4. Da inconstitucionalidade superveniente da jurisdição federal delegada para as execuções fiscais da União
O art. 5º, da Lei nº 6.830/80 dispõe que a competência para processar e julgar a execução da Dívida Ativa da Fazenda Pública exclui a de qualquer outro juízo, inclusive o da falência, da concordata, da liquidação, da insolvência ou do inventário.
Por sua vez, o art. 578, do CPC, prescreve, in verbis:
"Art. 578. A execução fiscal (art. 585, VI) será proposta no foro do domicílio do réu; se não tiver, no de sua residência ou no do lugar onde for encontrado.
Parágrafo único. Na execução fiscal, a Fazenda Pública poderá escolher o foro de qualquer um dos devedores, quando houver mais de um, ou o foro de qualquer dos domicílios do réu; a ação poderá ainda ser proposta no foro do lugar em que se praticou o ato ou ocorreu o fato que deu origem à dívida, embora nele não mais resida o réu, ou, ainda, no foro da situação dos bens, quando a dívida deles se originar."
Em se tratando de execução de Dívida Ativa da União, a competência será da Justiça Federal da Circunscrição Judiciária do domicílio do réu, por força do art. 109, da CF/88.
Ocorre que, não havendo Vara Federal na localidade, a ação deverá ser proposta na Justiça Estadual, ex vi, do art. 109, § 3º, da CF/88 (súmula 40 do extinto TFR). Neste sentido, citamos lição de Leonardo José Carneiro da Cunha:
"Enfim, a competência será do juízo de Direito ou do juízo federal do foro do domicílio do executado. Se o devedor mantiver domicílio no interior, onde não haja juízo federal, a Fazenda Federal não deve ajuizar a execução em vara federal da capital do Estado correspondente. Nesse caso, a execução será proposta perante o juiz estadual da comarca do domicílio do devedor. O juiz estadual estará, na espécie, investido de competência federal, devendo os recursos que forem interpostos ser encaminhados ao Tribunal Regional Federal da Região que compreenda aquela comarca." (A Fazenda Pública em juízo. 5º ed., São Paulo: Dialética, 2007, p. 299)
Tal disposição legal e compreensão doutrinária devem ser consideradas levando-se em consideração o contexto da Justiça Federal na época em que editado o CPC e a CF/88.
Devemos ter em mente que nesta época não havia qualquer interiorização da Justiça Federal, que somente possuía varas nas capitais dos Estados. Isto, em um país de proporções continentais como o Brasil, obviamente justificava a jurisdição federal delegada, como forma mesmo de possibilitar: a) ao executado, o acesso a Justiça, com melhores condições de acesso aos autos, além de possibilitar o contraditório e ampla defesa; b) à União, uma efetividade do processo, tendo em vista que se restrita à Justiça Federal, todos atos processuais (citação, intimação pessoal, penhora, arresto etc) dependeriam de carta precatória, o que inviabilizaria a celeridade que se espera de um executivo fiscal, que visa arrecadar verbas públicas. Em síntese, a teleologia da norma referente à jurisdição federal delegada residia do devido processo legal em seu duplo aspecto, qual seja, a efetividade do processo e a defesa do executado (via embargos ou exceção de pré-executividade e, mesmo, porque imprescindível, a ciência acerca dos termos da execução fiscal em curso contra sua pessoa).
Ocorre que, hoje, conquanto em alguns Estados a realidade ainda seja a mesma, em outros, como em Santa Catarina, há considerável interiorização da Justiça Federal, contando com 17 Varas Federais em um espaço territorial pequeno, se considerado o contexto nacional.
Tratar-se de hipótese de inconstitucionalidade progressiva que, consoante escólio de Uadi Lammêgo Bullos é a que decorre da falta de implementação das estruturas normativas previstas na constituição. Merecem ser transcritos seus ensinamentos:
"Quando o legislador deixa de editar norma prioritária para o fiel cumprimento de preceito constitucional, sendo impossível utilizar os instrumentos de integração da ordem jurídica (equidade, analogia, princípios gerais do Direito, máximas da experiência), surge a inconstitucionalidade progressiva.
Nesse caso, os instrumentos de integração da ordem jurídica cedem em face do transcurso do tempo, compondo o cenário das chamadas situações constitucionais imperfeitas, que tendem para a inconstitucionalidade.
Essas situações constitucionais imperfeitas equivalem ao problema da lei ainda constitucional.
Elas não chegam a ser, num primeiro momento, inconstitucionais. Acontece, porém, que a falta de regulamentação de um dispositivo constitucional, ou seja, o comportamento negativo do legislador, acaba ocasionando o cancro da inconstitucionalidade progressiva.
Portanto, existe um estágio intermediário, de caráter transitório, entre a constitucionalidade e a inconstitucionalidade, algo jungido à inconstitucionalidade progressiva."(Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 83/84)
Denominada pelo Supremo Tribunal Federal como "norma ainda constitucional", que se configura quando estamos diante de situações constitucionais imperfeitas, que se situam entre a constitucionalidade plena e a inconstitucionalidade absoluta, nas quais as circunstâncias fáticas vigentes naquele momento justificam a manutenção da norma dentro do ordenamento jurídico. Cita-se como exemplo de dispositivo com "Inconstitucionalidade Progressiva" a lei 1060/50, art. 5º, parágrafo 5º, vejamos:
"§ 5° Nos Estados onde a Assistência Judiciária seja organizada e por eles mantida, o Defensor Público, ou quem exerça cargo equivalente, será intimado pessoalmente de todos os atos do processo, em ambas as Instâncias, contando-se-lhes em dobro todos os prazos. (Incluído pela Lei nº 7.871, de 1989)"
O STF entendeu no Habeas Corpus nº. 70514/SP que se justifica o prazo maior em razão de as Defensorias Públicas não estarem aparelhadas como o Ministério Público atualmente está. A inconstitucionalidade progressiva nesse caso consubstancia-se no fato de que a norma somente é constitucional enquanto a defensoria carecer de aperfeiçoamento e aparelhamento. No momento em que o objetivo for alcançado (por imposição da própria paridade de armas) instalar-se-á a inconstitucionalidade do dispositivo supracitado.
Outro exemplo de "inconstitucionalidade Progressiva" é o artigo 68 CPP, senão vejamos:
"Art. 68. Quando o titular do direito à reparação do dano for pobre (art. 32, §§ 1o e 2o), a execução da sentença condenatória (art. 63) ou a ação civil (art. 64) será promovida, a seu requerimento, pelo Ministério Público."
O Ministério Público defende que a atribuição de ingressar com a ação correspondente é da Defensoria Pública. No entanto, o STF decidiu mediante o RE 147.776, que enquanto não forem criadas Defensorias Públicas em todos os Estados da Federação o dispositivo continua constitucional, pois, caso contrário, o prejuízo será maior que o benefício. Dar-se-á a inconstitucionalidade progressiva, logicamente, quando a criação de Defensorias Públicas abranger todos os Estados.
A transcrição de julgados do próprio Supremo Tribunal Federal é essencial para compreensão do tema, in verbis:
"Direito Constitucional e Processual Penal. Defensores Públicos: prazo em dobro para interposição de recursos (§ 5 do art. 4 da Lei n 1.060, de 05.02.1950, acrescentado pela Lei n 7.871, de 08.11.1989). Constitucionalidade. "Habeas Corpus". Nulidades. Intimação pessoal dos Defensores Públicos e prazo em dobro para interposição de recursos. 1. Não é de ser reconhecida a inconstitucionalidade do § 5 do art. 1 da Lei n 1.060, de 05.02.1950, acrescentado pela Lei n 7.871, de 08.11.1989, no ponto em que confere prazo em dobro, para recurso, às Defensorias Públicas, ao menos até que sua organização, nos Estados, alcance o nível de organização do respectivo Ministério Público, que é a parte adversa, como órgão de acusação, no processo da ação penal pública. 2. Deve ser anulado, pelo Supremo Tribunal Federal, acórdão de Tribunal que não conhece de apelação interposta por Defensor Público, por considerá-la intempestiva, sem levar em conta o prazo em dobro para recurso, de que trata o § 5 do art. 1 da Lei n 1.060, de 05.02.1950, acrescentado pela Lei n 7.871, de 08.11.1989. 3. A anulação também se justifica, se, apesar do disposto no mesmo parágrafo, o julgamento do recurso se realiza, sem intimação pessoal do Defensor Público e resulta desfavorável ao réu, seja, quanto a sua própria apelação, seja quanto à interposta pelo Ministério Público. 4. A anulação deve beneficiar também o co-réu, defendido pelo mesmo Defensor Público, ainda que não tenha apelado, se o julgamento do recurso interposto pelo Ministério Público, realizado nas referidas circunstâncias, lhe é igualmente desfavorável. "Habeas Corpus" deferido para tais fins, devendo o novo julgamento se realizar com prévia intimação pessoal do Defensor Público, afastada a questão da tempestividade da apelação do réu, interposto dentro do prazo em dobro. (STF. HC 70.517/RS. Tribunal Pleno, rel. Min. Moreira Alves, DJU 27.06.1997)"
Assim, entendemos que se deva dar aplicação à inconstitucionalidade progressiva no caso do art. 578 do CPC, haja vista a amplitude teleológica do art. 109, § 3º, da CF/88. O art. 109, § 3º, da CF/88, tem fundamento histórico, impondo-se sua interpretação e aplicação com vistas à sua finalidade.
Conforme ensinado por Carlos Maximiliano "A interpretação é uma só; não se fraciona: exercita-se por vários processos, aproveita-se de elementos diversos". (Hermenêutica e Aplicação do Direito, 2° ed., Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 106.)
Neste diapasão, ante a impossibilidade de alterar, com intervalos breves, os textos positivos, adapta-se o Direito, pela interpretação, às exigências sociais imprevistas, às variações sucessivas do meio. O intérprete não cria prescrições, nem posterga as existentes; deduz nova regra, para um caso concreto, do conjunto das disposições vigentes, consentâneas com o progresso geral (método histórico-evolutivo de interpretação). Além disso, a construção do sentido da norma deve considerar o fim estimado pelo dispositivo e pelo Direito em geral (Rudolf Von Yhering – método teleológico) e as necessidades da sociedade contemporânea (Josef Kohler, na Alemanha; Francesco Degni e Nicolau Coviello, na Itália – método sociológico).
De fato, a construção de sentido da norma deve considerar tais critérios. Isto posto, trazemos à tona, novamente, como dito acima, que, quando elaborado tal dispositivo constitucional (art. 109, § 3º, da CF/88), o constituinte tinha em mente a situação fática da Justiça Federal da época, que se encontrava estabelecida somente nas capitais dos Estados-membros. Em suma, não havia interiorização da Justiça Federal.
Por óbvio, em Estados como Minas Gerais, Amazonas, Pará, restringir, nestas condições, o aforamento de execuções fiscais da União às Varas Federais existentes nas capitais seria fazer tábua rasa do contraditório e ampla defesa, indispensáveis a um processo devido, haja vista que o sujeito passivo (executado) teria sérias dificuldades de acesso aos autos e na oposição e acompanhamento de embargos do devedor (defesa).
Do mesmo modo, como no processo de execução fiscal o que se objetiva é o recebimento do crédito da União, mediante a expropriação de bens do devedor, caso os feitos tramitassem somente nas Varas Federais existentes em 1988, a grande maioria dos atos processuais teriam que ser realizados via carta precatória, enviada aos juízos estaduais do interior, por força do art. 200, do CPC ("Os atos processuais serão cumpridos por ordem judicial ou requisitados por carta, conforme hajam de realizar-se dentro ou fora dos limites territoriais da comarca"). Isto implicaria em morosidade da execução fiscal, o que contraria o interesse público e o espírito da legislação em vigor, já que até mesmo foi editada uma lei especial (Lei nº 6.830/80) com o escopo de criar um processo de execução mais célere para a Fazenda Pública.
Assim é que o art. 109, § 3º, da CF/88 não pode ser tido como um dispositivo solto, oco, desprovido de valor axiológico. Longe de ser um formalismo excessivo, considera-se inserto dentro do sistema constitucional e, mais especificamente, intrinsecamente ligado ao princípio do devido processo legal.
Sempre se fala em colisão entre o direito à efetividade do processo, da duração razoável do processo e seus consectários com o princípio da dignidade da pessoa humana, da menor onerosidade para o executado, contraditório, ampla defesa e outros deles decorrentes, todos eles decorrências do devido processo legal. Entretanto, no presente caso, temos a fusão das duas faces da moedas do devido processo legal (proteção do réu/executado e realização do direito do autor/exeqüente) a justificar o art. 109, § 3º, da CF/88.
Cremos que este caso demonstra que a Constituição possui regras que, finalisticamente, destinam-se a aplicação temporária, estando ínsita a elas a obrigatoriedade da União implementar maior acesso do cidadão à Justiça Federal.
Nem poderia ser de outro modo, porque as ações em que figuram como ré a União somente podem ser propostas na Justiça Federal. Então, como facilitar o acesso do executado aos autos das execuções fiscais e, ao mesmo tempo, restringir seu acesso à Justiça quando pretender figurar como autor de uma demanda proposta em face da União?
Confira-se novamente os termos do dispositivo constitucional em questão:
"Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
...
§ 3º Serão processadas e julgadas na justiça estadual, no foro do domicílio dos segurados ou beneficiários, as causas em que forem parte instituição de previdência social e segurado, sempre que a comarca não seja sede de vara do juízo federal, e, se verificada essa condição, a lei poderá permitir que outras causas sejam também processadas e julgadas pela justiça estadual."(g.n.)
Vê-se que a razão que animou o constituinte foi a garantia do cidadão, beneficiar-se em causas tão indispensáveis à vida e à saúde como as atinentes a benefícios previdenciários (primeira parte do dispositivo). Quando fala, em sua segunda parte, "verificada essa condição", impõe que esteja presente a situação prevista em sua primeira parte.
De toda sorte, a interiorização da Justiça Federal é medida imposta pelo princípio do acesso à Justiça, em âmbito federal, o que vem sendo implementado, conquanto em estágios distintos nos diferentes entes da federação.
Assim, quando maior interiorização da Justiça Federal, menor será a eficácia do dispositivo constitucional atinente à jurisdição federal delegada, até chegar ao ponto em que a norma do art. 578 do CPC afigurar-se-á totalmente inconstitucional.
Não quer dizer que todas as cidades com Vara da Justiça Estadual devam ser sede, também, de Vara da Justiça Federal, mas somente que haja uma tal interiorização que não comprometa o acesso à Justiça, e a possibilidade fática de um efetivo contraditório e ampla defesa.
Portanto, pugnamos que o reconhecimento desta inconstitucionalidade poderá se dar progressivamente e de forma autônoma em relação a cada Seção Judiciária (que engloba um Estado-membro), posto que em determinados Estados já se encontra suficientemente interiorizada a Justiça Federal.
5. Conclusões
Por tudo que se expôs no presente estudo, podemos, em breve síntese, concluir que:
a) As despesas processuais podem ser classificadas em custas, emolumentos e despesas em sentido estrito;
b) A União não está obrigada ao pagamento de custas e emolumentos quando atua na Justiça Federal, contudo, mesmo neste caso, deverá pagar antecipadamente as despesas em sentido estrito;
c) Quando a União atua na Justiça Estadual (em razão da chamada jurisdição federal delegada), o pagamento das custas e emolumentos se impõe, entretanto, não lhe pode ser exigido o pagamento antecipado, pois, à luz dos arts. 27 e 1.212, parágrafo único, do Código de Processo Civil, c/c art. 39, da Lei nº 6.830/80 (Lei de Execuções Fiscais), somente devem ser pagas por ela ao final do processo, na hipótese de restar vencida na demanda;
d) A chamada jurisdição federal delegada gera ônus para a Justiça dos Estados-membros, em razão mesmo do regime das despesas processuais que se aplica à hipótese em questão;
e) A jurisdição federal delegada se justifica por razões finalísticas e históricas, ou seja, tem por escopo a efetividade processual (âmbito do credor) e a garantia de acesso à Justiça (âmbito do devedor), na verdade, corolários de um devido processo legal constitucionalmente exigido;
f) Os dispositivos que previram a competência da Justiça Estadual para matérias afetas à União (jurisdição federal delegada) devem ser interpretados considerando o contexto histórico em que concebidos. Neste sentido, o motivo que os justifica é a falta de interiorização da Justiça Federal;
g) No contexto nacional, em que se verifica grande disparidade na realidade econômica, social e cultural e – o que nos importa – da interiorização da Justiça Federal, podemos constatar que, em determinadas regiões, não se justifica mais a anômala competência da Justiça Estadual para feitos que, originariamente, seriam afetos à Justiça Federal;
h) Trata-se de hipótese de inconstitucionalidade superveniente. Em razão da evolução da realidade fática, o art. 578 do CPC, tende a se tornar inconstitucional, de acordo com o espírito do art. 109, § 3º, da CF/88. A inconstitucionalidade, consequentemente, implicará na extinção da jurisdição federal delegada.