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Função social da propriedade

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SUMÁRIO: Introdução. 1.Direito de propriedade.1.1.Evolução histórica, 1.2.Os sistemas políticos e a propriedade. 2.O constitucionalismo moderno, 2.1.Função social,2.1.1.A doutrina social da igreja, 2.1.2.A constituição mexicana de 1917, 2.1.3. A constituição de Weimar, 2.2.A construção legislativa do instituto no Brasil, 2.3.Função social e a participação dos poderes. 3.Meios para a implementação da função social, 3.1.Desapropriação, 3.2.Servidão administrativa, 3.3.Requesição temporal, 3.4.Tombamento, 3.5.Direito de superfície. Conclusão. Bibliografia. Anexo


INTRODUÇAO

A propriedade [01] é fenômeno sociológico reconhecido pelo direito, sobretudo após a Revolução Francesa, movimento que teve seu ápice ideológico com a publicação da "Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão", donde a propriedade privada saiu consagrada.

Essa consagração da propriedade privada também é assente em nossa Constituição Federal. Não como quiseram os franceses com o quimérico pilar [02] liberdade, primeira face da citada revolução. Ao contrário, à luz do hoje consagrado princípio da Dignidade da Pessoa Humana [03] – mais afeito à fraternidade e a partir do qual toda e qualquer ponderação deve ser feita – a propriedade é abordada sob o prisma da função social.

Com o imperativo de se atender a uma função social, torna-se possível a configuração de mecanismos de intervenção legítima na propriedade imóvel sem que se comprometa o "sistema jurídico" [04].

A partir do interesse social, fundamento último do que se convenciona ser função social, chega-se à noção das possibilidades legítimas de se intervir na propriedade: imediata – requisição temporal, por exemplo – ou mediata, caso do tombamento. Não resta nenhuma dúvida de que tais espécies de intervenção visam a proteger a coletividade. No primeiro caso de uma catástrofe física, mais alarmante, e no outro de uma catástrofe cultural.

O legislador constitucional originário reconheceu a propriedade como bem a se tutelar, mas, tratando desta dentro do âmbito da justiça social, impôs atender à função social. Neste contexto a Intervenção do Estado na Propriedade assume papel de relevo. A propriedade emerge como correlata a uma finalidade, não mais se justificando por si somente.

Esta é a temática do trabalho: o confrontamento do direito de propriedade com as prerrogativas concedidas ao Estado face à ordem vigente.

A par das alusões tracejadas – e do entendimento dicionarizado que informa ser introdução ato ou efeito de introduzir, explicação que serve de preparação para um estudo – afigura-se ser este o momento de apresentar o estudo em tela.

Aponta-se, inicialmente, que o presente trabalho apresenta caráter eminentemente doutrinário, mesmo que ecos jurisprudenciais possam ser constatados. Vindo a somar à digressão jurisprudencial, algumas referências pessoais serão vistas, sobretudo ao se cuidar da propriedade privada enquanto instituto afeito ao capitalismo e de um dos meios de se implementar a função social: o direito de superfície.

A presente monografia encontra-se dividida em três capítulos, como adiante se verá, com os quais se pretendeu facilitar a compreensão do leitor.

O capítulo primeiro trata dos aspectos atinentes ao direito de propriedade, onde se destacará a evolução histórica do instituto, os princípios que o orientam e sua sistematização dentro do sistema político que acabou sobejando na realidade contemporânea: o capitalismo.

No segundo capítulo se aborda a função social sob a perspectiva legislativa e doutrinária. Destaca-se, pois, a perspectiva do Constitucionalismo Social, forma a partir da qual se tentou humanizar o capitalismo ainda no início do século XX.

O terceiro capítulo cuidará das possibilidades de o Estado implementar a chamada função social. Nesse diapasão falar-se-á da Desapropriação, da Servidão Administrativa, da Requisição Temporal, do Tombamento e do Direito de Superfície – este associado ao IPTU progressivo, medida a que chamamos acautelatória e que tem o condão de o potencializar – vias capazes de efetivar a função social.

A finalidade deste trabalho final de curso é propiciar maior aprofundamento no que concerne à propriedade privada, cuidando, assim, dos casos de intervenção estatal afigurados legítimos nesse fenômeno que chamamos sociológico nas primeiras linhas desta introdução.


1 DIREITO DE PROPRIEDADE

Com as revoluções burguesas do século XVII e XVIII – Inglaterra 1688, Estados Unidos 1776 e Franca 1789 – afirma-se o constitucionalismo. O embrião deste constitucionalismo, contudo, pode ser detectado na Magna Carta de 1215, que já consignava os elementos essenciais do moderno constitucionalismo: a limitação do poder do Estado e a declaração dos Direitos Fundamentais da "Pessoa Humana" [24].

As constituições são o paradigma da atuação estatal, não importando ser o Estado liberal, social ou socialista. Essas concatenam, sempre, elementos essenciais como normas de organização, funcionamento e distribuição da competência estatal, donde decorre a limitação do poder do Estado, e normas que enunciam os Direitos Fundamentais da Pessoa Humana, potencializados, mas não definidos, pela atuação do legislador ordinário, partindo-se do postulado que tais direitos são bastante em si, discussão que retomaremos no tópico 3.5.

É na constituição que se encontra, por exemplo, o grau de limitação ao exercício do poder estatal, o regime político adotado, a forma de organização do Estado, o sistema de governo e os Direitos Fundamentais eleitos, os quais acabam por denotar qual tipo de Estado os anunciou.

O constitucionalismo moderno nasce junto do Estado Liberal, possível com as Revoluções Burguesas antes colacionadas. Assim é que o modelo econômico liberal sobejou no primeiro momento da Idade Contemporânea.

Na gênese do constitucionalismo moderno sua essência é eminentemente individualista, tendo por base a omissão estatal – caracterizadora dos chamados Direitos Humanos de primeira geração [25] pelos quais o Estado tem um dever precípuo de abstenção – e a propriedade privada.

No Estado liberal a idéia de propriedade privada sobeja. Por conseguinte impõe-se o afastamento do Estado da esfera privada. Verdadeiramente foi uma resposta à formatação absolutista então vivida, onde o Estado constituía um empecilho ao exercício das liberdades individuais da maioria da população. Assim, pois, é que os ditos Direitos Humanos de primeira geração são caracterizados por prestações negativas do Estado, ou seja, aceitação da determinação individual.

Com o constitucionalismo liberal o cidadão passa a ser juridicamente livre para se expressar, locomover – daí o propalado direito de ir e vir –, e buscar recursos econômicos como lhe aprouver. Em essência podemos dizer que o constitucionalismo liberal, em seu momento inicial, busca segurança nas relações jurídicas e a proteção do indivíduo contra o Estado, algo que se pensou possível pela vivência do liberalismo, enfatizando que as Leis de Mercado, tal como pretensou Adam Smith, fossem as bases de todos os relacionamentos sociais.

O liberalismo pretendido mostrou não ser tão eficaz como anunciado pelos teóricos. Em um contexto onde o melhor para o indivíduo era o que atendia a seus interesses, tudo bem, foi efetivo. Atendeu bem a uma realidade onde o comportamento categórico autônomo era o suficiente, mas mostra-se incompatível com as idéias de sociabilidade que a realidade pós-moderna nos tem apresentado, onde o melhor para cada um o será se não contrariar ao mesmo tempo os interesses da coletividade.

Em um contexto de afirmação de prerrogativas pós-materiais, em que o interesse de cada um deve ser visto sob a ótica coletiva, bem a John Nash [26], onde o melhor pra mim o será se não contrariar os interesses do grupo, o liberalismo burguês do século XVIII tem de ceder lugar a um novo regime: o da função social.

2.1 FUNCÃO SOCIAL

No final do século XIX os distúrbios sociais ganharam notoriedade: a recíproca exploração de semelhantes, homem pelo homem, e a questão da propriedade passam por questionamentos. Assim, o caráter absolutista deferido à propriedade, calcado no individualismo, começa a ser revisto.

É no contexto tracejado que surge a idéia de condicionar o Direito de Propriedade à noção de bem comum [27]. Surgem assim os direitos humanos de 2ª geração, alinhados ao Direito Social, pelos quais se impõe à propriedade atender a uma função social.

Conforme anúncio de Isabel Vaz [28] o capital não é sujeito de Direito, não tem personalidade. Portanto não se lhe pode impor "A" ou "B", já que este não tem como cumprir funções. Estas, na verdade, devem ser atendidas por quem o detém.

Nesse contexto surge a idéia de limitação ao Direito de Propriedade, bem explicitada pelo professor José Gláucio Veiga, entendimento que acessamos através da leitura de José Barroso Filho em artigo publicado em mídia eletrônica, onde se lê que:

"a grande contradição dialética das Constituições na área das propriedades está em resolver, por adjetivos o que pede solução através de substantivos. (...) Na abóbada constitucional a chave que sustenta esta cúpula é a propriedade privada que dia a dia torna-se menos individual e mais social, menos privada e mais associativa." [29] (grifou-se)

Com o percebimento constitucional da transformação do caráter da propriedade, institucionaliza-se a proposição pós-material já delineada: o individual passe a se curvar ao coletivo.

No início do século XX o entendimento de que a propriedade deve atender a uma função social cria corpo, espalhando-se pelos textos magnos, caso da Constituição do México de 1917 e da Constituição de Weimar de 1919, tratadas nos próximos itens desse trabalho monográfico.

O conceito de função social da propriedade, ainda que depreendido de muitos textos constitucionais, ao longo dos anos, acabou sendo pouco profícuo. Diz-se isso porque sua força normativa, mesmo que negativa, não implicava em mudança na ordem jurídica. Teve-se que, por ser princípio, era incerto!

Nada obstante é preciso consignar que os conceitos inseridos na Constituição através dos princípios são detentores de máxima cogência, mesmo que não possam ser subsumidos silogisticamente no caso concreto, ponto em que se diferem das regras. Apresentam ainda o diferencial de se flexionarem. Mais, através dos princípios – postulados do sistema enquanto imagem unitária –, tem o legislador ordinário as bases para sua atuação.

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Aponta Paulo Bonavides [30] que o caminho percorrido pelos princípios até que se lhes reconhecesse força normativa e cogente foi difícil. Todavia, não existe mais existe espaço para que se os tenha como não normativos.

A idéia de principio derivaria da linguagem geométrica, designando verdades primeiras. Fornecem os rumos ao ordenamento jurídico, sendo instrumentos de coesão e solidificação do sistema. Consoante lição de Alexy, consignada na obra de Walter Rothenburg [31], são tipos de norma que expressam valores fundamentais.

Sendo, pois, função social um principio, impõe-se que não mais se possa pensar a propriedade desassociada deste. Foi assim alçado no ordenamento brasileiro à condição de cláusula pétrea, inscrito no art. 5º, XXIII, onde se impõe que "a propriedade atenderá a sua função social".

Ainda que se diga [32] ser a norma – enquanto gênero – dependente, em princípio [33], da edição de norma – aqui espécie; regra – regulamentadora, a função social, no mínimo, funciona como liame hipotético à liberdade individual.

Desde que compreendido o Direito de Propriedade enquanto subjetivo – incluído na lógica poder/dever – não conspurcamos incompatibilidade deste com a idéia de função social, ainda que esta abarque conceitos limitadores. Incompatibilidade haveria se a noção de propriedade adotada em nosso ordenamento fosse sistematizada enquanto direito potestativo, ou seja, via de mão única; a via do poder sem o correlato dever.

Com o advento de leis definidoras da função social da propriedade – como o Estatuto da Cidade, lei especial a consagrar um micro sistema chamado direito social, envolvendo de um lado o Direito público e do outro o Direito privado, predominando aquele, mas com a preocupação de estabelecer entre eles relação harmônica – encontra-se o Poder Público na situação de impor [34] uma atuação positiva ao proprietário, sob pena de aplicar as penalidades previstas.

As possíveis penas, logicamente, devem conduzir à extinção do uso nocivo ou do não uso, sem precisar se valer, por exemplo, da expropriação, tratada no 3º capítulo deste trabalho. Não são as penas, por óbvio, objetivos a se perseguir, mas meios de que se pode valer o Poder Público para que o comando constitucional da função social não seja relegado ao plano da utopia.

Mais uma vez nos socorrendo do magistério de Isabel Vaz [35] temos que, na identificação jurídica da incidência do princípio da função social da propriedade, é preciso se entender que o direito subjetivo do proprietário não pode ser considerado abolido porque tem de atender a uma finalidade, eis que a propriedade é dinâmica. No caso das empresas, ainda que essa função imponha compromissos e deveres aos controladores, não lhe retira a qualidade de titular de direitos subjetivos sobre os lucros/dividendos decorrentes da atividade empresarial.

Inferimos assim que a propriedade não é, em si, função social. Na verdade, é através desta que se exerce tal função. Consoante Celso Bastos, "nada mais é do que o conjunto de normas da Constituição que visa, por vezes até com medidas de grande gravidade jurídica, a recolocar a propriedade na sua trilha normal" [36], que pensamos ser a promoção do bem comum.

O princípio da função social tem como objetivo conceder legitimidade jurídica à propriedade privada, tornando-a associativa e construtiva [37]. Resguarda-se [38] com este os fundamentos e diretrizes fundamentais expostos nos artigos 1º e 3º da Carta Magna, bem como os demais fundamentos e diretrizes constitucionais relacionados com a matéria.

2.1.1 A Doutrina Social da Igreja

Estudar os desdobramentos da função social da propriedade impõe que analisemos os variados ramos da sociedade, inclusive religioso quando este aponta no sentido social. Nesse linha de raciocínio necessário se mostra o entendimento das encíclicas papais, com as quais a Igreja repensa [39] seu papel social. Através destas se volta para questões ligadas ao bem-estar da comunidade global, por isso a relevância das mesmas.

A primeira encíclica surgida foi a Rerum Novarumcunhada pelo Papa Leão XIII e publicada em 15 de maio de 1891 – com a qual a Igreja externa efetivamente sua preocupação com questões além das espirituais.

Com a encíclica em exame, propugna a Igreja que o Estado deve garantir os direitos dos operários, aventando a criação de sindicatos para reivindicar a realização de seus legítimos interesses. Responsabiliza o capitalismo pela questão social, propondo em contrapartida uma política social que, pela dimensão alcançada, acabou inspirando toda política social e trabalhista contemporânea.

Em 15 de maio de 1931, por ocasião da comemoração dos 40 anos da encíclica Rerum Novarum, o Papa Pio XI promulga a encíclica Quadragesimo Anno, com a qual procura adequar os anúncios da primeira encíclica à nova realidade. Com essa propõe um sistema denominado corporativismo cristão, tendo por base a preocupação de se preservar a inalienável Dignidade da Pessoa Humana, preterida no contexto então vivido.

Em 1941, no que seria a comemoração do cinqüentenário da Rerum Novarum, a realidade mundial era a Segunda Guerra. Ainda assim, em 1º de junho daquele ano, o Papa Pio XII, sucessor de Pio XI, proferiu uma radio-mensagem, cujo foco foi o "destino universal dos bens" [40], através do qual falou dos princípios da doutrina social da Igreja, que deveriam mobilizar os católicos nos esforços de reconstrução de uma nova ordem social a ser empreendida depois da tormenta da guerra.

Em 15 de maio de 1961 o Papa João XXIII publica a encíclica Mater et Magistra, também focada no social. São examinadas, pois, as dimensões que assumira o social desde Leão XIII, apontando que este não se reduzia à disputa de classes pela apropriação dos meios de produção. Verdadeiramente, o que se vivenciaria seria a disputa pelos recursos do planeta entre os povos desenvolvidos e subdesenvolvidos; a imensa multidão dos que vivem em condições de subdesenvolvimento.

Em 26 de março de 1967 o Papa Paulo VI traz ao mundo a encíclica Populorum Progressio, adotando definitivamente a temática do desenvolvimento na reflexão social da Igreja. Consigna a angustiante preocupação institucional da Igreja para com o abismo social entre os povos desenvolvidos e subdesenvolvidos, dizendo ser impossível a consolidação da paz nesse cenário.

A Igreja formaliza sua preocupação com a questão do desenvolvimento, passando a ser este o novo nome da paz. Não o desenvolvimento na mera perspectiva econômica, mas sim aquele que permita o desenvolvimento integral do homem; de todos os homens.

Em 1971, com a Carta Apostólica do Cardeal Secretário de Estado, comemorando os 80 anos da primeira encíclica, é editada a Octogesima Adveniens. Com esta a Igreja renuncia a qualquer pretensão de propor um sistema alternativo, cotejando ser missão dos leigos, comprometidos com a política, construir os modelos adequados às diversidades nacionais.

Em 14 de setembro de 1981 edita-se a encíclica Laborem Exercens, pela qual João Paulo II aponta ser o trabalho a chave essencial de toda a questão social.

A proposição de João Paulo veio para contrapor o que até então se asseverou, eis que até tal momento toda a realidade social abordada pela Igreja era centrada na questão da propriedade. Propôs assim, no item 14 do sistema examinado, que "a propriedade dos meios de produção – tanto a propriedade privada como a pública ou coletiva – só é legítima na medida em que serve ao trabalho."

Outras encíclicas foram promulgadas, como a Sollicitudo Rei Socialis, em 1987, e a Centesimus Annus, em 1991, mas para o tema objeto da presente monografia não dizem pertinência direta. As demais encíclicas colacionadas o foram porque, de uma forma ou de outra, acabaram influenciando a realidade social determinantemente. Para o tema da função social da propriedade inclusive, já que, mesmo quando focadas no trabalho, asseguram que a propriedade deve atender a um fim.

Voltando à primeira Encíclica, a Rerum Novarum, destacamos que essa muito ressoou no debate sobre a Ação Social da Igreja. Tanto que os efeitos de si decorrentes foram comparados aos experimentados com a edição do Manifesto Comunista e O Capital, obras de Marx.

Os apontamentos aqui feitos sobre a Doutrina Social da Igreja são parte integrante do anexo desse trabalho monográfico. Optou-se, aqui, por um texto mais enxuto e não referenciado, já que o tema, embora interesse ao trabalho, é transversal. Daí os créditos à fonte foram feitos junto do anexo.

2.1.2 A Constituição Mexicana de 1917

O Professor Trueva Urbina – da Faculdade de Direito da Universidade Autônoma do México –, conforme anúncio de Raul Horta, qualifica a Constituição de seu País de "La primera Constitución político-social del Mundo." [41] Através desta o mundo começa a trilhar os caminhos do constitucionalismo social, graças à ação dos intelectuais, camponeses e outros trabalhadores que haviam lutado na Revolução Mexicana, iniciada em 1910.

Faticamente, ainda na segunda década do século passado, o México regula amplamente o direito de propriedade, submetendo-a ao regime mais conveniente do interesse público.

O que a Constituição Mexicana marca é a "mudança paradigmática" [42] para o estado social-liberal, em oposição ao estado liberal clássico. O liberalismo assume novas nuanças, nas quais o capitalismo passa a ter uma preocupação social para preservar uma importante parcela do núcleo do pensamento liberal.

Estabelece-se com a Constituição em comento o princípio da igualdade substancial, lançando, de modo geral, as bases para a construção do Estado Social de direito moderno. Destaca-se que, no campo da propriedade privada, houve avanço sob a perspectiva da proteção da Pessoa Humana, distinguindo em seu artigo 27 a propriedade originária – pertencente à nação – e a propriedade derivada, que pode ser atribuída aos particulares. Com isto aboliu-se o caráter absoluto e "sagrado" da propriedade privada, submetendo, pois, seu uso ao interesse de todo o povo.

2.1.3 A Constituição de Weimar

Antes de tudo é preciso se registrar que com a Constituição em exame, datada de 1919, realiza-se o compromisso de harmonização dos direitos individuais inscritos nas primeiras Cartas com os direitos decorrentes do constitucionalismo social, surgido na proposição de que a felicidade dos homens não é alcançada apenas contra o Estado – no sentido de esse ser mero observador da realidade, regulamentada pelas Leis de Mercado –, mas, sobretudo, em razão da atuação estatal. É, pois, o pontapé inicial do erigimento dos Direitos Humanos de segunda geração.

Os novos direitos fundamentais passam a ser os direitos econômicos e sociais, consagrados pela Constituição de Weimar, com a qual se realiza efetivamente, ao menos na esfera jurídica, o compromisso do individual com o social. Assim dispõe seu artigo 151 que: "a vida econômica deve ser organizada conforme os princípios de Justiça, objetivando garantir a todos uma existência digna." [43]

Com isso o Estado agora se volta para o social, ampliando, pois, o conteúdo dos Direitos Fundamentais. Além dos Individuais e Políticos, afirmados na gênese das democracias liberais, consagrados restam os Direitos Sociais nas Constituições Modernas, destacando ser as Constituições ora estudadas as primeiras a enfrentar o tema.

Nesse sentir cumpre trazer à colação o entendimento esposado por Boris Mirkine-Guetzevitch, que muito claramente escreve sobre o tema em estudo. Verbis:

"É em matéria de Direitos do homem que essas Constituições de após 1918 são particularmente inovadoras. Sua principal contribuição é o alargamento do catálogo clássico: novos direitos sociais são reconhecidos, aparecem novas obrigações positivas do Estado. (...) Os textos que daí decorrem, começam a ocupar-se menos do homem abstrato do que do cidadão social." [44] (grifou-se)

Do ponto de vista cronológico a Constituição de Weimar é a primeira no continente europeu a reservar lugar para os Direitos Sociais, sendo dessa forma paradigma para uma série de novas Cartas. É a primeira Constituição Social européia, verdadeira matriz do novo constitucionalismo social. Ainda que posterior à mexicana, conforme anúncio de Ana Maria Correa, é a constituição que veio "marcando o início do Estado Social, preocupado com os problemas sociais." [45]

2.2 A CONSTRUÇÃO LEGISLATIVA DO INSTITUTO NO BRASIL

As primeiras Constituições Brasileiras – de 1824 e 1891, do Império e da República, respectivamente –, são tipicamente liberais, ainda que segunda tenha surgido em um período de transição do constitucionalismo, que, entre nós, culminou com a Constituição de 1934, abarcadora do chamado constitucionalismo social.

A idéia da função social da propriedade passou a fazer parte da realidade legislativa brasileira com o advento da carta magna de 1934, onde, no artigo 113 [46], se estabeleceu que a utilização da propriedade não poderia ir de encontro ao interesse social ou coletivo. Embora não se tenha feito expressa alusão ao instituto, sob a ótica teleológica, este é percebido de imediato, já que se garantiu o direito de propriedade ressaltando dever seu exercício se coadunar com o interesse social ou coletivo.

A par do consignado, essa Carta representou eminente influência do social fascismo no Brasil. Por essa razão abarca elementos como o ultranacionalismo, a liberdade, o socialismo, o comunismo e a democracia, sendo, portanto, autoritária.

Fora do texto constitucional parece-nos merecer destaque a Lei de Introdução ao Código Civil de 1942, que em seu art. 5º determina que a lei seja interpretada segundo seus "fins sociais" e "as exigências do bem comum".

Voltando ao Texto Magno, em 1946 temos o retorno do chamado Estado Social Democrático, logo representativo, decorrente da promulgação de uma nova Constituição, na qual podem ser destacados traços que remetem à idéia de função social, como ao se criar a modalidade de desapropriação por interesse social [47].

Este Estado, todavia, é interrompido pelos movimentos autoritários que culminaram com o golpe militar em 1964, do qual decorreu a Constituição de 1967, tão emendada em 1969 que a emenda chegou às vias de caracterizar um "novo soneto".

Ainda que se possa aventar a existência da função social nas cartas de 1934 e 46, verdade é que a função social, enquanto instituto autônomo, desatrelado do instituto da desapropriação, só foi mencionada expressamente pela Constituição de 1967, da qual nos parece producente colacionar a dicção do artigo 157, III, onde lemos que "a ordem econômica tem por fim realizar a justiça social, com base nos seguintes princípios: III - função social da propriedade." Tal como o artigo 170 da carta em vigor, a de 1967 faz expressa alusão ao fato de que a propriedade deve estar ligada à idéia de função social, em oposição ao querido pelos liberais revolucionários e os romanos em certas passagens.

O caráter autoritário foi mantido no Brasil até o erigimento da Carta de 1988, tipicamente social, pela qual se introduziu um novo conceito de Estado Democrático de Direito [48], com o qual se busca recuperação econômica dentro dos ditames, que se deve ter por imperativos, da justiça social.

Como se apontou na introdução, indubitavelmente, é o interesse social que empresta as roupas da legitimidade a qualquer limitação na esfera privada, ainda mais em se considerando que esta foi alçada à condição de cláusula pétrea.

A petrificação desse instituto se nos afigura muito salutar, pois o torna imutável ao sabor dos ventos que atormentam nosso legislativo e seu – cada vez mais insano, e agora desprovido de qualquer censura – poder reformador, tormenta que permitiu a criação de mais de 40 emendas em nossa ainda jovem carta. No período que sucedeu ao primeiro pleito de Fernando Henrique na presidência foram quase 4 Emendas Constitucionais por ano!

Destacamos por fim nesse tópico que é a Constituição de 1988 a definidora do conteúdo da função social da propriedade, tanto em relação à propriedade rural [49] quanto à urbana [50]. Isso talvez justifique equívocos no sentido de se dizer que a função social da propriedade imóvel privada decorra desta carta. Evidentemente tais equívocos não merecem prosperar, já que o texto militar de 1967 é expresso ao se referir à função social. Ainda assim é de se destacar que os contornos hoje em dia alcançados decorram da Carta vigente.

2.3 FUNÇÃO SOCIAL E A PARTIÇÃO DOS PODERES

"O problema da função social da propriedade virou moda, mas a moda ainda não pegou, em face dos inúmeros interesses que ela contraria." [51] No dito popular a corda arrebenta sempre para o lado mais fraco; "o pior acontece, como sempre, àqueles que não têm escolha" [52]. Assim a função social, quando vai de encontro ao interesses das classes mais abastadas, que fatalmente é regra, não sai do papel.

Em sentido convergente a estas proposições Laércio Becker chega a apontar que: "como é público e notório, a função social da propriedade urbana, porque prevista na Constituição, recebeu inúmeros ensaios e elogios da doutrina. Entretanto, não passam de retórica." [53] Parece-nos ter dito isto tendo em vista a tendência positivista em que, havendo um direito individual expressamente previsto, pugna o aplicador do direito pela sua prevalência, sem conspurcar as possibilidades oriundas da ponderação de interesses.

Entendemos válida a proposição do professor Laércio no contexto de primazia de regras, mas, partindo dos postulados constitucionais atuais, onde a função social é imperativa, faz-se necessário, por vezes, preterirmos um Direito Individual em razão de um Direito Social, no exato sentir da democracia; o interesse da maioria deve sobrevaler.

Nada obstante nosso Judiciário não tem sido assim tão receptivo à idéia da função social, sobretudo quando essa vai de encontro a interesses de proprietários influentes [54]. Nesse caso, assevera o professor Albuquerque Rocha, o Judiciário acaba por ser verdadeira "instância de aniquilamento das conquistas alcançadas pelo povo no campo do Poder Legislativo, vale dizer, no nível das normas gerais e abstratas, por sua não aplicação ou por sua interpretação restritiva." [55] A jurisprudência [56], mediante interpretação restritiva, torna letra morta [57] as proposições elaboradas por nosso legislativo.

Na linha de raciocínio do que se consignou até aqui temos o julgado a seguir, onde fica claro o prendimento do Judiciário às regras positivistas consagradoras da propriedade, bem ao sabor dos ventos que sopraram no 14 de julho de 1789. Verbis:

"Área ocupada há longo tempo. Favela. Nada obstante o respeito que a tese da destinação social da ocupação do imóvel urbano para fins residenciais, empolgante, por sem dúvida, possa merecer, sua aplicação é inaceitável em face do Direito vigente. Aplicá-la ao arrepio da lei importaria, em verdade, transposição para o campo do Direito Civil da figura do uti possidetis do Direito Internacional, via do qual se reconheceria ao posseiro ou mero ocupante a garantia da posse por decorrência de suposta soberania oriunda exclusivamente do fato da ocupação. A questão, se é grave no aspecto social e está a merecer atenção e solução, em caráter urgente, pelo Poder competente, não pode ser decidida senão segundo os critérios que disciplinam a posse, seus efeitos e sua proteção." [58] (grifou-se)

Resta absolutamente clara a proposição jurisprudencial no sentido de que seria temerário dar-se ênfase ao fato da posse, ainda que do ponto de vista legislativo não subsistam dúvidas sobre a possibilidade do usucapião – mal, e ao mesmo bem falado, eis que rico em significância, "usucampeão".

Não se trata, por certo, de proposição em defesa da ignorância, mas no usucapião, o que ocorre é a sobrevalência do uso – fato da posse – sobre as formalidades do registro atinente ao domínio. Nesse caso, sagra-se campeão sobre o registro o uso, daí ser significante a locução "usucampeão".

Parece-nos que, no momento em que o Judiciário se contrapõe ao ordenamento jurídico, se omitindo da análise ponderada do confronto dos Direitos Individuais e Sociais, acaba subvertendo uma ordem jurídica reclamada pela população. No caso concreto tal prática nada mais é do que dar importância aos dogmas napoleônicos [59] da propriedade.

Pelas questões suscitadas, houve quem asseverasse ser a norma constitucional a aduzir a idéia de função social norma programática, entendimento esposado, dentre outros, pelo mestre Barroso [60].

Em sentido oposto, Ana Prata recusa-se aceitar tal concepção generalista, já que isso importaria ser a função social, sob essa proposição, "cláusula geral sem conteúdo normativo e preciso" [61]. Seria reduzir a Constituição a "papel pintado com tinta" [62], consoante Eros Grau, o que nos afigura por demais desastroso, já que enunciaria um direito que ficaria a mercê [63] das vontades políticas. Nas palavras de Konder Comparato um mero "manual doutrinário" [64] ou "repositório de máximas ou conselhos" [65].

Exatamente pelo exposto, entende José Afonso da Silva que "a norma que contém o princípio da função social da propriedade incide imediatamente, é de aplicabilidade imediata, como o são todos os princípios constitucionais" [66], o que entendemos mais razoável, eis que alinhado à teleologia do instituto.

Não se pretende aqui dizer que o Direito Social a resguardar a posse deve ser sempre o preferido, preterindo o Direito Individual que garante a propriedade. Há casos em que, nada mais justo do que se indenizar quem possui o domínio, sobretudo nos casos em que a privação deste não ocorre pela simples inércia do proprietário, mas sim por imposição dos posseiros. Neste caso, consoante o entendimento jurisprudencial a seguir, afigura-se plausível a indenização do proprietário. Vejamos:

"Ação reivindicatória. Lotes de terreno transformados em favela dotada de equipamentos urbanos. função social da propriedade. Direito de indenização dos proprietários. Lotes de terreno urbanos tragados por uma favela deixam de existir e não podem ser recuperados, fazendo, assim, desaparecer o direito de reivindicá-los. O abandono dos lotes urbanos caracteriza uso anti-social da propriedade, afastado que se apresenta do princípio constitucional da função social da propriedade. Permanece, todavia, o direito dos proprietários de pleitear indenização contra quem de direito." [67]

A ponderação no sentido de que a primazia de um princípio em um momento não induz primazia constate, decorre da consideração que a estes não se observa o que é comum às regras; o "tudo ou nada" decantado por Dworkin [68] em que a aplicação de uma regra leva ao preterimento de outra, eis que não apresentam o condão da complementaridade. Valendo-se dos critérios Bobbinianos – especialidade, hierarquia ou temporalidade – uma regra se sobrepõe definitivamente a outra.

Entre os princípios, todavia, pode sempre haver ponderação e a utilização de um não implica em se levar o outro para o limbo jurídico. O princípio preterido em um momento pode alçar à condição de mais importante em outro, o que se costuma ver em países como os EUA e seus standarts, hard cases, onde a principiologia aponta pela valorização de um bem jurídico de forma diferenciada ao longo da historia.

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Sobre o autor
Alessandro Marques de Siqueira

Mestrando em Direito Constitucional pela UNESA. Professor da Escola de Administração Judiciária do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Professor convidado da Pós-Graduação na Universidade Cândido Mendes em parceria com a Escola Superior de Advocacia da OAB/RJ na cidade de Petrópolis. Associado ao CONPEDI - Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito. Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SIQUEIRA, Alessandro Marques. Função social da propriedade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2076, 8 mar. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12400. Acesso em: 19 abr. 2024.

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