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As ilegalidades decorrentes da atuação das guardas municipais como agentes da autoridade de trânsito

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18/04/2009 às 00:00
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3 PODER DE POLÍCIA

"O poder de polícia, em suas manifestações arcaicas, nada mais era que a atividade destinada a manter uma ordem interna do grupo, indispensável à sua própria sobrevivência" (MOREIRA NETO, 1987, p. 115). "Como manifestação da soberania estatal, o poder de polícia tem sofrido as mutações conseqüentes das próprias modificações de seu sujeito, que é o Poder Público" (FERREIRA, 1987, p. 208-9). Suas origens remontam ao declínio do Estado Absolutista, no limiar do século XVIII, que antecede a chegada de uma nova ordem na sociedade, o Estado Liberal, período no qual o poder de polícia encontra sua contenção e redimensionamento.

Essa mudança, entretanto, teve como primícias a revolta dos barões que submeteram o Rei João Sem Terra à Carta Magna em 1215, posteriormente confirmada por Henrique III em 1235. A este ato se seguiram o Petition of Rigths em 1628 e o Bill of Rigths em 1689, fatos que extinguiram definitivamente o absolutismo da monarquia.

O primeiro surto histórico de expansionismo do poder de polícia surge após a edição das Declarações de Direito da Virgínia (1776) e da França (1789), "que caracterizam os direitos individuais como sagrados, inalienáveis e inatingíveis", colocando o Estado em uma "posição omissiva, acreditando que a paz social resultaria, automaticamente, do livre jogo de interesses particulares. Só intervinha para, diante do abuso do direito, restabelecer o equilíbrio social" (FERREIRA, 1987, p. 209).

O poder de polícia cingia-se a um processo de defesa da sociedade contra os excessos individuais, limitando-se a fazer com que um indivíduo não perturbasse os outros. Essas manifestações, entretanto, culminaram em expressivos abusos individuais, fatos que conduziram a um novo conceito de manutenção da ordem, gerada pela necessidade de contenção dos desajustamentos, hipertrofias e deformações causadas pelo liberalismo (MOREIRA NETO, 1987).

"Quando começaram a ruir os fundamentos do exclusivismo individualista do liberalismo, [...] o Estado teve que assumir outras atividades além daquelas essenciais, tradicionalmente cumpridas, geralmente em conexão com o exercício do Poder de Polícia" (MOREIRA NETO, 1987, p. 112-3). Surgiam aí as atividades interventivas denominadas de serviços públicos.

Aliada a essas novas demandas surgiu, concomitantemente, a premente necessidade de intervenção estatal no domínio econômico, a fim de disciplinar as atividades econômicas e garantir oportunidades iguais para todos (Ordenamento Econômico), assim como a necessidade de impor limites ao homem enquanto ser social, com direitos mais amplos, incumbindo ao Estado a tarefa de cuidar da educação, saúde, trabalho, previdência, entre outros campos de atuação social (Ordenamento Social).

Essa fase marca a passagem do Estado Liberal para o Estado do Bem-Estar Social, por meio do qual o Estado busca,por todos os meios a seu alcance, o acesso dos indivíduos, dos grupos econômicos e dos grupos sociais às condições de progresso, adotando medidas capazes de incentivar e mobilizar a iniciativa privada para somar-se à sua ação na prevenção do interesse coletivo (MOREIRA NETO, 1987, p. 114).

Esse processo, aliado ao progresso jurídico do Direito Público, faz surgir o conceito do Estado de Direito, caracterizado pela diferenciação e separação as atividades funcionais do Estado e a submissão do poder de polícia aos limites da lei.

"Este segundo surto histórico expansionista do poder de polícia [...], já perfeitamente balizado pelo Estado de Direito, é o que produziu sua atual concepção e presente dimensão nos Estados Democráticos de Direito contemporâneos" (MOREIRA NETO, 1987, p. 118).

"A expressão poder de polícia, de origem jurisprudencial, teve nascimento no direito norte-americano, criada por eminentes Ministros da Corte Suprema daquele país, cuja repercussão se estendeu até nossos dias" (CRETELLA JUNIOR, 1987, p. 183), ingressando, "pela primeira vez, na terminologia legal, no julgamento pela Corte Suprema do caso Brown versus Maryland e reaparece em outros julgados, a partir de 1827, como limite ao direito de propriedade para subordiná-lo aos interesses respeitáveis da comunidade" (TÀCITO, 1987, p. 101).

Dentro do atual arcabouço jurídico nacional é possível deparar-se com a expressão poder de polícia no inciso II do artigo 145 da Constituição Federal, que faculta aos entes federados a possibilidade de instituição de taxas em razão do exercício do "poder de polícia" ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos à sua disposição.

Acerca do poder de polícia o Código Tributário Nacional (Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966) nos traz a seguinte definição legal:

Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou a abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos (Redação dada pelo Ato Complementar nº 31, de 28.12.1966).

3.1 Conceito

Segundo Miragem (2000), "as modernas concepções do Estado de Direito tem na concessão e garantia de direitos aos seus cidadãos o seu fundamento mais precioso". Para o autor essa finalidade é desempenhada em primeiro lugar pela Constituição, que "passou a sistematizar esta outorga de direitos e deveres aos cidadãos, disciplinando inclusive a forma como as normas jurídicas que lhe fossem inferiores disporiam do estabelecimento ou restrição a tais direitos".

Prossegue o autor aduzindo que aí reside o "fundamento da legitimação do Estado, qual seja, o de organizar a convivência social a partir da restrição a direitos e liberdades absolutas, em favor de um interesse geral". De igual forma, "outorgou-se ao Estado a prerrogativa de indicar qual este interesse geral e de restringir o conteúdo de determinados direitos a limites que permitam o respeito a garantia deste interesse genérico".

Essa prerrogativa de interferência e limitação das condutas individuais, legitimada pelo arcabouço jurídico e com a finalidade de busca do bem comum, ou interesse público, é que justifica a realização da atividade pública doravante denominada de poder de polícia.

Embora a expressão esteja plenamente consagrada na doutrina e na jurisprudência, sua conceituação em seus exatos contornos é tarefa das mais difíceis. Essa dificuldade na conceituação é caracterizada em face da existência de dualidades de concepções existentes.

Para Cretella Junior (1987), uma dessas dualidades reside na distinção entre as chamadas concepções européia continental e a norte-americana. Ao passo que, na França, seguida de perto pela Itália, a defesa da ordem pública, da segurança, da salubridade, é o objetivo preciso do poder de polícia, na jurisprudência e doutrina norte-americanas, aquele poder transcende às formas construtivas de direitos individuais, promanadas da Administração para estender-se, principalmente, até o exercício da função legislativa.

Outra dualidade nos é apontada por Celso Antonio Bandeira de Mello (apud MIRAGEM, 2000), que reconhece a existência de dois sentidos para o termo.

Um amplo, que consistiria na atividade estatal de condicionar a liberdade e a propriedade ajustando-as aos interesses coletivos que indica o universo das medidas do Estado, aí inclusive as normas legislativas produzidas pelo poder competente. Em sentido estrito, contudo, se pode observar o poder de polícia como intervenções genéricas ou específicas do Poder Executivo destinadas a alcançar o mesmo fim de interferir nas atividades de particulares tendo em vista os interesses sociais.

Brandão Cavalcanti (apud CRETELLA JUNIOR, 1987, p. 190) aponta que

em sentido lato, a expressão poder de polícia deve ser entendida como o "exercício do poder sobre as pessoas e as coisas, para atender o interesse público", explica que "aquela designação não comporta definição rígida, mas inclui todas as restrições impostas pelo poder público aos indivíduos em benefício do interesse coletivo, saúde, ordem pública, segurança, e, ainda mais, os interesses econômicos e sociais. E conclui: "Poder de Polícia é a faculdade de manter os interesses coletivos de assegurar os direitos individuais de terceiros". "O poder de polícia visa", continua, "à proteção dos bens, direitos, da liberdade, da saúde, do bem-estar econômico. Constitui limitação à liberdade individual, mas tem por fim assegurar esta própria liberdade e os direitos essenciais do homem".

Na lição de Meirelles (2000a, p. 393), o "Poder de Polícia é a faculdade de que dispõe a Administração Pública para condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais, em benefício da coletividade ou do próprio Estado", ou, "em linguagem menos técnica, é o mecanismo de frenagem de que dispõe a Administração Pública para conter os abusos do direito individual".

No dizer de Lazzarini, poder de polícia "é um conjunto de atribuições da Administração Pública, como poder público, tendentes ao controle dos direitos e liberdades das pessoas, naturais ou jurídicas, a ser inspirado nos ideais do bem comum" (1987, p. 27-8).

Moreira Neto (1994, p. 294), abarcando a necessidade de um campo de atuação discricionária da Administração Pública em face da multiplicidade de comportamentos nocivos aos interesses coletivos, conceitua-o como:

a atividade administrativa que tem por objeto limitar e condicionar o exercício de direitos fundamentais, compatibilizando-o com interesses públicos legalmente definidos, com o fim de permitir uma convivência ordeira e valiosa..

Segundo Cretella Junior (1987, p. 192-3) o poder de polícia é o mecanismo por meio do "qual os Estados de direito, de nossos dias, satisfazem a tríplice objetivo, qual seja, o de assegurar a tranqüilidade, a segurança, a salubridade, mediante uma restritiva série de medidas, traduzidas, na prática, pela ação policial, que se propõe a atingir tal desideratum".

A par do conceito legal de polícia administrativa dado pelo artigo 78 do Código Tributário Nacional, Gasparini (2003, p. 120) conceitua essa atribuição como sendo "a que dispõe a Administração Pública para condicionar o uso, o gozo e a disposição da propriedade e o exercício da liberdade dos administrados no interesse público ou social".

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Na conceituação de Caio Tácito (apud MEIRELLES, 1987, p. 148-9):

O poder de polícia é, em suma, o conjunto de atribuições concedidas à Administração para disciplinar e restringir, em favor de interesse público adequado, direitos e liberdades individuais. Essa faculdade administrativa não violenta o princípio da legalidade porque é da própria essência constitucional das garantias do indivíduo a supremacia dos interesses da coletividade. Não há direito público subjetivo no Estado moderno. Todos se submetem com maior ou menor intensidade à disciplina do interesse público, seja em formação ou em seu exercício. O poder de polícia é uma das faculdades discricionárias do Estado, visando à proteção da ordem, da paz e do bem-estar sociais.

Registre-se, por fim, o surgimento de divergência doutrinária quanto ao uso da expressão poder de polícia, incômoda a alguns administrativistas, os quais vêm buscando outras denominações técnicas para a designação da atuação estatal no campo das liberdades e interesses individuais.

Segundo Miragem (2000), um dos primeiros juristas a manifestar esta crítica foi Gordillo, "para quem basicamente criara-se uma concepção autônoma no direito administrativo, o poder de polícia, para indicar algo que em verdade resume-se à aplicação da lei - conduta exigível de qualquer órgão do Estado, vinculados ou não à Administração".

Prossegue o jurista aduzindo que

Entre nós, Sunfeld critica a atual noção de poder de polícia e a predominância da doutrina em considerá-la a partir da perspectiva de ato de natureza negativa, exigindo predominantemente uma abstenção do particular, bem como a solução que identifica ter sido encontrada pela doutrina: a mera troca do termo que designa as prerrogativas da Administração neste campo, notando a preferência da doutrina moderna pela utilização do signo limitações administrativas.

Propõe aquele autor o abandono do termo e sua substituição pelo conceito de administração ordenadora, que abrange a ação administrativa e a atividade legislativa, sendo conceituada como "a parcela da função administrativa desenvolvida com o uso do poder de autoridade, para disciplinar, nos termos e nos fins da lei, os comportamentos dos particulares no campo de atividades que lhes é próprio". Referido conceito abrange quatro elementos fundamentais: "exercício de função administrativa, voltada à organização da vida privada, dentro de uma relação genérica e com a utilização do poder de autoridade".

3.2 Atributos, meios de exteriorização e delegação

Conforme vimos acima, o poder de polícia é, em suma, concedido nos termos da lei e regido pelas normas de Direito Administrativo, configurando-se na supremacia concedida ao Estado para condicionar e restringir o uso e gozo dos bens e liberdades individuais das pessoas físicas e jurídicas.

Em regra, essa atribuição do exercício do poder de polícia compete à entidade a quem a Constituição Federal concede a competência para legislar sobre o assunto. Segundo Gasparini (2003, p. 123) "a expressão ‘atribuição de polícia’ pode ser tomada tanto em sentido amplo como em sentido estrito. Em sentido amplo, abrange, além dos atos do Executivo, os do Legislativo. Em sentido estrito, alcança somente os atos do Executivo".

Preleciona o referido autor que "essa atividade administrativa manifesta-se por atos normativos e concretos. Dos primeiros são exemplos os regulamentos (venda de bebidas nos períodos eleitorais e carnavalescos). Esses são atos gerais, abstratos e impessoais". Com relação aos segundos, aduz que "são exemplos os atos administrativos de interdição de atividade não licenciada, de apreensão de mercadoria deteriorada, de guinchamento de veículo que não oferece condição ideal de uso [...] e de interdição (confinamento) de louco (2003, p. 124).

Para Di Pietro (2003, p. 113), considerando o poder de polícia em sentido amplo, de modo que abranja as atividades do Legislativo e do Executivo, os meios de que se utiliza o Estado para o seu exercício são:

1. atos normativos em geral, a saber: pela lei, criam-se as limitações administrativas ao exercício dos direitos e das atividades individuais, estabelecendo-se normas gerais e abstratas dirigidas indistintamente às pessoas que estejam em idêntica situação; disciplinando a aplicação da lei aos casos concretos, pode o Executivo baixar decretos, resoluções, portarias, instruções;

2. atos administrativos e operações materiais de aplicação da lei ao caso concreto, compreendendo medidas preventivas (fiscalização, vistoria, ordem, notificação, autorização, licença), com o objetivo de adequar o comportamento individual à lei, e medidas repressivas (dissolução da reunião, interdição de atividade, apreensão de mercadorias deterioradas, internação de pessoa com doença contagiosa), com a finalidade de coagir o infrator a cumprir a lei.

A doutrina aponta como atributos específicos e peculiares ao exercício do poder de polícia a discricionariedade, a auto-executoriedade e a coercibilidade.

Segundo Meirelles (2000b, p. 127), "a discricionariedade [...] traduz-se na livre escolha, pela Administração, da oportunidade e conveniência de exercer o poder de polícia, bem como de aplicar as sanções e empregar os meios conducentes a atingir o fim colimado".

Segundo o autor a discricionariedade reside na "liberdade legal de valoração das atividades policiadas e na graduação das sanções aplicáveis aos infratores", desde que, aponta, a sanção guarde correspondência e proporcionalidade com a infração (2000b, p. 127).

Para Di Pietro (2003, p. 113), embora a discricionariedade "esteja presente na maior parte das medidas de polícia, nem sempre isso ocorre". Nesse sentido, preleciona a autora que, "às vezes, a lei deixa certa margem de liberdade de apreciação quanto a determinados elementos, como o motivo ou o objeto. Tal fato se deve à impossibilidade de previsão, pelo legislador, de todas as hipóteses possíveis para a atuação do poder de polícia".

Em outras circunstâncias, presente determinados requisitos, estabelece a lei qual o comportamento exigido da Administração, a quem não cabe, no caso concreto, qualquer possibilidade de livre escolha, quando então estaremos diante de um ato vinculado. O ato assim considerado somente será considerado válido se atender todas as exigências da lei ou do regulamento pertinente.

Preleciona Di Pietro (2003, p. 114) que "para o exercício de atividades ou para a prática de atos sujeitos ao poder de polícia do Estado, a lei exige alvará de licença ou de autorização". Prossegue a autora afirmando que no primeiro caso o ato é vinculado, uma vez que a lei prevê os requisitos necessários para que se conceda o alvará, tal como na obtenção da Carteira Nacional de Habilitação; no segundo caso o ato é discricionário, vez que incumbe à Administração apreciar a situação concreta e decidir se deve ou não conceder a autorização, diante do interesse público pertinente, tal como na concessão do porte de arma de fogo.

Para Meirelles (2000b, p. 127-8) a auto-executoriedade é "a faculdade de a Administração decidir e executar diretamente sua decisão por seus próprios meios sem intervenção do Judiciário". Nesse sentido, segundo o autor, o STF já decidiu concluindo que, "no exercício regular da autotutela administrativa, pode a Administração executar diretamente os atos emanados de seu poder de polícia sem utilizar-se da via cominatória, que é posta à sua disposição em caráter facultativo".

Na conceituação de Di Pietro (2003, p. 114) a auto-executoriedade "é a possibilidade que tem a Administração de, com os próprios meios, pôr em execução as suas decisões, sem precisar recorrer previamente ao Poder Judiciário". Segundo a doutrinadora, alguns autores desdobram o princípio em dois: a exigibilidade e a executoriedade.

A exigibilidade é a possibilidade que a Administração possui de tomar decisões executórias sem que haja prévio pronunciamento do juiz para impor a obrigação ao administrado. Para tanto se vale a Administração de meios indiretos de coação, tais como a imposição de multa e o condicionamento do licenciamento do veículo à quitação das multas não pagas.

A executoriedade se refere à possibilidade da Administração impor diretamente ao administrado a decisão executória, valendo-se para tanto, inclusive, do uso de força pública para tal desiderato. Nessas situações diz-se que a Administração se vale de meios diretos de coação, tal como, por exemplo, quando apreende mercadorias e interdita estabelecimentos.

A coercibilidade é "a imposição coativa das medidas adotadas pela Administração [...]. Realmente, todo ato de polícia é imperativo (obrigatório para seu destinatário), admitindo até o emprego da força pública para seu cumprimento, quando resistido pelo administrado" (MEIRELLES, 2000b, p. 129).

Para Di Pietro (2003, p. 115) "a coercibilidade é indissociável da auto-executoriedade. O ato de polícia só é auto-executório porque dotado de força coercitiva. Aliás, a auto-executoridade, tal como a conceituamos não se distingue da coercibilidade [...]".

Segundo Moreira Neto (1994, p. 295) "o poder de polícia atua de quatro modos: pela ordem de polícia, pelo consentimento de polícia, pela fiscalização de polícia e pela sanção de polícia". Nos dizeres do doutrinador "a limitação é o instrumento básico do Poder de Polícia e aqui se apresenta como ordem de polícia, quem vem a ser um preceito legal, conforme reserva constitucional (art. 5º, II)", ou seja, são determinações incidentes sobre as atividades particulares em benefício do interesse público e que englobam um preceito negativo absoluto (não se faça aquilo que possa prejudicar o interesse geral) e um preceito negativo com reserva de consentimento (não se deixe de fazer o que, de alguma forma, poderá evitar posterior prejuízo público).

Outro modo de atuação do poder de polícia se dá pelo consentimento de polícia, que é "o ato administrativo de anuência para que alguém possa utilizar a propriedade particular ou exercer atividade privada, naqueles casos em que o legislador exija um controle prévio da compatibilização do uso do bem ou do exercício da atividade com o interesse público" (MOREIRA NETO, 1994, p. 295).

Nesse caso, verificando a Administração a implementação de todas as condições para o exercício de direito ou de uso de faculdades, sejam elas jurídicas ou fáticas, concederá a sua anuência, a qual é formalmente denominada de alvará (MOREIRA NETO, 1994), o qual, segundo definição de Meirelles (2000b, p. 129), "é o instrumento da licença ou autorização para a prática do ato, realização de atividade ou exercício de direito dependente de policiamento administrativo".

Esse alvará (formal) poderá se constituir, materialmente, em uma licença (ato administrativo declarativo vinculado) ou uma autorização (ato administrativo constitutivo discricionário). A concessão da licença está sempre vinculada à lei e, desde que atendidas as exigências ali insertas, sua outorga é obrigatória, tornando, por via de conseqüência, exeqüível um direito preexistente, tal como decorre na concessão de licença para construção (direito de edificação) (MESALIRA, 1998).

Na autorização não há qualquer direito preexistente, mas sim mera expectativa de sua concessão, ficando esta sujeita ao juízo da autoridade competente, conforme a oportunidade e a conveniência. Esse juízo analisa se há compatibilização entre o uso ou a atividade pretendidas e o interesse público, o qual poderá ser revisto e alterado a qualquer tempo (precário). Atualmente a legislação não permite que se porte armas, entretanto, poderá o Estado consentir que determinado cidadão venha a portá-la (autorização para porte de arma) (MESALIRA, 1998).

A fiscalização de polícia destina-se a verificar o exato cumprimento, pelos administrados, das ordens e dos consentimentos de polícia, principalmente no que tange à utilização correta dos bens e realização das atividades.

De acordo com Moreira Neto (1994, p. 297), "sua utilidade é dupla: primeiramente, realiza a prevenção das infrações pela observação do cumprimento, pelos administrados, das ordens e consentimentos de polícia; em segundo lugar, prepara a repressão das infrações pela constatação formal dos atos infringentes", podendo ser "deflagrada ex officio ou provocada por quem quer que tenha interesse no cumprimento da ordem ou em manter, prorrogar ou remover certo consentimento de polícia".

A sanção de polícia é a fase final do mecanismo de fiscalização preventiva, quando então, verificada a ocorrência de infração às ordens e consentimentos de polícia, haverá a intervenção sancionatória estatal sobre a propriedade e atividades privadas. Moreira Neto (1994) indica dois tipos de sanção: a externa, que incide sobre os administrados, e a interna, aplicável aos servidores públicos.

Para o autor a sanção de polícia visa "assegurar, por sua aplicação, a repressão da infração e a restabelecer o atendimento do interesse público, compelindo o infrator à prática do ato corretivo ou dissuadindo-o de persistir no cometimento da infração administrativa" (1994, p. 297).

Outro ponto fulcral com relação ao poder de polícia e que suscita divergências doutrinárias é a possibilidade da delegação de seu exercício. Azevedo (2007) oportunamente nos apresenta três posições da doutrina a respeito do assunto:

[...] A primeira que considera o poder de polícia indelegável por se tratar de instituto relacionado à soberania do Estado, estando superada atualmente, por existirem atividades administrativas ligadas ao poder de gestão.

A segunda, que é liderada pelo professor e desembargador Nagib Slaibi Filho, admite a delegação total, tendo como fundamento a admissibilidade de prisão em flagrante por qualquer um do povo como exemplo de delegação máxima oriunda da própria Constituição, o que permitiria outras delegações de menor grau. Com a devida vênia, há uma confusão entre os conceitos de polícia ostensiva, judiciária e polícia administrativa (polícia-função).

E a terceira corrente, majoritária, e posição atual do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, é liderada pelos professores Marcos Juruena Vilela Souto e Diogo de Figueiredo Moreira Neto, para quem o poder de polícia é parcialmente delegável, devendo ser dividido em quatro ciclos: 1°- ordem de policia, 2°- consentimento de polícia, 3°-fiscalização de polícia e 4°- sanção de polícia.

Assim, os 2° e 3° ciclos seriam delegáveis, pois estariam ligadas ao poder de gestão do Estado, enquanto que os 1° e 4° ciclos seriam indelegáveis por retratarem atividade de império, típicas, portanto.

Não se deve confundir a delegação de serviços públicos com a delegação do exercício do poder de polícia. Aquela é modalidade em que são contratantes (sob a forma de delegação, concessão ou credenciamento) a Administração Pública e o particular, a fim de que este execute determinado serviço em nome próprio, por sua conta e risco, com a conseqüente contraprestação paga pelo usuário.

O poder de polícia, como visto acima, é atividade comedida ao Estado para limitar e condicionar o uso dos bens, atividades e liberdades individuais, adequando-os ao interesse público peculiar. Não pode, portanto, ser estendida ao particular, tornando-se indelegável fora do âmbito dos órgãos e entidades da administração direta e indireta. Conforme citado acima, ainda que assim o seja, para o mestre Diogo de Figueiredo Moreira Neto essa delegação circunscreve-se tão somente ao 2º e 3º ciclos, respectivamente, o consentimento e a fiscalização de polícia.

Para Azevedo (2007), "seja como for, para que o poder de policia seja delegável é essencial que a pessoa jurídica tenha vinculação oficial com a Administração Pública, que a delegação de atribuição seja previamente autorizada em lei formal", assim como seja imprescindível que "a pessoa jurídica necessite do uso da imperatividade, já que a fiscalização e o consentimento são também uma das vertentes do poder de império".

Conforme assentado por Meirelles (2000b, p. 122-3) "deve-se distinguir o poder de polícia originário do poder de polícia delegado, pois aquele nasce com a entidade que o exerce e este provém de outra, através de transferência legal". Aduz o autor que o poder de polícia originário é exercido plenamente, em todas as suas nuances, ao passo que o delegado encontra limite nos termos da lei que o instituiu, abrangendo apenas atos de execução, o que, per si, não o exime da faculdade de aplicar sanções aos infratores, uma vez que se trata de desdobramento da atribuição de seu exercício.

Igual entendimento é esposado por Rizzardo (2003), para quem essa delegação de atividades restringe-se unicamente às atividades executivas, não sendo permitido que englobe os poderes normativos, os quais são de competência privativa dos órgãos superiores.

O CTB permite que os órgãos e entidades de trânsito que compõem o SNT possam delegar a execução de atividades e o exercício de suas competências a outros órgãos e entidades de trânsito, no âmbito do SNT, e até mesmo para particulares, excluído para estes qualquer atividade relacionada com o exercício do poder de polícia de trânsito. O assunto será estudado em capítulo próprio, entretanto, por ora, colacionamos os seguintes excertos:

Art. 19. Compete ao órgão máximo executivo de trânsito da União:

[...]

II - proceder à supervisão, à coordenação, à correição dos órgãos delegados, ao controle e à fiscalização da execução da Política Nacional de Trânsito e do Programa Nacional de Trânsito;

[...]

VII - expedir a Permissão para Dirigir, a Carteira Nacional de Habilitação, os Certificados de Registro e o de Licenciamento Anual mediante delegação aos órgãos executivos dos Estados e do Distrito Federal;

[...]

XX - expedir a permissão internacional para conduzir veículo e o certificado de passagem nas alfândegas, mediante delegação aos órgãos executivos dos Estados e do Distrito Federal;

[...]

§ 1º Comprovada, por meio de sindicância, a deficiência técnica ou administrativa ou a prática constante de atos de improbidade contra a fé pública, contra o patrimônio ou contra a administração pública, o órgão executivo de trânsito da União, mediante aprovação do CONTRAN, assumirá diretamente ou por delegação, a execução total ou parcial das atividades do órgão executivo de trânsito estadual que tenha motivado a investigação, até que as irregularidades sejam sanadas.

[...]

Art. 20. Compete à Polícia Rodoviária Federal, no âmbito das rodovias e estradas federais:

[...]

V - credenciar os serviços de escolta, fiscalizar e adotar medidas de segurança relativas aos serviços de remoção de veículos, escolta e transporte de carga indivisível;

[...]

Art. 22. Compete aos órgãos ou entidades executivos de trânsito dos Estados e do Distrito Federal, no âmbito de sua circunscrição:

[...]

II - realizar, fiscalizar e controlar o processo de formação, aperfeiçoamento, reciclagem e suspensão de condutores, expedir e cassar Licença de Aprendizagem, Permissão para Dirigir e Carteira Nacional de Habilitação, mediante delegação do órgão federal competente;

III - vistoriar, inspecionar quanto às condições de segurança veicular, registrar, emplacar, selar a placa, e licenciar veículos, expedindo o Certificado de Registro e o Licenciamento Anual, mediante delegação do órgão federal competente;

[...]

VII - arrecadar valores provenientes de estada e remoção de veículos e objetos;

[...]

X - credenciar órgãos ou entidades para a execução de atividades previstas na legislação de trânsito, na forma estabelecida em norma do CONTRAN;

[...]

Art. 23. Compete às Polícias Militares dos Estados e do Distrito Federal:

[...]

III - executar a fiscalização de trânsito, quando e conforme convênio firmado, como agente do órgão ou entidade executivos de trânsito ou executivos rodoviários, concomitantemente com os demais agentes credenciados;

[...]

Art. 24. Compete aos órgãos e entidades executivos de trânsito dos Municípios, no âmbito de sua circunscrição:

[...]

XII - credenciar os serviços de escolta, fiscalizar e adotar medidas de segurança relativas aos serviços de remoção de veículos, escolta e transporte de carga indivisível;

[...]

Art. 25. Os órgãos e entidades executivos do Sistema Nacional de Trânsito poderão celebrar convênio delegando as atividades previstas neste Código, com vistas à maior eficiência e à segurança para os usuários da via.

Parágrafo único. Os órgãos e entidades de trânsito poderão prestar serviços de capacitação técnica, assessoria e monitoramento das atividades relativas ao trânsito durante prazo a ser estabelecido entre as partes, com ressarcimento dos custos apropriados.

Assim, verifica-se que muitas atividades que deveriam ser prestadas pelo Poder Público podem e, na maioria das vezes, são prestadas por meio de delegação a terceiros, sejam pessoas físicas ou jurídicas. Tal hipótese se dá, por exemplo, nos seguintes casos:

- delegação do Departamento Nacional de Trânsito (DENATRAN) aos órgãos executivos dos Estados e do Distrito Federal para realizar, fiscalizar e controlar o processo de formação, aperfeiçoamento, reciclagem e suspensão de condutores, expedir e cassar Licença de Aprendizagem, Permissão para Dirigir e Carteira Nacional de Habilitação;

- credenciamento de serviços de escolta, de remoção de veículos e transporte de carga indivisível.

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Sobre o autor
Benevides Fernandes Neto

Oficial da Polícia Militar em São José do Rio Preto/SP, Bacharel em Direito, Especialista em Segurança Pública pela PUC/RS e em Direito Administrativo pelo Centro Universitário do Norte Paulista (UNORP).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERNANDES NETO, Benevides. As ilegalidades decorrentes da atuação das guardas municipais como agentes da autoridade de trânsito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2117, 18 abr. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12636. Acesso em: 26 abr. 2024.

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Título original: "As ilegalidades decorrentes da atuação das guardas municipais como agentes da autoridade de trânsito sob a ótica constitucional e do Código de Trânsito Brasileiro."

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