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A desconsideração da personalidade jurídica na execução trabalhista frente à jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho

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4 A DESCONSIDERAÇÃO E O TST

A título de especificação metodológica, destaca-se que tudo que será exposto a partir de agora a respeito da posição do Colendo Tribunal Superior do Trabalho (TST), quanto à aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica na execução trabalhista, leva em consideração pesquisa jurisprudencial feita no sítio eletrônico deste tribunal (www.tst.gov.br). Na ferramenta de pesquisa textual do TST digitou-se como parâmetro: "desconsideração pessoa jurídica". Após, a ferramenta apontou para 490 (quatrocentos e noventa) acórdãos "inteiro teor" sobre o thema. Destes, fez-se uso apenas dos que foram publicados no Diário de Justiça de 30 de outubro de 2008, um total de 08 acórdãos – sendo 7 (sete) proferidos em sede de Agravo de Instrumento em Recurso de Revista (AIRR números: 71254/2002-005-09-40, da 7ª Turma; 1750/2005-001-17-40 e 2024/2005-071-02-40, da 6ª Turma; 287/2007-314-02-40, da 4ª Turma; 305/2006-016-08-40, 160/2005-026-04-40 da 5ª Turma; 1938/2002-122-06-40, da 1ª Turma) e 1 (um) no julgamento de Embargo de Declaração em Agravo de Instrumento em Recurso de Revista (ED-A-AIRR - 1331/1999-801-04-40, 3ª Turma).

De início, de uma análise geral das decisões utilizadas na pesquisa extraem-se algumas características: todas foram tomadas por unanimidade; em 6 das decisões em sede de AIRR negou-se conhecimento ao Recurso de Revista com base nas disposições do § 2º do art. 896 da CLT e da Súmula 266 do TST, pois não vislumbraram ofensa direta a dispositivos constitucionais, e apenas em uma delas o Recurso de Revista não foi conhecido porque não preenchia os requisitos formais e de fundamentação necessários; o Embargo de Declaração também foi improvido pelos mesmos fundamentos dos AIRR.

De outra banda, o fato de não termos encontrado nenhuma decisão em sede direta de Recurso de Revista revela que indistintamente os Tribunais Regionais do Trabalho de todo o país negam seguimento ao Recurso de Revista interposto contra decisão que julga agravo de petição, quando a matéria versa sobre a desconsideração da personalidade jurídica, porquanto não vislumbrem ofensa direta a nenhum preceito constitucional. O TST vem confirmando as decisões dos TRTs, sem enfrentar, no entanto, diretamente a forma como vem se procedendo a desconsideração da pessoa jurídica na execução trabalhista, limitando-se a negar seguimento à Revista porque não haveria ofensa direta à norma constitucional.

Entretanto, no trecho dos votos dos relatores dos referidos julgados pôde-se perceber o padrão dos fundamentos utilizados pelos Tribunais Regionais do Trabalho – que são confirmados pelo TST – para julgarem improcedentes os pedidos de desbloqueio de contas e liberação de bens, bem como para afastar a ilegitimidade passiva requerida pelos sócios das empresas executadas, quando aplicada a "teoria da desconsideração" pelos juízes do trabalho durante a execução trabalhista.

O principal fundamento para se permitir indiscriminadamente o uso da desconsideração da pessoa jurídica na execução trabalhista, transmudando-a de medida de natureza excepcional para regra pacífica e inconteste, é o caráter alimentar da verba trabalhista contra a qual não poderia resistir qualquer tipo de organização societária. Abaixo se transcreve trechos de votos que condensariam todos os argumentos da Justiça Laboral para aplicar a "disregard of legal entity" os quais serão aqui analisados:

"O instituto da personalidade jurídica constitui-se em uma técnica de separação patrimonial dos bens da sociedade e dos bens particulares dos sócios que a compõem, autorizado pelo artigo 50 do Código Civil Brasileiro. Entretanto, tal princípio autoriza a execução de bens do sócio da empresa demandada, mesmo que esse não conste no título executivo judicial, quando verificado o seu mau uso em prejuízo de terceiros e fraude à lei [A]. Parafraseando Fábio Ulhoa Coelho, a personalidade jurídica não poderá servir para criação de situações injustas. Ademais, atualmente o próprio ordenamento jurídico prevê a desconsideração da personalidade jurídica. Nesse sentido, o artigo 28, parágrafo 5º, do Código de Defesa do Consumidor, já determinava em 1990 que: poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores. Tal situação é análoga ao Processo do Trabalho, diante do seu caráter tutelar e da natureza alimentar dos créditos do trabalhador [B]. [...] Diante de tais situações, o princípio da autonomia da pessoa jurídica, que não é absoluto, relativiza-se e pode ser derrogado, tanto para imputar responsabilidade da sociedade ao sócio, quanto para conferir à sociedade qualidade humana do sócio. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica possibilita, pois, a imputação exclusiva do responsável pelo mau uso da pessoa jurídica. Assim, com base nessa elaboração recente da dogmática jurídica, o juiz pode e deve ignorar a existência da pessoa jurídica, suspendendo episodicamente a eficácia do seu ato constitutivo, sempre que houver a sua utilização como instrumento para a realização de fraudes ou de abusos de direito. Pode então, pela teoria da desconsideração da personalidade jurídica, recepcionada no artigo 50 do atual Código Civil, o credor trabalhista buscar a satisfação de seu crédito além do patrimônio da sociedade empregadora, com o redirecionamento da execução contra os bens dos sócios, ou ex-sócios, sempre que, por meio do uso indevido de uma sociedade, consistente em fraude à lei ou abuso de direito, ocorrer a lesão do direito de terceiros, como se verifica no caso dos autos, em que o simples descumprimento, por parte da reclamada, das obrigações como empregadora, já caracteriza o abuso de direito [C].[...]Conclui-se, portanto, que deve ser permitida a penhora sobre o patrimônio dos sócios e ex-sócio, sob pena de restar frustrada a satisfação do crédito de natureza alimentar. Aplica-se subsidiariamente o artigo 4º, inciso V e § 3º, da Lei 6.830/80, segundo o qual a execução pode ser dirigida contra os responsáveis pelas pessoas jurídicas, tal como ocorre com o sócio em relação à sociedade [D]." (AIRR - 160/2005-026-04-40, 5ª Turma, sublinhamos)

[...]

Regra geral, no Direito Civil, em se tratando de sociedades anônimas, a prática de atos pelo Administrador em desconformidade com o estatuto social, quer seja por dolo ou culpa, implicará a necessidade de indenização à sociedade, aos sócios e a terceiros pelo prejuízo causado (arts. 1.016 e 1013, § 2º, do Código Civil). Portanto, os sócios gestores e os administradores das empresas são responsáveis subsidiária e ilimitadamente pelos atos ilícitos praticados, de má gestão ou contrários ao previsto no contrato social ou estatuto, consoante estabelecem os arts. 990, 1.009, 1.016, 1.017 e 1.091, todos do Código Civil. [...] o descaso da sociedade para com o seu passivo trabalhista demonstra a sua má gestão, o que autoriza a sua responsabilização, por caracterizada a culpa ao longo do contrato de trabalho [E]. Portanto, correta a determinação de penhora em dinheiro, eis que observada a ordem de gradação legal prevista no art. 655 do CPC, permitindo maior celeridade e liquidez ao processo de execução e, por expressa autorização do art. 592 do CPC, é possível a execução direta dos bens dos sócios [F].

Da mesma forma, nas sociedades por cotas de responsabilidade limitada,cada cotista ou sócio entra com uma parcela do capital social (art. 1.055 do Código Civil), ficando responsável, diretamente, pela integralização da cota que subscreveu e, indiretamente ou subsidiariamente, pela integralização das cotas subscritas por todos os outros sócios (art. 1.052 do Código Civil). Uma vez integralizadas as cotas de todos os sócios, nenhum deles pode mais ser chamado para responder com os seus bens particulares pelas dívidas da sociedade. A responsabilidade, portanto, se exaure no limite do valor do capital social.

Todavia, em sede do Direito do Trabalho, esta regra não é aplicável, tendo em conta a sobreposição da teoria da desconsideração da

personalidade jurídica (disregard of legal entity) para que o empregado possa, verificando a insuficiência do patrimônio societário, quer seja por fraude à legislação trabalhista ou pela má-administração do empreendimento, excutir os bens dos sócios individualmente considerados, de forma solidária e ilimitadamente, até o pagamento integral dos créditos dos empregados [G]. Isso porque o crédito trabalhista, pela sua natureza alimentar, mereceu por parte da doutrina e da jurisprudência tratamento especial.

[...]

Desnecessária, ainda, a participação do sócio-executado na fase cognitiva processual, porquanto a sociedade em si é mera construção jurídica que se materializa na figura dos sócios. Portanto, se a Reclamada foi regularmente citada na fase de conhecimento, os sócios foram plenamente cientificados da existência de demanda em face da pessoa jurídica, que é mera ficção legal [H]. (AIRR - 2024/2005-071-02-40, 6ª Turma)

Para fins de organização dividiremos a análise em dois grupos: I – composto pelos fundamentos de ordem material para aplicação da desconsideração, contidos em "A, "B", "C", "E" e "G"; II – no qual se discute os aspectos processuais da aplicação da disregard, previstos em "D", "F" e "H".

4.1 Dos aspectos materiais

A principal premissa utilizada pela Justiça do Trabalho para concluir pela desconsideração da personalidade jurídica é a de que contra a natureza alimentar do crédito trabalhista não poderia resistir qualquer autonomia patrimonial das sociedades. Realmente é fácil compreender que na escala de valores a personificação não pode resistir frente a uma verba alimentar a qual é questão de sobrevivência para o indivíduo [22]. Contudo, olvida-se a Justiça Laboral que a disregard of legal entity é medida excepcional a qual só deve ser usada quando todas as possibilidades estiverem esgotadas sob pena de lesão de direitos fundamentais dos sócios e de terceiros [23].

Com efeito, o crédito trabalhista goza de grande proteção jurídica: tem preferência sobre todos os outros (art. 83, I da Lei 11.101/05 (lei de falências), art. 186 do Código Tributário Nacional e art. 449 e §1º da CLT); se a empresa está "quebrada", terá prioridade de tramitação para ser executado no Juízo da Falência (art. 768 da CLT); goza de natureza impenhorável (art. 649 do CPC). Também é verdade que os sócios possuem garantias, e.g.: de não verem seus bens excutidos antes dos da sociedade (art. 596) e sem o devido processo legal (art. 5º, LIV); no caso das sociedades de responsabilidade limitada, gozam de autonomia patrimonial (arts. 1.045 segunda parte, 1.052, 1.088, 1091, 1095, § 2º todos do Código Civil e art. 1º da Lei 6.004/76); e só excepcionalmente terão que arcar com o seu patrimônio pessoal por obrigações da pessoa jurídica (art. 50 do CC/02, por exemplo). De outra banda, ao se desconsiderar a pessoa jurídica para se atribuir a responsabilidade patrimonial ao sócio por um passivo trabalhista, sem investigar se existem outros credores (incluindo trabalhadores) daquela sociedade ou do sócio, pode-se estar preterindo o direito de terceiros igualmente interessados na execução dos bens dos sócios fraudadores, o que se pode enquadrar como preterição do juízo universal da falência, que é o competente para fazer a equânime divisão dos bens da sociedade falida e responsabilizar os sócios pessoalmente (art. 82 da Lei de Falências). Deste modo, somente depois de superar, justificadamente, esses "entraves" é que se pode fazer uso da "disregard doctine" que deve ter – insista-se – caráter excepcional.

Em outra pisada, o fundamento jurídico "A" destacado no retro transcrito "acórdão modelo" diz que a desconsideração da pessoa jurídica "autoriza a execução de bens do sócio da empresa demandada, mesmo que esse não conste no título executivo judicial, quando verificado o seu mau uso em prejuízo de terceiros e fraude à lei". Tal argumento está em plena consonância com a teoria da desconsideração da pessoa jurídica e reforça o seu caráter excepcional. Ou seja, deve-se primeiro buscar bens da sociedade para depois, uma vez comprovada a fraude e o uso abusivo da personalidade, partir para cima do patrimônio do(s) sócio(s) responsável(eis) pelo mau uso da pessoa jurídica.

Por seu turno, o item "B" sugere a aplicação analógica do §5º do art. 28 do CDC à execução trabalhista, porquanto, tanto lá quanto cá, tenha-se a hipossuficiência dos credores (consumidor e trabalhador) e ambas as legislações têm intuito protetivo. Considerando o exposto no item 3.3.1 supra, temos que não se pode utilizar a analogia para invocar a aplicação da teoria objetiva da desconsideração preconizada pelo CDC às relações de trabalho. Primeiro porque, de acordo com a corrente a qual nos filiamos, a Lei 8.078/90 é um microssistema que – pelo menos quanto à disregard doctine – só se aplica ao direito do consumidor, porquanto preveja uma particularidade em relação à regulamentação geral do instituto (art. 50 do CC/02), qual seja, o consumidor como credor. Segundo porque, como visto alhures, ainda que se considere aplicável o CDC à execução trabalhista, é mister seja feito com os requisitos mínimos exigidos pelo art. 50 do Código Civil – o qual exige o elemento subjetivo do comprovado "mau uso" da personalidade jurídica da sociedade – porquanto este seja lei mais nova e incompatível com o art. 28, §5º do CDC o qual teria sido, portanto, derrogado neste pormenor.

O argumento "C" também merece temperamentos quanto à sua aplicação. Por ele, o simples descumprimento, por parte da sociedade, das obrigações como empregadora, já caracterizaria o "abuso de direito". Este é entendido como "o exercício anormal do direito, sem motivo legítimo, sem justa causa, unicamente com o intuito de prejudicar a outrem", portanto "sempre se caracteriza pela evidência do dolo ou má fé" (SILVA, 1984, p. 16). Destarte, nem sempre o simples fato de atrasar salários se caracteriza como "abuso de direito", como sugere o item "C", pois é necessário o mau uso da personalidade jurídica com o intuito de lesar (prejudicar) o trabalhador ou se valer de sua mão-de-obra para lucrar sem custos. Ou seja, o "abuso de direito" referenciado no art. 50 do Código Civil não é o abuso do direito de outrem. "O abuso, na verdade, não é da personalidade jurídica, mas do direito à personificação, do direito de constituir um ente abstrato, com personalidade distinta" (PEIXOTO, 2003, p. 17). Assim, se o sócio não fez uso abusivo do direito à personificação não há que ser responsabilizado pelo descumprimento dos deveres pela empregadora (a sociedade) a qual goza de autonomia negocial e patrimonial própria. Infelizmente, empreendimentos malsucedidos ocorrem com freqüência.

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Duas observações calham serem feitas quanto ao item "E". A primeira é a de que realmente os sócios gestores e os administradores das sociedades anônimas são responsáveis pelos atos ilícitos praticados [24], de má gestão ou contrários ao previsto no contrato social ou estatuto, desde que ao menos culposamente [25]. Entretanto não é subsidiariamente, mas pessoalmente. Neste caso não se trataria da teoria da desconsideração da pessoa jurídica, mas sim da responsabilização por ato "ultra vires", conforme o exposto anteriormente. A segunda observação é a mesma feita no parágrafo anterior, a de que nem sempre o "descaso com o passivo trabalhista" implicará em má gestão, desde que o administrador da sociedade não viole qualquer dever imposto por lei (diligência, lealdade, informação) ou pelo estatuto ou, ainda, pelos órgãos sociais hierarquicamente superiores (diretoria, assembléia) [26]. E, ainda que se considere o "descaso com o passivo trabalhista" como violação de dever legal, é imprescindível que o administrador tenha agido ao menos culposamente (ver nota nº 11) levando a sociedade a não arcar com suas obrigações como empregadora.

É importante também aproveitar o ensejo para retomar a discussão de que nem sempre o simples fato do sócio de sociedade possuir ações com direito a voto dá ensejo a que, depois de desconsiderada a autonomia patrimonial, se possa fazer incidir os efeitos da execução sobre o seu patrimônio. Isso porque é possível alguém ser sócio de uma sociedade anônima aberta e não participar de suas deliberações e, muito menos ainda, de sua administração.

Basta que se imagine a seguinte situação, perfeitamente factível : eu sou acionista de uma companhia aberta, titular de ações preferenciais, tendo adquirido as minhas ações em bolsa de valores. Não sei sequer onde é a sede da empresa e nunca vi mais gordo o acionista controlador ou os administradores da Cia. Isto é corriqueiro no mercado de valores mobiliários.

De repente, porque eu tenho bens pessoais, porque eu poupei minha vida inteira e consegui a amealhar algum patrimônio, por dívida daquela companhia eu acabo tendo os meus bens sujeitos à constrição judicial. E sob o peso de ter os meus bens penhorados, me é imputado o ônus de ir a Juízo demonstrar que eu não abusei da personalidade daquela Cia.; que eu não a usei fraudulentamente. Ou seja, terei inclusive que fazer uma prova negativa. (PEIXOTO, 2003, p. 20)

Por fim, o maior absurdo de todos é o encontrado no item "G", segundo o qual a personalidade jurídica das sociedades limitada simplesmente não existe perante o crédito trabalhista. Ou seja, os sócios de uma Ltda., mesmo depois de integralizarem todo o capital social (art. 1.052 do CC), de transcorrido 5 (cinco) anos da data do registro da sociedade (art. 1055, §1º da Lei Civil) e ainda que não tenha havido qualquer deliberação infringente do contrato ou da lei que as regem (art. 1.080 do Código Civil), respondem solidária e ilimitadamente pelos passivos trabalhistas, independentemente de dolo ou culpa.

Relembra-se que restou justificado que o fato de o crédito trabalhista ter natureza alimentar não lhe reveste de caráter absoluto que faça a priori todos os outros interesses cederem em contraposição a ele – basta lembrar a exigência de que os créditos alimentares também se sujeitem ao regime de precatório (art. 100 da CF/88). De igual modo muitas vezes o "alimento" dos sócios de limitadas provém justamente de seu empreendimento. Assim, se depois de excutir todos os bens da sociedade, o julgador se voltar ilimitadamente contra o patrimônio do sócio – que entrou no empreendimento, e.g., porque não possuía os recursos necessários para empreender sozinho ou confiava na proteção jurídica dispensada ao seu patrimônio e de sua família – será tão injusto quanto deixar o trabalhador sem receber.

Diante do exposto, percebe-se que a aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica exige critérios que não podem ser esquecidos pelo só fato de estar em discussão o crédito trabalhista. Se existe uma ordem jurídico-constitucional, é para ela ser obedecida, sob pena de se instaurar um regime de exceção e de anarquia sob o comando do Judiciário, pois a função deste Poder é a de aplicar fundamentadamente as leis ao caso concreto e não de criá-las para beneficiar quem quer que seja.

4.2 Dos aspectos processuais

Quanto aos aspectos processuais, os itens "D", "F" e "H" indicam que: I – é autorizada a execução dos bens dos sócios diretamente pelos artigos 4º, inciso V e § 3º, da Lei 6.830/80 e 592, II, do CPC; II – que é desnecessária a citação dos sócios porque as pessoas jurídicas são mera ficção, assim uma vez citada regularmente a sociedade tem-se por citados todos os sócios.

A possibilidade prevista no art. 4º, V e §3º da Lei 6.830/80 no sentido de ser possível a execução dos bens dos responsáveis, por dívidas tributárias ou não, de pessoas jurídicas representa a consubstanciação processual da teoria "ultra vires", pela qual se pode executar diretamente (lembre-se que a execução fiscal não tem uma fase de conhecimento para constituição de um título executivo) os bens do sócio que agiu ilicitamente usando o nome da sociedade. Tal dispositivo está intimamente ligado ao Capítulo V, do Livro Segundo, do Código Tributário Nacional, o qual trata da "responsabilidade tributária" e logo no seu art. 128 [27]. O responsável tributário é aquele que "sem revestir a condição de contribuinte, sua obrigação decorra de disposição expressa de lei" (art. 121, II). Assim, a lei pode atribuir a terceiros a responsabilidade tributária para cumprir com determinada obrigação, mas isto tem que ser expressamente (tipicidade), pelo que não se pode extrair daí o fundamento para a responsabilização do sócio após feita a desconsideração em sede de execução trabalhista.

O CPC por seu turno prevê que "ficam sujeitos à execução, nos termos da lei, os bens do sócio". Segundo Humberto Theodoro Júnior (2007, p. 200) o art. 592 da lei adjetiva civil traz hipóteses de "responsabilidade executória secundária", pela qual terceiros [28], sem se revestirem da condição de devedores da obrigação principal, tornam-se sujeitos aos efeitos do processo. "Isto é, seus bens particulares passam a responder pela execução, muito embora inexista assunção da dívida constante do título executivo". Bem se vê que é justamente o caso da desconsideração da pessoa jurídica. Eis, pois, o fundamento processual para estender os efeitos da execução aos bens particulares do sócio.

Entretanto essa extensão não se opera diretamente pelo simples fato de alguém ser sócio de uma pessoa jurídica. A "responsabilidade sem dívida" prevista no art. 592, II, do CPC é aquela em que a lei (geralmente o Código Civil) atribui aos sócios, subsidiariamente, responsabilidade solidária por dívidas das sociedades (as de pessoas, é claro) ou, ainda, quando se trata de administradores faltosos (que infrinjam deveres legais e/ou estatutários) em sociedades de capital. Fora destes casos é preciso que haja um procedimento (devido processo legal) para se comprovar a culpa do sócio faltoso, principalmente quando se tratar da aplicação da desconsideração da personalidade jurídica a qual deve ser medida excepcional. Ou seja,

[...] nem mesmo a desconsideração da personalidade jurídica que a jurisprudência agasalha em certas circunstâncias, e até mesmo a lei às vezes reconhece, autoriza uma sumária anulação da autonomia obrigacional existente entre a sociedade e os sócios. Em outros termos, "a regra geral continua sendo a da distinção entre o patrimônio da empresa e o dos seus sócios".

Não comprovadas adequadamente em juízo as circunstâncias excepcionais autorizadoras da desconsideração da personalidade jurídica, não há que se cogitar da penhora direta sobre bens do sócio quando a execução se refira a dívida da sociedade. (THEODORO JÚNIOR, 2007)

Destarte, recorda-se, não é a simples condição de sócio e o fato de o credor possuir um crédito de natureza alimentar que autorizam a desconsideração. É preciso que sejam comprovados os multireferidos elementos ensejadores de sua aplicação (art. 50 do CC/02) no caso concreto. A posição adotada pela Justiça Trabalhista de, a priori, considerar que o crédito alimentar sempre fará sucumbir qualquer direito dos sócios (quer de sociedades de capital, quer de sociedades de pessoas, quer de cooperativas) é arbitrária e inconstitucional.

Já aqui se percebe que, quanto ao ônus da prova, caberá ao interessado (o trabalhador, o ministério público ou o juiz do trabalho, de ofício) juntar provas que embasem a decisão de desconsideração da pessoa jurídica, sempre oportunizando ao sócio o direito a ampla defesa e ao contraditório. Isso porque, não se pode admitir que se rompa a personalidade jurídica de uma sociedade (pessoa jurídica que possui patrimônio próprio) para invadir o patrimônio dos seus sócios e querer que estes venham a juízo comprovar que não agiram com animus fraudulento e não abusaram da personalidade jurídica da sociedade, enquanto são privados de seus bens os quais, em muitos casos, são os únicos que dispõem para manterem suas famílias – anota-se que nem todo empresário é rico. Com toda certeza essa maneira de agir não se coaduna com o devido processo legal constitucional.

Por fim, a desnecessidade de citação dos sócios para responder pela execução também não pode ser tida como regra geral. Retoma-se o exemplo das sociedades anônimas nas quais não é raro que muitos sócios não participem das deliberações e, muito menos ainda, de sua administração. Não se pode concluir, pois, que uma vez citada regularmente a sociedade todos os sócios também tomariam conhecimento do processo. Primeiramente porque, se o sócio contra o qual se pretende fazer repercutir os efeitos da execução não teve qualquer participação durante o processo de constituição do título, ele não poderá, por exemplo, ter suas contas bloqueadas sem antes ser devidamente citado (citado mesmo!) para se defender das acusações de fraude e de uso abusivo da personalidade jurídica ou, caso estas já estejam comprovadas nos autos, pelo menos, para pagar ou nomear bens sob pena de penhora (art. 880 da CLT).

Segundo porque as pessoa jurídicas não são apenas uma "ficção"– tal qual sugere boa parte dos julgados na Justiça do Trabalho – elas são sim uma realidade jurídica que possui autonomia patrimonial, negocial e uma estrutura altamente complexa e que, muitas vezes, também chega à falência [29]. Pensar o contrário é negar a existência do próprio Estado, isso porque a União, os Estados e os Municípios são pessoas jurídicas e se realmente fossem apenas "ficção jurídica" tudo que eles criariam (incluindo o direito que deles emana) também o seriam (DINIZ, 2007, p. 230). Alguém cogita desconsiderar a personalidade jurídica de um Município para fazer repercutir os efeitos de uma execução sobre o patrimônio de seu administrador (o Prefeito) ou de seus "donos" (os munícipes)? Mesmo aqueles que cogitam tal possibilidade transferem ao trabalhador o ônus de provar a culpa do agente público [30]. Então, por que seria diferente com as pessoas jurídicas de direito privado?

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Sobre o autor
José Carlos Bastos Silva Filho

Advogado.Procurador do Estado do Piauí.Professor. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Maranhão.Especialista em Docência do Ensino Superior pelo Instituto Labora/ Universidade Estácio de Sá-RJ. Especialista em Direito Processual do Trabalho pela OAB/ESA-MA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA FILHO, José Carlos Bastos. A desconsideração da personalidade jurídica na execução trabalhista frente à jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2114, 15 abr. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12634. Acesso em: 25 abr. 2024.

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