o outro, desses movimentos, exerceram uma influência direta nas instituições jurídicas e na moderna doutrina dos direitos fundamentais 03.

Posteriormente à centralização do Estado-Leviatã de Hobbes (1983), o único capaz de dar segurança e, ao mesmo tempo, reunir recursos para as grandes navegações, desembarcamos no jusnaturalismo de John Locke. O liberalismo clássico de Locke, quando voltado a esta relação Estado-Direito, pressupõe uma relação objetivo entre o Poder Extroverso do soberano e seus súditos. Por exemplo, ao indagar acerca do que é o poder político?

Por poder político, então, eu entendo o direito de fazer leis, aplicando a pena de morte, ou, por via de conseqüência, qualquer pena menos severa, a fim de regulamentar e de preservar a propriedade, assim como de empregar a força da comunidade para a execução de tais leis e a defesa da República contras as depredações do estrangeiro, tudo isso tendo em vista apenas o bem público (Locke, 1994, p. 82).

Ou quando trata diretamente do que entende pelo que seja ou deva ser o Poder Legislativo: "A lei civil, sendo o ato de todo o corpo político, tem a primazia sobre cada parte do mesmo corpo" (Locke, 1994, p. 138). Para em seguida nos revelar a fonte do próprio direito consuetudinário, aquele baseado nos costumes — a Comunidade Civil ou commonwealth:

Como a forma de governo depende da atribuição do poder supremo, ou seja, do Legislativo, é impossível conceber que um poder inferior possa prescrever a um superior, ou que um outro além do poder supremo faça as leis, a maneira de dispor o poder de fazer as leis determina a forma da comunidade civil (Locke, 1994, p. 160).

Em seguida ainda nos traça um panorama do alcance e dos limites ao Poder Legislativo:

Primeiro: ele não é exercido e é impossível que seja exercido de maneira absolutamente arbitrária sobre as vidas e sobre as fortunas das pessoas [...] Segundo: O Legislativo, ou autoridade suprema, não pode arrogar para si um poder de governar por decretos arbitrários improvisados, mas se limitar a dispensar a justiça e decidir os direitos do súdito através de leis permanentes já promulgadas e juízes autorizados e conhecidos [...] Terceiro: O poder supremo não pode tirar de nenhum homem qualquer parte de sua propriedade sem seu próprio consentimento [...] Quarto: O poder legislativo não pode transferir para quaisquer outras mãos o poder de legislar; ele detém apenas um poder que o povo lhe delegou e não pode transmiti-lo para outros (Locke, 1994, pp. 163-164-166-168).

Tais limites, pois, são demarcados por deveres e por obrigações peculiares às funções requeridas ao próprio Poder legislativo:

Primeiro: Ele deve governar por meio de leis estabelecidas e promulgadas, e se abster de modificá-las em casos particulares, a fim de que haja uma única regra para ricos e pobres, para o favorito da corte e o camponês que conduz o arado. Segundo: Estas leis só devem ter uma finalidade: o bem do povo. Terceiro: O poder legislativo não deve impor impostos sobre a propriedade do povo sem que este expresse seu consentimento, individualmente ou através de seus representantes [...] Quarto: O legislativo não deve nem pode transferir para outros o poder de legislar, e nem também deve depositá-lo em outras mãos que não aquelas a que o povo o confiou (Locke, 1994, p. 169).

O que, em tese, a fim de que poder controle poder, deveria desembocar na hierarquia entre os poderes:

Em uma sociedade política organizada, que se apresenta como um conjunto independente e que age segundo sua própria natureza, ou seja, que age para a preservação da comunidade, só pode existir um poder supremo, que é o Legislativo, ao qual todos os outros estão e devem estar subordinados; não obstante, como o legislativo é apenas um poder fiduciário e se limita a certos fins determinados, permanece ainda no povo um poder supremo para destituir ou alterar o Legislativo quando considerar o ato legislativo contrário à confiança que nele depositou [...] Deste modo, a comunidade permanece perpetuamente investida do poder supremo de se salvaguardar contra as tentativas e as intenções de quem quer que seja, mesmo aquelas de seus próprios legisladores, sempre que eles forem tão tolos ou tão perversos para preparar e desenvolver projetos contra as liberdades e as propriedades dos súditos (Locke, 1994, p. 173).

Por fim, mas o que talvez devesse constar do princípio, porque tudo isto só faria sentido se prevalecesse o interesse público, surge como um dos temas centrais do Segundo Tratado sobre o Governo Civil, o princípio da moralidade: "A regras salus populi suprema lex é certamente tão justa e fundamental que aquele que a segue com sinceridade não corre um risco grande de errar" (Locke, 1994, p. 179).

Com isto chegamos à idéia da liberdade e das relações construídas de forma real e duradoura, como reino terrestre, e o papel da educação na sua elaboração. Depois de Comenius, um passo decisivo rumo ao Homem Novo, primeiro foi dado por Helvétius e, posteriormente, por Diderot:

Ocorrerá, a partir de meados do século XVIII, uma intensificação do pensamento pedagógico e da preocupação com a atitude educativa [...] Das relações mestre e discípulo às determinações políticas do ato pedagógico, tudo isso seria considerado decorrente de um fator preliminar, concernente à identificação dos mecanismos propulsores do aprendizado humano [...] Da Ilustração à Revolução, a pedagogia desloca-se do terreno filosófico para incursionar pela prática política, pelo lugar institucionalizado na escola propugnada; deixa de ser objeto privilegiado do indivíduo para ser concebida como direito e capacidade inerentes à espécie [...] Advogar ou não a escola para todos foi, desde logo, estratégia política de matriz iluminista (Boto, 1996, pp. 21-23).

Este é marco histórico do aprender a aprender política. Neste aspecto, diverge bastante do Renascimento e sua clara intenção pela matematização das relações humanas e com a natureza (como veremos).

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Construir a liberdade e a felicidade na Terra

Por outro lado, em linha de confronto direto a este conjunto de pensamentos iluministas (mais idealistas do que o realismo de Estado poderia permitir), vejamos a distinção nítida entre Nação e Pátria: Nação é uma fronteira política em relação à identidade da etnia, já fazia notar Diderot, em 1750, no famoso Enciclopédia ou Dicionário raciocinado das ciências, das artes e dos ofícios. Pátria, por sua vez vem de pater (pais e filhos):

A origem desse conceito situa-se no âmbito da família, como célula original, de onde seriam derivadas as acepções de sociedade e de Estado. Sendo a pátria um poder tão antigo quanto a sociedade, ela, assim, remete ao sentimento de público, fundador da soberania: uma felicidade que só vigora no coletivo, na partilha de virtudes, típica da vontade política que clama por democracia: "Amor das leis e da felicidade do Estado, amor singularmente reservado às democracias; é uma virtude política pela qual se renuncia a si mesmo preferindo ao interesse próprio o interesse público; é um sentimento e não uma continuação do conhecimento; o último dos homens do Estado pode ter tal sentimento, tanto como o chefe da república" (Boto, 1996, p. 43).

Por sua vez, a Pátria deveria excluir a tirania, incongruente com o ideal de liberdade que se gestava no período revolucionário de 1789:

"As suspeitas, os remorsos, os terrores cercam-no por todos os lados; não conhece ninguém digno de sua confiança, apenas têm cúmplices, e nenhum amigo. Os povos, exaustos, degradados, envilecidos pelo tirano, são insensíveis aos seus insucessos, e as leis que violou não o podem auxiliar: em vão reclama a pátria. Haverá alguma onde um tirano reina?" (Boto, 1996, p. 43. - nota 33).

Vemos como a modernidade construiu as bases técnicas e científicas de sua razão. O tema pode ser tratado como Estado-Ciência, quando uma forma política que precisa da ciência para o seu próprio desenvolvimento, mas, para isso, sabe que é preciso ter "liberdade para conhecer". O tema também pode ser debatido como Estado Cientificista, quando a forma política subjuga o conhecimento para fins estritamente relacionados à razão de Estado; quando a crítica, tão necessária ao crescimento do conhecimento, desapareceu. No entanto, ao contexto como um todo, sem as tradicionais divisões do Renascimento e do Iluminismo que o seguirá, em séculos, daremos o nome de Estado Cientista ou Cientificista:

Em suma, os tecnodirigentes estão de acordo no essencial. A política politiqueira e a administração executiva estão mortas. Viva o político e a gestão! As opções partidárias cedem lugar à resolução dos problemas. São afastados revolucionários e conservadores, deixando caminho livre para os animadores da mudança social. O Estado-cientificista será dirigido por negócios e técnicos (Pisier, 2004, p. 493. – grifos nossos).

O tema ainda poderia ser visto como Estado Cientista, quando a forma política passa a ser o principal investidor na área científica, no conhecimento, pois disso depende todo o desenvolvimento social. Portanto, o Estado Cientificista nada mais é do que uma das versões mais modernas do Estado de Necessidade, e que veio oferecer doses generosas de razão, método, perspectivas e estratégias diferentes para amparar/suprir as necessidades do capital. Assim como o Estado de Sítio Político servir-lhe-ia como uma dotação suplementar de "razão política" necessária à manutenção do poder sob a Razão de Estado. No final, ainda há um pequeno escorço comparativo entre os ideais de uma educação republicana e a realidade imposta à educação tecnicista pelo Estado Cientificista (predecessor técnico do Estado de Exceção).

A relevância deste tema para entender o conjunto que dá forma ao Estado Cientificista (ou Estado-Ciência) faz uma espécie de mediação entre a Razão de Estado clássica (dos séculos XV e XVI) e o Estado de Necessidade (já afirmado pela Revolução Francesa). O Estado Cientificista, portanto, exerceu o papel de dotação racional para o desenvolvimento capitalista: uma justificativa política do capital. Esse processo passou a ser conhecido como mecanismo e é óbvio que se liga ao cartesianismo. De modo direto: "Há um cartesianismo metodológico, que consiste em só nos fiarmos na evidência racional, um cartesianismo científico, que se confunde com o mecanismo, um cartesianismo metafísico, que considera a existência do nosso pensamento como a nossa primeira certeza" (Alquié, 1987, p. 17).

Curiosamente, a virtù não será algo assim tão positivista, que separe tão frontalmente objeto e sujeito, aliás, esta separação nos deixaria muito distantes da virtù. Portanto, dada mais distante da virtù do que separar talento e ação, intenção e resultado, condições e vontade, meios e subjetividade, objetividade e interesses, razão e força. Neste sentido, a virtù é uma construção histórica e sociológica, pois há momentos históricos, bem como sociedades que animam este projeto e outros, em contrário, que nos afastam contundentemente desse objetivo. Mas de que é feito o mecanismo?


Mecanismo: Galileu – Descartes - Hobbes – Bacon

O "movimento do mecanismo" promoveu a razão necessária ao Estado Moderno, como mecanismo de superação do "estado de necessidade da natureza". O mecanismo ofereceu o aporte do argumento lógico ao "poder instrumental" do Leviatã. O mecanismo ainda empregou um sentido científico à dominação política e projetou a "dominação técnico-racional", em compasso com o discurso do Estado de Direito (como queria Weber):

O mecanismo é uma filosofia da natureza segundo a qual o universo e qualquer fenômeno que nele se produza podem e devem explicar-se de acordo com as leis dos movimentos materiais. "A minha filosofia", escrevia Descartes a Plempius, "só considera grandezas, figuras e movimentos, à semelhança do que faz a mecânica". A fórmula será constantemente retomada no seu século: tudo na natureza se faz por "figuras e movimentos" (Alquié, 1987, p. 59).

Como veremos, no mecanismo, há uma mescla entre racionalidade e empirismo. Sob essa influência, mas em período subseqüente, também surge Blaise Pascal (1623-1662): filósofo, místico, físico e matemático. A frase mística "o coração tem razões que a própria razão desconhece" é uma síntese de sua doutrina filosófica: entre raciocínio lógico e emoção. Pascal foi um gênio matemático e também criou a primeira calculadora mecânica. Além de sua intensa atividade científica, ainda se dedicou a trabalhos de natureza filosófico-religiosa e, como teórico, destacou-se como um dos mestres do racionalismo e do irracionalismo. Porém, antes disso, no século XVII, o mecanismo tinha uma fórmula simples: Tudo na natureza ocorre por meio de figuras e dos seus movimentos. É deste fluxo que advém a ciência clássica. Também é neste sentido que se pode dizer que o mecanismo promoveu uma revolução na ciência sem ter sido uma teoria científica — distinguiu-se como uma nova racionalidade e por trazer outra forma de apreensão dos fenômenos. O próprio surgimento do mecanismo se deu com uma descontinuidade, mas o sentido laico e comum é a necessidade de explicar os fenômenos da natureza exclusivamente pelas leis dos movimentos da matéria — e esta não tem alma. Esse típico pensamento mecanicista (tendo o cartesianismo por referência) logo ganhou a consciência do homem comum. Os "mecanicistas" ainda rejeitaram as físicas animista, qualitativa, finalista. Mas o Mecanismo não foi só uma ilustração filosófica, foi uma obra de concretude técnica ou, mais precisamente, de obras mecânicas (além da própria mecânica, enquanto parte da física):

MECÂNICA – tradicionalmente a teoria das máquinas, em particular as cinco "máquinas simples": a alavanca, a cunha, a roldana, o parafuso e o molinete. Transformada durante a revolução científica para incluir teorias de colisão e outros problemas associados com corpos em movimento (Henry, 1998, p. 139).

Foram aí indicadas cinco peças, além da lançadeira voltante, que propiciou a alavancagem da Revolução Industrial. O que também se percebe hoje com mais clareza é que o próprio Renascimento não foi uma era homogênea, recheada de grandes gênios e em meio a cursos revolucionários contínuos. Houve sim, como longo processo de amadurecimento e de profundas transformações, certos momentos ou fases em que dialogavam plenamente o moderno e o arcaico, o novo e as tradições, as mudanças e o sectarismo, a alquimia e a química, a RETA RAZÃO e o pensamento mágico:

"MIRABILIA" — literalmente, "coisas maravilhosas". Usado para denotar máquinas ou autômatos que costumavam ser mostrados na corte em exibições, cerimônias, espetáculos teatrais e ocasiões similares e que pretendiam produzir, por meios ocultos, efeitos impressionantes ou surpreendentes, mas apenas divertidos (Henry, 1998, p. 22).

Esta mescla ou era de transição entre épocas tão díspares, até que se conhecesse todo o potencial do Renascimento(?), também teve obscuridades ou incertezas (aliás, muito apropriadas quando se trata de ciência):

Entretanto, o autor daquele livro seiscentista de ‘química’ empregava largamente uma simbologia de derivação alquimista, defendia a existência de uma real analogia entre as propriedades do arsênico e do antimônio e o comportamento dos animais (a serpente e o lobo) com cujos nomes as substâncias eram simbolizadas: ou seja, identificava (como tipicamente ocorre dentro do ‘mundo mágico’) as propriedades e as características dos objetos usados como símbolos com as propriedades e as características dos objetos ou das coisas reais simbolizadas (Rossi, 1992, pp. 331-332 – grifos nossos).

Esta análise — do livro Schema materialum pro laboratorio portabili sive Tripus Hermeticus fatidicus pandens oracula chymica, de Johann Joachim Becher (1689) — revela que há magia no Renascimento, que o próprio desencantamento do mundo (como racionalidade progressiva) não é um processo uno, homogêneo, onipresente. Na verdade, ainda que talvez seja o período mais fulgurante da história humana (maior ainda do que as civilizações grega e roamana), o Renascimento foi um processo tortuoso, contraditório e extremamente beligerante.

Para Galileu, de modo semelhante, só a razão (consciência dos fatos) leva à verdade, no debate entre ciência (moderna) e fé deve prevalecer o argumento lógico (principalmente porque se deve aplicar essa lógica às próprias Escrituras):

Eu acrescentaria somente que, se bem que as Escrituras não possam errar, os seus intérpretes e expositores poderiam, entretanto, incorrer por vezes em erros, e de várias maneiras [...] Pois nem toda afirmação da Escritura amarra-se a uma obrigação tão severa como cada efeito da natureza [...] E quem quererá colocar um limite à capacidade do espírito humano? Quem ousará afirmar já ser conhecido tudo o que existe de cognoscível no mundo? (Galileu, 1988, pp. 18-19-20 – grifos nossos).

Entretanto, lhe permaneceu vivo esse espírito de desconfiança, ou melhor, de não apostasia diante do conhecido e do conhecimento. Afinal, como ensinou Galileu: Quem afirmará que já se conhece tudo o que possa ser conhecido no mundo?

De certo modo, pode-se reportar ao atomismo da Grécia clássica (Demócrito, Epicuro) para buscar suas raízes. Galileu se declarou epicurista 04 e isto o desvinculou da filosofia natural do Renascimento, abrindo as portas da natureza: "Este materialismo desmistificava os prestígios da natureza e podia ajudar fortemente os homens a tornarem-se senhores e possuidores dela" (Alquié, 1987, p. 61). Ou seja, o mecanismo procurou livrar o homem da ação dos poderes que não fossem científicos ou provindos da razão: "A doutrina que então explicava a matéria por meio de um arranjo mecânico de átomos destinava-se a desprender o homem de todos os poderes exteriores a si; nem as coisas cá de baixo nem os astros lá do alto podiam exercer influência sobre ele" (Alquié, 1987, p. 61). No entanto, havia uma diferença acentuada entre atomistas e mecanicistas: "Os mecanicistas do século XVII reclamam a liberdade que se obtém dominando a natureza; os atomistas antigos haviam buscado a que se alcança preservando-se da natureza" (Alquié, 1987, p. 61). Os mecanicistas eram intervencionistas, mas, além disso, o século XVII queria desvendar o mundo. De certo modo, diferentemente de muitos outros "colaboradores menores" (Torricelli, Cavendish, Mersenne), Descartes foi mais dogmático: "A dúvida permitiu encontrar as verdades primeiras a partir das quais se funda uma ciência certa" (Alquié, 1987, p. 63). Sua dúvida metódica trouxe-lhe rápidas certezas.

Por isso, também viram sucumbir a idéia do cosmos como "hierarquia ontológica fechada" — em benefício de um mundo aberto e em movimento, e segundo leis gerais e comuns. Por exemplo, para Descartes, a natureza é matéria: "A natureza nada inventa: há tão-só fenômenos que aí aparecem, explicáveis por algumas leis simples e imutáveis" (Alquié, 1987, p. 66). Também o homem é matéria, e máquina em movimento — para Descartes, o homem é simples: "O corpo do animal e do homem, excetuada uma maior complexidade, não funciona de modo diferente de qualquer maquinaria fabricada pelos homens" (Alquié, 1987, p. 66). Relógios e órgãos são bem semelhantes, assim como nervos e tubos. A água que brota das fontes, pode mover máquinas ou pronunciar palavras. As molas se armam como tendões. Contudo, é pelo pensamento que o homem compreende a máquina, e tanto o seu corpo quanto a mecânica do mundo. Mais especificamente, Descartes e Pascal fizeram assim uma distinção do espírito e da matéria 05. Talvez ainda deva-se dizer que havia uma tendência à mecanização radical: "Pensando que o seu corpo é uma máquina integrada na grande máquina do universo, o homem assegura a sua dignidade" (Alquié, 1987, p. 67). Neste sentido, se ainda quisermos, os gregos também conheciam a arte dos "mecanismos autômatos" (Losano, 1992).

Observando-se retrospectivamente, no entanto, há uma forte ironia quanto aos princípios e resultados do mecanismo: "Foi como filosofia da natureza, como teoria geral do mundo, que ele se mostrou fecundo, dando ao homem um outro olhar sobre o universo, e não na sua aplicação ao pormenor dos fenômenos" (Alquié, 1987, p. 70). Sua superação também se deu de modo lento, em concomitância com o surgimento das ciências especializadas: o funcionalismo seria um caso típico. Enfim, a partir de então, o "conhece-te a ti mesmo" iria depender do conhecimento da física e da mecânica mais especificamente.

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Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Estado-Ciência.: As bases racionalistas da modernidade: Educação, Ciência e Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2033, 24 jan. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12240. Acesso em: 25 abr. 2024.

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