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A norma fantasma do artigo 47 da Convenção de Mérida.

Ou: sobre como se corrompeu o tratado anticorrupção

20/02/2009 às 00:00
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É inacreditável, mas é verdade. O Governo brasileiro realizou um prodígio na história da cooperação internacional: conseguiu introduzir uma norma fantasma num tratado. Refiro-me à Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (CAC-ONU) ou United Nations Convention against Corruption (UNCAC, na sigla em inglês). Adotada em Nova Iorque em 31 de outubro de 2003 (Resolução 58/4) e aberta a assinatura em Mérida, México, em dezembro daquele ano, esse importante tratado internacional foi promulgado no Brasil por meio do Decreto 5.687, de 31 de janeiro de 2006.

O texto de Mérida foi redigido nos idiomas oficiais das Nações Unidas, tendo, portanto, seis versões autênticas (artigo 71, parágrafo 2), em árabe, chinês, espanhol, francês, inglês e russo. Autênticas, porque todas são igualmente válidas para fins interpretativos. Os Estados Partes signatários que não adotam essas línguas tiveram de providenciar traduções para os seus vernáculos. Essas versões são ditas oficiais. Assim o Brasil o fez. Ou melhor, tentou fazê-lo.

O fato é que, a despeito de sua importância universal, a Convenção de Mérida foi pessimamente vertida para o português -- ou para o "brasileiro", como dizem os herdeiros diretos do idioma de Camões. Sobram indícios de que a tradução brasileira foi baseada na versão autêntica em língua espanhola. O texto publicado aqui em Ibirapitanga está repleto de erros de concordância verbo-nominal. Há um sem-número de palavras inventadas, derivadas de falsos cognatos ou não. Há termos que não são encontrados nos dicionários. Há expressões confusas que sugerem que o tradutor não era versado em português e muito menos em "juridiquês". Veja esses horrendos exemplos, pinçados a esmo:

Dispositivo

O que está escrito

O que deveria estar escrito

Art. 1º, c

Obrigação de render contas

Obrigação de prestar contas

Art. 2º, f

Embargo preventivo

Arresto ou sequestro

Art. 2º

Delito determinante

Delito antecedente

Art. 7º, 1, c

Escalas de soldo equitativas

Política remuneratória equitativa

Artigo 8º, 5

Inversões

Investimentos

Art. 11, 2

Não forme parte do

Não integre o

Art. 13, 1

Esforçar-se

Fazer-se cumprir

Art. 14, 1, a

Denúncia de operações suspeitas

Comunicação de operações suspeitas

Art. 14, 2,

Movimento transfronteiriço de efetivo

Movimentação transnacional de dinheiro

Art. 15

Qualificar como delito

Tipificar ou criminalizar

Art. 23, 1, b, i

Possessão

Posse

Art. 23, 1, b, ii

Confabulação

Conspiração

Art. 24

Encobrimento

Favorecimento real

Art. 31, 3

Bens incautados

Bens sequestrados ou arrestados

Art. 33

Trato injusto

Perseguição/represália

Art. 34

Procedimentos encaminhados a anular

Procedimentos destinados a anular

Art. 35

Ação legal

Processo/ação

Art. 35

Danos e prejuízos

Perdas e danos

Art. 37

Restabelecer

Encorajar

Art. 41

Presumido criminoso

Suposto autor da infração

Art. 46, 3, c

Inspeções, incautações e/ou embargos

Buscas e apreensões, arrestos ou sequestros

Além dessas mutilações vernaculares que comprometem o sentido e a aplicação do tratado, o texto brasileiro da Convenção de Mérida padece de um mal mais grave, pois contém uma norma inexistente nas versões autênticas. Por razões óbvias, não me atrevi a examinar os documentos em árabe, chinês e russo, mas posso assegurar que o artigo 47 da CAC-ONU, na versão oficial brasileira publicada no site da Presidência da República, não corresponde ao que consta do mesmo artigo nos idiomas francês, inglês e espanhol.

Confira o que estabelece o artigo 47 da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Convenção de Mérida). As versões autênticas, nos principais idiomas da ONU, intitulam o dispositivo de "transferência de procedimentos criminais":

Inglês

Espanhol

Francês

Article 47. Transfer of criminal proceedings

States Parties shall consider the possibility of transferring to one another proceedings for the prosecution of an offence established in accordance with this Convention in cases where such transfer is considered to be in the interests of the proper administration of justice, in particular in cases where several jurisdictions are involved, with a view to concentrating the prosecution.

Artículo 47. Remisión de actuaciones penales

Los Estados Parte considerarán la posibilidad de remitirse a actuaciones penales para el enjuiciamiento por un delito tipificado con arreglo a la presente Convención cuando se estime que esa remisión redundará en beneficio de la debida administración de justicia, en particular, en casos en que intervengan varias jurisdicciones, con miras a concentrar las actuaciones del proceso.

Article 47. Transfert des procédures pénales

Les États Parties envisagent la possibilité de se transférer mutuellement les procédures relatives à la poursuite d’une infraction établie conformément à La présente Convention dans les cas où ce transfert est jugé nécessaire dans l’intérêt d’une bonne administration de la justice et, en particulier lorsque plusieurs juridictions sont concernées, en vue de centraliser les poursuites.

[ONU (em inglês)]

[ONU (em espanhol)]

[ONU (em francês)]

Agora comparemos este artigo com a versão oficial do Brasil que mereceu o esdrúxulo título de "enfraquecimento de ações penais". Para facilitar, recolhi as versões no português de Macau1 e no jeito lusitano.

Português do Brasil

Português de Portugal

Português de Macau

Art. 47. Enfraquecimento de ações penais

Os Estados Partes considerarão a possibilidade de enfraquecer ações penais para o indiciamento por um delito qualificado de acordo com a presente Convenção quando se estime que essa remissão redundará em benefício da devida administração da justiça, em particular nos casos nos quais intervenham várias jurisdições, com vistas a concentrar as atuações do processo.

Art. 47º. Transferência de processos penais

Os Estados Partes deverão considerar a possibilidade de transferirem mutuamente os processos relativos a uma infracção estabelecida em conformidade com a presente Convenção, nos casos em que essa transferência seja considerada necessária no interesse da boa administração da justiça e, em especial, quando estejam envolvidas várias jurisdições, a fim de centralizar a instrução dos processos.

Art. 47º. Transferência de processos penais

Os Estados Partes considerarão a possibilidade, reciprocamente, transferir processos no âmbito de acções penais relativas a uma infracção estabelecida em conformidade com a presente Convenção, quando essa transferência seja considerada necessária em razão do interesse de uma boa administração da justiça e, em especial, nos casos em que estejam envolvidas várias jurisdições tendo em vista a centralização da acção penal.

[Presidência do Brasil]

[Ministério da Justiça de Portugal]

[Imprensa Oficial de Macau]

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As divergências são evidentes e aparecem já no título do artigo. Partindo da palavra remisión em espanhol, o tradutor brasileiro lançou mão do substantivo "enfraquecimento", como se lhe fosse equivalente. No corpo do artigo 47, o mesmo cidadão inventou a possibilidade de "enfraquecer ações penais" e utilizou expressamente a palavra "remissão", como se remisión em castelhano tivesse o sentido que se dá a este termo em português. Aí tudo se complicou, pois, no final das contas, a versão brasileira dá a entender que seria permitido imputar a alguém um crime menos grave do que aquele que essa pessoa cometeu ("enfraquecer" a ação penal). Evidentemente não é disso que cuidou o artigo 47 da Convenção de Mérida.

Bastaria ao desatento burocrata conferir as versões em inglês e francês da CAC-ONU, que não deixam dúvida quanto ao conteúdo do dispositivo: a possibilidade de transferência de ações penais entre nações. Esta medida de cooperação penal internacional baseia-se nos princípios da eficiência, da economia processual, da justiça penal universal e do non bis in idem, estando também prevista no artigo 21 da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção de Palermo). A transferência de procedimentos resulta na reunião de investigações ou processos penais de mesmo objeto e, por isso mesmo, acarreta a renúncia à jurisdição local, em favor de Estado estrangeiro, que deverá levar a cabo a persecução criminal.

A questão não é de somenos importância. A Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção é um dos mais relevantes instrumentos internacionais na luta contra a corrupção no globo. O tratado tem disposições de conteúdo penal e processual penal. Tem também regras sobre recuperação de ativos e cooperação penal, que podem ser invocadas subsidiariamente na falta de tratados específicos de assistência jurídica em matéria penal (mutual legal assistance treaties). Um documento deste vulto - que, devido à sua integração normativa, é invocável como lei federal no Brasil - não pode padecer desse vergonhoso desleixo.

Sem meias palavras: a versão oficial brasileira da Convenção das Nações contra a Corrupção foi traduzida por um corruptor da língua de Hungria e Lira, de Evandro e Ruy. É imprestável. Por isso, deve ser refeita, cabendo ao Brasil publicar, o quanto antes, sua nova versão, desta feita no idioma oficial do País, como determina o artigo 13 da Constituição.

Para facilitar essa tarefa e considerando que vivemos tempos de reforma ortográfica para uniformização da língua, talvez fosse mais fácil e rápido adaptar a versão lusitana, ou a de Macau, ou a moçambicana. Seguramente, muito esforço seria poupado.

O Ministério das Relações Exteriores (MRE) e a Controladoria-Geral da União (CGU) estiveram à frente da delegação brasileira na negociação da Convenção de Mérida2. Presumo que um desses dois órgãos (o terceiro "candidato" seria o Ministério da Justiça) tenha sido o responsável pelo embrulho. Espanta que esse texto capenga tenha passado incólume pela Presidência da República, que o assinou e ratificou, e pelo Congresso Nacional, que o aprovou. Não é de se esperar agora que alguém assuma a responsabilidade por essa criatura. Mas é preciso que se dê um jeito nela.


Notas

1 A ex-colônia portuguesa de Macau é uma região administrativa especial da República Popular da China.

2 Isto mostra como faz falta a presença de servidores de órgãos especializados em matéria penal nas negociações de tratados deste tipo.

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Sobre o autor
Vladimir Aras

Professor Assistente de Processo Penal da UFBA. Mestre em Direito Público (UFPE). Professor da Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU). Procurador da República na Bahia (MPF). Membro Fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAS, Vladimir. A norma fantasma do artigo 47 da Convenção de Mérida.: Ou: sobre como se corrompeu o tratado anticorrupção. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2060, 20 fev. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12361. Acesso em: 5 dez. 2024.

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