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A coisa julgada no anteprojeto do Código Brasileiro de Processos Coletivos

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2.Da instrumentalidade do processo: das ações coletivas e dos direitos em pauta

A importante relação entre o direito processual e o direito material há muito já é alentada por Mauro Capeletti, para quem o direito material representaria a primeira influência ideológica no âmbito da legislação processual [18]. O processo civil sempre demonstrou uma tendência para a consecução dos fins almejados pelo direito material, ou seja, as regras processuais são criadas para atender às peculiaridades da situação jurídica material a ser deduzida em juízo.

Assim, a inquestionável autonomia do direito processual não quer dizer que seja indiferente ao direito material; ao revés, possuem uma interligação, já que se integram na tarefa de "criação de normas jurídicas (gerais ou individuais, abstratas ou concretas)" [19].

Hermes Zaneti Jr. ensina, com base na teoria circular dos planos [20]:

(...) o processo precisa, como instrumento que é, estar adequado ao direito material que pretende servir. Nessa ótica, os princípios da adequação e da instrumentalidade se completam (...). Vale ressaltar a tendência atual do direito processual comparado que demonstra uma crescente preocupação dos ordenamentos internos em valorizar a adequação para garantir maior efetividade e economia processual, por exemplo, possibilitando a alteração da demanda em seu curso (...)" [21]

No mesmo sentido, o professor Fredie Didier:

"As regras processuais são criadas para atender às características/peculiaridades da situação jurídica substancial a ser deduzida no ato postulatório.(...)

A inquestionável autonomia do Direito Processual não pressupõe a sua neutralidade em relação ao Direito Material. Ao contrário, há entre eles um vínculo indiscutível, eis que se integram na tarefa de criação das normas jurídicas (gerais ou individuais, abstratas ou concretas)" [22].

Dessa forma, os direitos ditos coletivo dependem de tutela a eles adequada, para que sejam efetivados, em caso de violação. E o processo deve obedecer às peculiaridades do direito substancial, em cumprimento à própria Constituição.

Assim entende Eduardo Henrique Raymundo von Adamovich:

"Se ao feitio dos direitos tutelados na ordem material correspondem as peculiaridades da tutela processual que se espraiam por vários institutos nesta ordem, constatação que, no processo coletivo, bem explica a extensão e a feição dita quase-legislativa dos provimentos jurisdicionais nele, não se pode descuidar de que é no processo que muitos direitos se constroem, modificam ou conservam, assim como no terreno do direito material.

Em verdade, talvez hoje se perceba melhor a antiga confusão entre ação e direito material, na medida em que o processo é também um ambiente em que estes se criam, modificam, conservam ou extinguem. Partindo-se da concepção muito cara a Wach ou Chiovenda da pretensão e sabendo-se que a interseção entre direito material e ação é maior do que se costumava supor no século passado, é bom ver também que muitas vezes eles existem ou se supõem existir no plano material sob formas singulares, sem qualquer correspondência legal direta, trazendo para o juízo a tarefa de enquadrá-los no ordenamento para depois devolvê-los consertados à vida, em vez de imaginar-se, muito ao gosto de uma visão positivista estrita, que os direitos existem no plano material prontos e acabados, cabendo ao Poder Judiciário apenas resolver as crises que sobre eles recaem" [23].

Importa observar que a tutela dos interesses difusos e coletivos não se explica somente pela necessidade de racionalização do processo, aumento da celeridade e economia processual. Tampouco essa tutela surge devido à existência de novos direitos e sujeitos de direito. Contudo, a sua evolução, hoje, segundo expressa Ronaldo Porto Macedo Jr. [24], é definida também em razão da existência de uma nova natureza do direito social (polêmica, política, desprovida de uma medida de justiça universal e, a priori, contraditória, diretamente vinculada ao desempenho de políticas públicas etc.). Uma dimensão importante da tutela desses interesses é que ela tornou-se um dos campos privilegiados para a disputa pelo direito social, de modo que, invocando os princípios e a referência à justiça social, aplica-se regras de julgamento na solução dos casos concretos em demandas coletivas.

Nesse diapasão, o processo civil deve prestar respeito a certos princípios, como forma de lograr a efetivação dos direitos em pauta.

2.1Princípios processuais: verdadeiros direitos fundamentais processuais com escopo de efetivação dos direitos discutidos

Não se busca aqui esgotar todos os princípios de índole processual, mas apenas tecer breves comentários acerca dos mesmos com o escopo de demonstrar que o Anteprojeto de Processos Coletivos possui o objetivo de atender a essas determinações do Poder Constituinte Originário.

2.1.1.Processo e Direitos Fundamentais

Com o neoconstitucionalismo criando uma nova percepção da Constituição e de sua função na interpretação jurídica, tem-se que tal norma fundamental fixa os vetores interpretativos da ordem jurídica. É dizer, a Constituição, com toda a sua força normativa, explícita ou implicitamente, firma os valores, os princípios e as regras a serem seguidos não só quando da aplicação das normas, seja pelo administrador ou pelo juiz, no caso concreto, mas também quando de sua elaboração pelo legislador.

Nesse contexto, a Constituição deve ser entendida como o ponto de partida para a interpretação de todo o ordenamento jurídico, assumindo um papel basilar na construção do neoprocessualismo. Este é um estudo e aplicação do direito processual a partir das premissas teóricas e metodológicas do mencionado neoconstitucionalismo, como a força normativa da Constituição, o desenvolvimento da teoria dos direitos fundamentais e o desenvolvimento da jurisdição constitucional.

Com o fenômeno da constitucionalização dos direitos, as leis infraconstitucionais e os Códigos deixaram de estar no centro do sistema jurídico, dando lugar às normas constitucionais que contemplam direitos e garantias fundamentais. Dessa forma, se uma lei se encontra antagônica à Constituição, diante de sua supremacia, aquela não deve ser aplicada, premissa essa já assentada historicamente no caso Marbury v. Madison, julgado em 1803, que deu início à denominada judicial review [25]. Ou, ainda, a fim de evitar sua declaração de inconstitucionalidade, é possível, atualmente, que o juiz se utilize das técnicas de hermenêutica constitucional, adotando, por exemplo, a interpretação conforme.

Não se pode olvidar, ademais, a tese de que as Constituições são normas jurídicas fundamentais e supremas, devendo sempre prevalecer, com todas as interpretações efetuadas a partir de suas normas.

Nesse diapasão, em sendo consagrados pela Constituição princípios de direito processual, os mesmos devem ser concretizados, já que são normas e direitos fundamentais. E o processo é um importante instrumento de concretização da Constituição, devendo estar de acordo com os direitos fundamentais em sua dimensão objetiva e estar preparado para proteger sua dimensão subjetiva.

Direitos fundamentais na dimensão objetiva são normas que consagram valores que orientam a produção legislativa. Valores esses havidos por fundamentais, que devem estruturar todo o ordenamento jurídico. É nesse sentido que ocorre a eficácia irradiante dos direitos fundamentais, que faz surgir a tese da interpretação de acordo com os mesmos.

Segundo Marinoni, os direitos fundamentais fornecem impulsos e diretrizes para a aplicação e interpretação do direito infraconstitucional, considerando-se sua condição de direito objetivo. "O valor contido na norma de direito fundamental, revelado de modo objetivo, espraia-se necessariamente sobre a compreensão e a atuação do ordenamento jurídico." [26]

Assim, a norma de direito fundamental, ao instituir valor e, desse modo, influir sobre a vida social e política, regula o modo de ser das relações, não apenas entre os sujeitos privados e o Estado, bem como as relações entre os particulares, o que se convencionou chamar "eficácia horizontal dos direitos fundamentais".

Já a dimensão subjetiva preconiza que os direitos fundamentais são direitos, isso é, direitos subjetivados nos indivíduos e na comunidade, que podem ser exigidos judicialmente.

Dessa forma, o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva pode ser retirado do art. 5º, XXXV, do texto constitucional, como entendem, a título de exemplo, o professor Marinoni e Eduardo Cambi, ou do princípio do devido processo legal, conforme posição de Fredie Didier.

2.1.2Do direito fundamental ao devido processo legal

A cláusula do devido processo legal tem seu surgimento em 1215, com a Magna Carta (due process of law) e encontra-se atualmente expresso em nossa Constituição de 1988, em seu art. 5º, LIV, sendo uma cláusula geral, aberta, cujo conteúdo se vai preenchendo ao longo do tempo.

Conforme Paulo Henrique dos Santos Lucon:

"...percebe-se que hoje, o importante não é delimitá-lo com uma precisão cartesiana (que não é própria da ciência jurídica, muito menos do direito positivo), mas é saber que o devido processo legal influi decisivamente na vida das pessoas e nos seus direitos." [27]

Assim, de forma sucinta, sem pretender esgotar o conceito do princípio em tela, processo, em seu sentido amplo, é meio de criação do direito estatal ou não estatal, ou seja, é qualquer modo de produção do direito. "Legal" é a tradução da palavra law, o que significa em conformidade com o Direito, que por óbvio, inclui a Constituição.

Processo devido é aquele efetivo, tempestivo e adequado, sendo certo que tais características ganharam autonomia como princípios: princípio da efetividade, da duração razoável do processo e da adequação, que se relacionam entre si.

No que toca à razoável duração do processo, com previsão no art. 5º, LXXVIII, CR e no Pacto de São José da Costa Rica, importa salientar que é uma garantia, não necessariamente a um processo rápido, mas à duração do processo de acordo com o uso racional do tempo processual. É um direito a um processo sem dilações indevidas, sendo também direitos fundamentais os meios que garantam essa razoável duração (arts. 195 e 555, §§ 2º e 3º, do CPC, etc.).

A tutela antecipatória baseada em abuso do direito de defesa ou em incontroversa parcela da demanda é um bom exemplo de tratamento racional ao tempo do processo.

Na Europa, a duração razoável já existe desde o Tratado de Roma, existindo quatro critérios para aferi-la: comportamento do juiz, comportamento das partes, complexidade da causa e estrutura do Juízo.

Quanto ao princípio da adequação, devem-se observar três critérios: adequação objetiva, isto é, o processo deve ser adequado ao tipo de direito material que por ele será tutelado (as peculiaridades de cada direito exigem tratamento adequado), adequação subjetiva, ou seja, em relação aos sujeitos que vão participar do processo (idosos, Fazenda Pública, etc.) e adequação teleológica, na qual o processo tem que ser adequado a seus fins.

A doutrina ainda divide a adequação em dois momentos: adequação legislativa, em que o legislador deve criar leis adequadas, com observância desses três critérios e adequação jurisdicional (também chamada de princípio da adaptabilidade do procedimento ou da elasticidade do procedimento ou, ainda, como se denomina em Portugal, princípio da adequação formal), aquela realizada pelo juiz no caso concreto, criando a norma jurídica individualizada (a jurisdição possui caráter criativo).

Como é possível perceber, o devido processo legal é um gerador de princípios, pois, em sendo aberto, é quase sempre possível se dizer que um princípio é dele decorrente.

O devido processo legal possui duas dimensões: uma processual, também denominada de formal ou procedimental e outra substancial (substative due process of law). A primeira envolve o conjunto de garantias mínimas de natureza formal para o exercício da jurisdição (ex. juiz natural, contraditório, motivação, etc.), ao passo que a segunda diz respeito ao princípio da proporcionalidade.

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2.1.3Do direito fundamental à efetiva tutela jurisdicional e princípio da adequação

Segundo Marinoni, o direito fundamental à efetividade é o mais importante dos direitos fundamentais, visto que é ele que garante a efetivação de todos os outros. Para esse autor. "o direito à sentença deve ser visto como direito ao provimento e aos meios executivos capazes de dar efetividade ao direito substancial, o que significa o direito à efetividade em sentido estrito."

Nesse sentido, a tutela coletiva de direitos coletivos ou individuais homogêneos busca concretizar o direito fundamental em análise, uma vez que através de mecanismo especial (princípio da adequação), tem-se por escopo satisfazer direitos de natureza diversa da individual, que possui o tratamento tradicional pelo Código de Ritos.

Princípio da efetividade é aquele que impõe que os direitos reconhecidos sejam realizados, implementados, efetivados, não bastando seu mero reconhecimento.

Tal princípio encontra-se consagrado no art. 5º, XXXV, da Lei Fundamental, ou seja, tal norma garante a todos o direito a uma prestação jurisdicional efetiva, sendo o mais importante dos direitos, vez que é o direito a fazer valer os próprios direitos.

O direito à prestação jurisdicional efetiva é decorrência da existência dos direitos, já que, em regra, não se admite a autotutela.

Desse modo, o direito à tutela jurisdicional não pode se limitar ao direito de igual acesso ao procedimento estabelecido ou ao conceito tradicional de acesso à justiça, como ensina o professor Marinoni. Não é suficiente que todos tenham iguais oportunidades de acesso aos procedimentos e aos advogados, mas que efetivamente tenham a possibilidade de argumentação e produção de provas (o que também significa contraditório em seu aspecto substancial).

Observe-se que o princípio da efetividade possui estreita relação com outros princípios fundamentais processuais. Tem-se como exemplo a diferenciação de procedimentos (princípio da adequação em sua dimensão objetiva), que se encontra em consonância com o direito à tutela jurisdicional efetiva. Outro exemplo é o já mencionado aspecto jurisdicional da adequação, tendo o juiz o poder-dever de "mesmo e principalmente no silêncio da lei, determinar as medidas que se revelem necessárias para melhor atender aos direitos fundamentais envolvidos na causa, a ele submetida" [28], haja vista que a ausência de técnica processual adequada para certo caso em conflito é omissão atentatória ao direito fundamental à efetividade da tutela jurisdicional.

Ressalte-se que o direito à tutela jurisdicional efetiva reúne o direito à técnica processual adequada, o direito de participar por meio de procedimento adequado e o direito à resposta jurisdicional. É dizer, existe direito devido pelo Estado-legislador à edição de normas de direito material de proteção, bem como de normas de direito instituidoras de técnicas processuais capazes de proporcionar efetiva proteção (direito fundamental em sua dimensão objetiva). Mas o Estado-juiz também possui dever de proteção que se realiza quando ele profere sua decisão a respeito dos direitos fundamentais em sua dimensão subjetiva. Como assevera o professor Marinoni:

"O direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva incide sobre o legislador e o juiz, ou seja, sobre a estruturação legal do processo e sobre a conformação dessa estrutura pela jurisdição. (...) A obrigação de compreender as normas processuais a partir do direito fundamental à tutela jurisdicional e, assim, considerando as várias necessidades do direito substancial, dá ao juiz o poder-dever de encontrar a técnica processual idônea à proteção (ou à tutela) do direito material." [29]

A efetiva tutela jurisdicional é um aspecto da dignidade da pessoa humana, visto que, se o sistema confere direitos, esse mesmo sistema tem que conferir instrumentos para efetivá-los.

Nesse contexto, percebemos o Anteprojeto de Processos Coletivos, que, em seu artigo 3º determina que para a defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos são admissíveis todas as espécies de ações e provimentos capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela, inclusive os previstos no Código de Processo Civil e em leis especiais [30].

Ademais, a análise da causa de pedir e do pedido no anteprojeto mostra-se interessante. Eles serão, diferentemente do que ocorre no processo civil individual (art. 264, caput e parágrafo único, do CPC), interpretados extensivamente, de acordo com o bem jurídico a ser protegido, e podendo ser alterados até a prolação da sentença, desde que o requerimento seja realizado de boa-fé e não represente prejuízo injustificado à parte contrária.

Pode-se entender que esse é um aspecto do princípio da adequação. Importa lembrar que a doutrina visualiza esse princípio em dois momentos: no legislativo, como informador da produção das leis de procedimento e o processual, que permite ao juiz, diante do caso concreto, amoldar o procedimento de forma que melhor o adapte às peculiaridades da causa [31]. Nesse contexto, extremamente importante que o legislador atente para a natureza e paras as particularidades do objeto do processo, uma vez que "um procedimento inadequado ao direito material pode importar verdadeira negação da tutela jurisdicional" [32].

Nessa esteira, a ideia de se ter elaborado um Anteprojeto de Processos Coletivos coaduna-se com os princípios da adequação e da efetividade da tutela jurisdicional, haja vista tomar em consideração a natureza dos direitos em jogo. É dizer, um Código de Processos Coletivos garante uma tutela adequada à realidade de direito material.

Como ensina Marinoni quanto à adequação como imposição do direito fundamental à efetividade:

"A compreensão desse direito depende da adequação da técnica processual a partir das necessidades do direito material. Se a efetividade requer a adequação e a adequação deve trazer a efetividade, o certo é que os dois conceitos podem ser decompostos para melhor explicar a necessidade de adequação da técnica às diferentes situações de direito substancial." [33]

Um dos critérios objetivos de que se vale o legislador para adequar a tutela jurisdicional pelo procedimento é a natureza do direito material, impondo uma tutela mais efetiva, a exemplo do anteprojeto do Código de Processos Coletivos.

Novamente, Emerson Garcia e Robson Renault Godinho (MP/RJ) afirmam ser conveniente a reprodução do 84 do CDC ou do art. 461 do CPC, reforçando o compromisso com a tutela específica. [34]

Como já dito com relação ao princípio da adequação (no momento legislativo), o art. 5º, caput, também é exemplo de busca da efetividade ao prever que a causa de pedir e o pedido serão interpretados extensivamente, em conformidade com o bem jurídico a ser protegido. Esse dispositivo confirma a tese de que o art. 293 do CPC é incompatível com a proteção dos interesses e direitos massificados.

Deveras, o texto do Anteprojeto apresentado ao Ministério da Justiça representa um esforço de reunir, sistematizar e melhorar as regras brasileiras sobre processos coletivos, hoje existentes em leis esparsas, de modo a harmonizá-las e a conferir tratamento que se coaduna com a importância jurídica, social e política dos interesses e direitos transindividuais e individuais homogêneos, com vistas a sua aplicação mais límpida e correta, à superação dos obstáculos que surgem na prática legislativa e judiciária e à inovação na técnica processual, de forma a extrair a maior efetividade possível de relevantes instrumentos constitucionais de direito processual.

Assim é que o art. 8º prevê a comunicação pelo juiz ao Ministério Público e outros legitimados sobre processos repetitivos, a fim de que proponham, em sendo o caso, ação coletiva. Esse dispositivo confirma a tese de que a ação coletiva é de interesse social quando ajuizada para evitar a proliferação de ações individuais repetitivas.

O art. 10 determina que o juiz deverá dar prioridade no processamento do processo coletivo, servindo-se preferencialmente dos meios eletrônicos, demonstrando que a tutela dos interesses sociais, presentes nas ações coletivas, deve ser priorizada quanto ao seu processamento.

Esses exemplos convergem com os objetivos que devem inspirar a elaboração do Código Brasileiro de Processos Coletivos trazidos por Aluisio Gonçalves de Castro Mendes [35]:

"a) ampliação do acesso à Justiça, de modo que os interesses da coletividade, como o meio ambiente, não fiquem relegados ao esquecimento; ou que causas de valor individual menos significantes, mas reunidas representam vultuosas quantias, como os direitos dos consumidores, possam ser apreciados pelo Judiciário; b) que as ações coletivas representem, de fato, economia judicial e processual, diminuindo, assim , o número de demandas ajuizadas, originárias de fatos comuns e que acabam provocando acúmulo de processos, demora na tramitação e perda na qualidade da prestação jurisdicional: ao invés de milhões ou milhares de ações, sonhamos com o tempo em que conflitos multitudinários, como o ocorrido em torno dos expurgos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), possam ser resolvidos mediante uma única demanda e um único processo; c) com isso, as ações coletivas poderão oferecer, também, maior segurança para a sociedade, na medida em que estaremos evitando a prolação de decisões contraditórias em processos individuais, em benefício da preservação do próprio princípio da igualdade: o processo, sendo coletivo, servirá como instrumento de garantia da isonomia e não como fonte de desigualdades; e d) que as ações coletivas possam ser instrumento efetivo para o equilíbrio das partes no processo, atenuando as desigualdades e combatendo as injustiças praticadas no Brasil". [36]

Com efeito, outro exemplo do anteprojeto que tem por escopo esses objetivos tem relação com a legitimidade.

Para a tutela jurisdicional dos novos direitos (difusos, coletivos e individuais homogêneos), o legislador atual brasileiro escolheu a via da legitimação concorrente e autônoma, atribuindo a titularidade da ação ao Ministério Público, a outras entidades públicas e às associações pré-constituídas nos termos da lei civil e em funcionamento há pelo menos um ano – art. 82 -, mas com a possibilidade da dispensa do requisito da pré-constituição, ope judicis, quando se verifique um preponderante interesse social demonstrado pelas dimensões ou características do dano, ou pela relevância do bem jurídico protegido (parágrafo 1º). O cidadão não é legitimado às ações coletivas (mas continua sendo-o para a ação popular, nos termos da Constituição e da lei), entendendo-se que o portador em juízo dos interesses coletivos (lato sensu) supre, por natureza, às deficiências organizacionais dos titulares individualmente considerados, permitindo o acesso à justiça de amplos segmentos da população.

Observe-se que no anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos, o artigo 20 estipula uma legitimação muito mais ampla da que ocorre hoje. São legitimados concorrentemente à ação coletiva ativa [37]:

I)qualquer pessoa física, para a defesa dos interesses ou direitos difusos, desde que o juiz reconheça sua representatividade adequada;

II)o membro do grupo, categoria ou classe, para a defesa dos interesses ou direitos coletivos, e individuais homogêneos, desde que o juiz reconheça sua representatividade adequada;

III)o Ministério Público, para a defesa dos interesses ou direitos difusos e coletivos, bem como dos individuais homogêneos de interesse social;

IV)a Defensoria Pública, para a defesa dos interesses ou direitos difusos e coletivos, quando a coletividade ou os membros do grupo, categoria ou classe forem necessitados do ponto de vista organizacional, e dos individuais homogêneos, quando os membros do grupo, categoria ou classe forem, ao menos em parte, hipossuficientes;

V)as pessoas jurídicas de direito público interno, para a defesa dos interesses ou direitos difusos e, quando relacionados com suas funções, dos coletivos e individuais homogêneos;

VI)as entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, bem como os órgãos do Poder Legislativo, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos transindividuais e individuais homogêneos;

VII)as entidades sindicais e de fiscalização do exercício das profissões, restritas as primeiras à defesa dos interesses e direitos ligados à categoria;

VIII)os partidos políticos com representação no Congresso Nacional, nas Assembleias Legislativas ou nas Câmaras Municipais, conforme o âmbito do objeto da demanda, para a defesa de direitos e interesses ligados a seus fins institucionais;

IX)as associações civis e as fundações de direito privado legalmente constituídas e em funcionamento há pelo menos um ano (cujo requisito poderá ser dispensado pelo juiz), que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses ou direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, dispensadas a autorização assemblear ou pessoal e a apresentação do rol nominal dos associados ou membros.

Na defesa dos interesses ou direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, qualquer legitimado deverá demonstrar a existência do interesse social e, quando se tratar de direitos coletivos e individuais homogêneos, a coincidência entre os interesses do grupo, categoria ou classe e o objeto da demanda;

Em caso de inexistência do requisito da representatividade adequada, o juiz notificará o Ministério Público e, na medida do possível, outros legitimados, a fim de que, querendo, assumam a titularidade da ação.

Os membros do Ministério Público poderão ajuizar a ação coletiva perante a Justiça federal ou estadual, independentemente da pertinência ao Ministério Público da União, do Distrito Federal ou dos Estados, e, quando se tratar da competência da Capital do Estado ou do Distrito Federal, independentemente de seu âmbito territorial de atuação.

Será admitido o litisconsórcio facultativo entre os legitimados, inclusive entre os Ministérios Públicos da União, do Distrito Federal e dos Estados.

Assim, Emerson Garcia e Robson Renault Godinho, como representantes do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, sugerem permissão para que a pessoa física também possa defender direitos individuais homogêneos. Defendem também, no inciso terceiro, substituir "interesse" por "dimensão" e acrescentar, ao final do dispositivo, "ou quando a tutela coletiva mostrar-se relevante", a fim de otimizar a legitimidade do Ministério Público para a defesa dos direitos individuais homogêneos [38].

O inciso quarto prevê a legitimidade da Defensoria Pública, mas, segundo os referidos promotores de justiça, essa legitimidade deve ser balizada por seu perfil constitucional, que limita sua atuação à defesa dos necessitados. Dessa forma, sugerem a seguinte redação: "a Defensoria Pública, para a defesa dos interesses ou direitos coletivos e individuais homogêneos, na forma do artigo 134 da Constituição da República". Consequentemente, sugerimos que no art. 32 inclua-se a expressão "e, em caso de necessitados", antes de "defensorias públicas", o que também deveria constar do art. 40.

No inciso sétimo, os promotores preferem a extensão da restrição às entidades de fiscalização e substituição de "à categoria" por "a suas finalidades institucionais".

Quanto ao parágrafo quarto, acreditam ser melhor acrescentar-se a expressão "ou dimensão", após "características" e antes "do dano", na forma do artigo 82, §1º, do Código do Consumidor.

Por fim, a sugestão do Ministério Público no tocante ao parágrafo quinto é o acréscimo, em sua parte final, "inclusive entre os Ministérios Públicos", a fim de evitar discussões sobre essa possibilidade, em razão da revogação de dispositivos do Código do Consumidor e da Lei da Ação Civil Pública.

Resta observar, ainda, mas não com o intuito de esgotar o tema - o que seria impossível nessas breves linhas, não sendo, ademais, o escopo do presente trabalho – uma questão extremamente interessante do anteprojeto. A competência territorial, constante do artigo 22.

Na mesma linha de sugestões realizadas pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, através de seus ilustres representantes, Emerson Garcia e Robson Renault Godinho [39], entendem que a iniciativa de concentração da competência nas capitais não nos parece adequada. Não vislumbramos razão para esse monopólio da competência, já que os danos podem tocar mais de uma localidade, sem que haja qualquer relação com a capital. Exemplos: dano que atinja quatro comarcas do norte do Estado de Minas Gerais, que ficam a mais de mil quilômetros de Belo Horizonte. Nada justifica que não seja utilizada a regra da prevenção e que se desloque a competência para a capital do Estado.

No que se refere à concentração da competência no Distrito Federal, críticas semelhantes podem ser formuladas. Qual a ratio de se fixar tal competência no caso de danos que envolvam, por exemplo, os Estados da região norte do país? Ou os da região sudeste? Também não se justifica a concentração nas hipóteses de dano de âmbito nacional, sob pena de se transferir toda a atribuição para o Ministério Público do Distrito Federal e suprimir a atribuição dos Promotores Naturais.

Justifica-se a concentração dos processos, mas não o monopólio da competência, razão pela qual sugerimos a adoção ampla do critério da prevenção. Sugere-se a supressão dos incisos III e V. O inciso II passaria a ter a seguinte redação: "de qualquer das comarcas ou seções judiciárias, quando o dano for regional, aplicando-se no caso as regras de prevenção". O inciso IV (que passaria a ser o III) teria a seguinte redação: "de uma das capitais do Estado ou do Distrito Federal, quando os danos tocarem mais de uma unidade federativa ou tiverem âmbito nacional, aplicando-se no caso as regras de prevenção".

Quanto ao parágrafo primeiro, afirmam que o dispositivo dá eficácia definitiva ao descrito na petição inicial. Para evitar inconvenientes daí decorrentes, como tratamentos distintos a hipóteses submetidas ao mesmo fato, por equívoco da inicial, sugere-se a substituição de "indicada na petição inicial da demanda" por "sua real extensão". Já no parágrafo segundo, sugere-se a exclusão da parte final do dispositivo, que se encerraria com "foro competente". Imagina-se, ainda, um novo parágrafo: em razão de célebre divergência jurisprudencial, sugere-se a elaboração de parágrafo que resolva a questão do julgamento de matéria federal em local em que inexista seção federal, sugerindo-se a seguinte redação: "Caso o local do dano não seja sede de Seção Judiciária Federal, nas hipóteses que seriam de sua competência, será competente para o julgamento da causa o juiz estadual sediado na comarca".

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Sobre a autora
Debora Fernandes de Souza Melo

Advogada, Graduada pela PUC-Rio, Especialização em Direito Civil, Empresarial e Processo Civil pela Universidade Veiga de Almeida, Rio de Janeiro e especialização em Direito Processual: Grandes Transformações, pela Universidade do Sul de Santa Catarina, UnisulVirtual.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELO, Debora Fernandes Souza. A coisa julgada no anteprojeto do Código Brasileiro de Processos Coletivos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2246, 25 ago. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13388. Acesso em: 28 mar. 2024.

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