4 Garantismo e criminologia crítica
Em maio de 2009 divulgou-se notícia referente à manifestação contundente de Cezar Roberto Bitencourt no seguinte sentido [16]:
O problema da segurança está basicamente na falta de investimentos e de prioridade dessa área na agenda política do País. A afirmação é do conselheiro federal da Ordem dos Advogados do Brasil pelo Rio Grande do Sul, Cezar Roberto Bitencourt, criminalista respeitado em todo o País. Ele considera até uma ironia quando autoridades dizem que é necessário combate ao crime organizado. "O crime organizado está hoje nos palácios - já não está mais nem nos porões dos palácios como antes - e o que está aí nas ruas é o crime desorganizado comandando a sociedade organizada", afirmou. Ele sugeriu que dessa tarefa de combate, além dos poderes constituídos, participem ativamente a mídia, as ONGs e toda a sociedade civil brasileira. (grifos nossos)
Já mencionamos que Ferrajoli entende que a criminalidade organizada deve ser o principal alvo da persecução penal racional. Aqui não se trata, deixa-se claro, de combatê-la sem garantir aos investigados, acusados e condenados as prerrogativas que se inserem no âmbito do Sistema Garantista; mas sim de priorizar, dentro de uma opção político-criminal, o combate a referida modalidade de criminalidade.
Parece-nos, portanto, que dentre os pensadores de escol não há divergência quanto a necessidade de priorizar o combate ao crime de elevada escala, o que inevitavelmente se choca com certos níveis de poderes constituídos. Isto porque todo crime, para ser organizado (tanto sob o ponto de vista intrínseco quanto extrínseco – considerando, neste último aspecto, o sucesso normalmente evidenciado pelo acúmulo de riquezas) prescinde de alianças com poderosos, isto quando os próprios criminosos não assumem, pessoalmente, as mais altas esferas de poder.
Alessandra Baratta, em sua formulação criminológica crítica também comunga do entendimento de que as normas repressivas devem se voltar, prioritariamente, ao crime organizado, que se identifica com membros das mais altas classes sociais. Nesse aspecto, muito bem sintetiza o pensamento de Baratta, o professor Juarez Cirino dos Santos [17], prefaciando a tradução para o Brasil da obra clássica daquele intitulada "Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal – Introdução à Sociologia do Direito Penal":
Apesar do estado embrionário da teoria materialista do desvio, dos comportamentos socialmente negativos e da criminalização, Baratta afirma que as teses da criminologia crítica podem fundamentar um programa de política criminal alternativa – que não se confunde com política penal alternativa.
[…] A linha principal de uma política criminal alternativa se basearia na diferenciação da criminalidade pela posição social do autor: ações criminosas das classes subalternas, como os crimes patrimoniais, por exemplo, expressariam contradições das relações sociais de produção e distribuição, como respostas individuais inadequadas de sujeitos em condições sociais adversas; ações criminosas das classes superiores, como criminalidade econômica, dos detentores do poder, ou crime organizado, exprimiriam a relação funcional entre processos políticos e mecanismos legais e ilegais de acumulação de capital. Essa diferenciação fundamentaria orientações divergentes: por um lado, redução do sistema punitivo mediante despenalização da criminalidade comum e substituição de sanções penais por controles sociais não-estigmatizantes; por outro lado, ampliação do sistema punitivo para proteger interesses individuais e comunitários em áreas de saúde, ecologia e segurança do trabalho, revigorando a repressão da criminalidade econômica, do poder político e do crime organizado. (grifos nossos)
A criminologia crítica é absolutamente congruente com o garantismo. As duas doutrinas reafirmam a necessidade de diminuição de injustiças sociais, lançando olhos principalmente sobre os desfavorecidos sócioeconomicamente. Ambas trabalham com uma noção de poder dominante, diante do qual é necessário se impor restrições.
Nesse sentido afirma Miriam Guindani [18]:
O garantismo tem sido pensado e elaborado como uma crítica forte ao direito penal, em suas formulações tradicionais, demonstrando a subordinação dessas formas tradicionais de pensar e agir aos mecanismos de opressão social.
Não é por acaso que alguns dos principais pensadores do garantismo penal são oriundos da criminologia crítica (Baratta, 1997; Carvalho,2001; Zaffaroni, 1997). Mesmo havendo diferenças com o marxismo, autores como Melosso & Pavarini (1996) ou L. Wacquant (2001), com a sociologia crítica de um autor como David Garland (1999) e com a visão mais extremada de um Michel Foucault (1979) ou L.Houlsman(1996), o fato é que o garantismo, provavelmente mais do que qualquer outra perspectiva de pensamento sobre política criminal, absorveu ou, pelo menos, dialogou e dialoga, sobretudo na América Latina, na França e na Itália, com os estudiosos que denunciam o comprometimento do direito penal e das políticas criminais com as desigualdades, a dominação de classe, a exclusão da cidadania, a discriminação, a estigmatização, a construção social das carreiras criminais, a criminalização das "classes perigosas" e a marginalização e o controle dos grupos sociais mais vulneráveis. (Grifos nossos)
No Brasil, esse poder dominante, em grande parte das vezes se confunde, se alia, com a criminalidade. E, o que é mais preocupante, encontra no garantismo penal (em sua forma distorcida) argumentos para neutralizar a ação estatal no combate a infrações penais que justamente impedem políticas públicas de redução das disparidades sociais (note-se, por exemplo, a deficiente repressão de crimes tributários e de corrupção, que sangram dos cofres públicos recursos significativos que poderiam ser aplicados em políticas públicas na área social).
Aliás, como bem observou Manuella Mazzocco [19], quando ainda estava se sedimentando jurisprudência impeditiva da persecução penal em matéria de crimes tributários enquanto não exaurida a instancia administrativa, os fatos recentes apenas reforçam as conclusões da criminologia crítica de que o Direito Penal serve apenas para reprodução do poder das classes dominantes.
Eis um trecho das colocações da articulista:
Embora a matéria tratada seja objeto de muita polêmica – de um lado a doutrina tributarista e os interesses político-econômicos dos "senhores do momento" [01], e de outro os defensores da titularidade exclusiva do Ministério Público para propor a ação penal nos crimes contra a ordem tributária – entendo que a posição tomada pelo Supremo no julgamento do HC 81.611-8, longe de traduzir aspectos jurídico-filosóficos da teoria do direito penal, reforçou a tese defendida pela criminologia crítica de que o sistema punitivo está organizado com o objetivo de defender a classe dominante.
Essa tendência do Direito Repressor brasileiro também é observado por Lélio Braga Calhau [20] em artigo sobre vitimologia, quando afirma que o Direito Penal:
Não pode ser apenas um instrumento de opressão das classes dominantes, servindo de função simbólica para o Congresso nacional, mas também não pode evadir de sua responsabilidade de proteção da sociedade civil, como instrumento de ultima ratio. A posição de equilíbrio entre o réu e a vítima deve ser buscada. Com certeza será difícil de ser determinada, mas não deve ser abandonada, pois a sociedade é uma sociedade de vítimas (não de réus).
Em derradeiro, cabe assentar que a aplicação do garantismo no Brasil, mais do que em países europeus, de onde se origina, deve levar em consideração aspectos da criminologia crítica, sob pena de apenas servir como legitimação teórica para injusta reprodução do poder arbitrário ainda em parte dominante.
5 As consequências do desequilíbrio entre os dois aspectos do garantismo
O desequilíbrio entre os dois aspectos do garantismo penal causa anomalias no sistema penal que podem levar ao caos.
Se há excessos no exercício do poder, subjugando os destinatários do Direito Repressor, a tendência é que a dignidade da pessoa humana seja vilipendiada em nome dos sempre declarados "interesses do Estado". Isso normalmente serve a um grupo delimitado de pessoas, em geral circundantes ao centro do núcleo burocrático estatal. Está evidente essa prática nos Estados tirânicos, ditatoriais. Nesse modelo, o poder político prepondera e determina a força dos outros poderes; ou seja, de nada ainda ter projeção social e econômica, visto que todos esses aspectos são regulados pelo Estado.
As experiências de excessos são muitas na história; e até hoje ainda se reproduzem em vários contextos sociais.
Essa constatação levou a uma reação que vem se construindo há séculos, desaguando na referencial obra de Ferrajoli.
Hoje, portanto, os países chamados evoluídos avançam no sentido de tentar minimizar o poder estatal, e maximizar a proteção dos direitos individuais.
Ocorre, todavia, que tal como ocorreu em vários episódios do passado, tenta-se distorcer uma doutrina construída com os mais nobres ideais. Isso é evidente aqui no Brasil.
Essa distorção, conforme já alertado por alguns juristas (infelizmente, ainda poucos), pode conduzir a uma situação de proteção insuficiente outorgada pelo Estado aos particulares. Isso já foi percebido, por exemplo, na Alemanha, segundo noticiado na doutrina pátria, que rechaçou tentativas de que, a pretexto de combater excessos, se ingressasse na esfera de violação ao dever de proteção do Estado, reconhecendo-se assim o princípio da proibição da proteção deficiente (decorrente do próprio dever de proteção do Estado), segundo bem enfatiza Maria Luiza Schafer Streck:
Grimm explica que "enquanto os direitos fundamentais como direitos negativos protegem a liberdade individual contra o Estado, o dever de proteção derivado desses direitos destina-se a proteger indivíduos contra ameaças e riscos provenientes não do Estado, mas sim de atores privados, forças sociais ou mesmo desenvolvimentos sociais controláveis pela ação estatal". Ele afirma que hoje, na Alemanha, os deveres de proteção são considerados a contraparte da função negativa dos direitos fundamentais. (grifos nossos)
No Brasil, onde ainda está se construindo as bases de um sistema efetivamente garantista, a discussão sobre o dever de proteção do Estado em matéria penal ainda é inexpressiva. O grande desafio, nesse aspecto, é de tentar, concomitantemente, incorporar ao sistema preceitos garantistas e protetivos; o que parece missão extremamente difícil.
Hoje o sistema penal brasileiro vive uma crise. O crime cresce, insinuando poderes de Estado paralelo.
A doutrina garantista apenas é lembrada, na maioria das vezes, quando está em jogo a punição de alguém cujo poder se confunde (elevadas autoridades dos três poderes), ou se compara (grandes empresários) com o do Estado. As prisões, segundo é empiricamente perceptível (independentemente de qualquer levantamento estatístico), ficaram reservadas apenas para os menos aquinhoados. Instalou-se, portanto, um sistema que reflete o modelo daquele combatido pela criminologia crítica: a punição é somente para as classes estigmatizadas da sociedade.
Com a evolução do garantismo, aplicado às lides com especial trato pela jurisprudência e pela legislação, e diante dos princípios da isonomia e da igualdade, foi inevitável se conceder alguns pequenos avanços no sentido de garantir uma persecução penal mais equilibrada para os criminosos de classes mais baixas, geralmente responsáveis, no Brasil, pelos crimes mais violentos; e que são, por via de conseqüência, os principais destinatários das normas penais simbólicas regularmente editadas pelo legislativo.
Ocorre que, segundo demonstrado na criminologia crítica, a criminalidade de favela é produto, predominantemente, de condicionantes sócioeconômicas. Deve ser combatida sim, porém exige também um trabalho estatal paralelo no sentido de reduzir as desigualdades que lhe fomentam.
Quanto à criminalidade de elevado status, tanto os preceitos do garantismo quanto da criminologia crítica dão suporte à interpretação de que ela deve ser prioritariamente combatida, e com medidas eficazes.
No Brasil, esse combate é muito reduzido. Daí se identificar uma nova face do garantismo que se tenta construir em nosso direito interno; no qual a pseudopreocupação garantista se situa mais no plano do Direito adjetivo do que no plano do Direito substantivo.
Nesse ponto, as grandes reivindicações de adoção de práticas garantistas se situam mais no âmbito do Direito Processual Penal.
Os temas são recorrentes: prisão provisória, uso de algemas, intercepção telefônica, quebra de sigilo bancário, cumprimento de mandados de busca e apreensão etc. O aspecto material está sendo deixado para segundo plano, assim como o da execução penal (que é, sem dúvida, a vertente mais problemática do Direito Repressor pátrio).
Esse fenômeno, segundo se pensa, não é por acaso.
Partindo da criminologia crítica, e com base na sociologia jurídica, sabe-se que o poder dominante jamais busca rupturas, mas sim luta para se reproduzir.
Se hoje é cediço que o Estado quase nunca consegue uma condenação das pessoas poderosas, apesar de penas fixadas em lei para os crimes que lhes são típicos, é óbvio que a tendência dos mesmos é priorizar lutas no sentido de fragilizar o processo penal, que é o mecanismo, no Estado Democrático de Direito, através do qual se pode conseguir uma condenação e, consequentemente, uma execução penal.
Por tal razão, segundo pensamos, é que a prioridade supergarantista (não se confunda o supergarantismo com o garantismo idôneo) hoje não é o Direito material, nem tampouco a execução penal. Se poderoso não é condenado nem vai preso, a luta é para que as coisas continuem dessa maneira; e para isso o front tem que se situar no âmbito do Direito Processual.
Desse modo, como se percebe nessa breve análise, o garantismo no Brasil corre sérios riscos de ser totalmente desfigurado.
É claro que a grande maioria dos juristas é bem intencionada quando defende os ideais de Ferrajoli. Ademais, é inevitável não render homenagens ao brilhante trabalho que representa a Teoria do Garantismo Penal. Infelizmente, suas teses idealistas, contudo, em grande parte das vezes servem para fomentar inovações que no cotidiano são depuradas no sentido ter aplicação de única via. Assim, para os pseudogarantistas a preocupação da transposição, através de práticas diversas, dos limites da proibição da proteção deficiente, sob o argumento de construção de um Sistema Garantista, é uma máxima que se apresenta como urgente.
Blindar pessoas ou grupos sociais da atuação repressiva do Estado não é um dos objetivos do garantismo; assim como não é eliminar a força de atuação do Direito Penal; pois se isso ocorrer, restará patente a inviabilidade do poder organizado cumprir uma de suas principais funções: dar segurança aos particulares; o que poderá levar a uma situação de retorno à vingança privada [21], pois se o Estado não consegue dar proteção nem repelir as injustas agressões, crescerá na sociedade civil a sensação de que cada um tem que autotulear seus direitos, inclusive no âmbito repressivo. Isso já é sentido hoje no Rio de Janeiro com a criação das chamadas milícias; que redundam em atividade criminosa altamente perniciosa que somente é possível surgir diante da omissão do Estado no seu dever de proteção.
Nesse andar, apesar de todas as dificuldades apontadas, é necessário que se encontrem urgentes alternativas para fazer com que convivam harmonicamente o garantismo e o dever de proteção, cada um servindo de baliza para o outro, balanceando assim os aspectos positivos e negativos do garantismo penal.