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Emendas inconstitucionais

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01/07/1999 às 00:00
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IV. EMENDAS INCONSTITUCIONAIS

Como visto, as matérias tratadas em atos normativos previstos dentro da produção legislativa constitucional (processo legislativo) têm a sua previsibilidade material e formal (ou processual) em âmbito da própria Constituição, por uma delegação do Poder Constituinte originário ao Poder Constituinte derivado.

Para o desenvolvimento do nosso trabalho, interessa-nos o âmbito material a ser tratado em sede de emenda constitucional, que o legislador constituinte originário previu como um processo de modificação, única e exclusivamente, do texto constitucional, sem que nela fosse permitido tratar de outro ou qualquer assunto correlato à finalidade a que se destina essa produção de ato normativo.

Do mesmo jeito que as matérias a serem tratadas em lei complementar não podem ser tratadas em sede de lei ordinária (e vice-versa), assim também as matérias a serem tratadas por lei ordinária ou lei complementar não pode ser tratadas em sede de emenda constitucional.

A diferença entre esses atos normativos reside no âmbito material e no quorum predeterminado constitucionalmente para essas produções legislativas. Quando o constituinte originário quis, deixou expressamente designado o âmbito material das leis complementares. Assim como os da emenda constitucional.

CELSO BASTOS (12), ao tratar das espécies normativas, a serem elaboradas de acordo com a previsibilidade constitucional, assim se manifesta:

"Não existe hierarquia entre as espécies normativas elencadas no art. 59 da Constituição Federal. Com exceção das Emendas, todas as demais espécies se situam no mesmo plano.

A lei complementar não é superior à lei ordinária, nem esta é superior à lei delegada, e assim por diante.

O que distingue uma espécie normativa da outra são certos aspectos na elaboração e o campo de atuação de cada uma delas.

Lei Complementar não pode cuidar de matéria de lei ordinária, da mesma forma que lei ordinária não pode tratar de matéria de lei complementar ou de matéria reservada a qualquer outra espécie normativa, sob pena de inconstitucionalidade.

De forma que, se cada uma das espécies tem o seu campo próprio de atuação, não há falar em hierarquia. Qualquer contradição entre essas espécies normativas será sempre por invasão de competência de uma pela outra. Se uma espécie invadir o campo de atuação de outra, estará ofendendo diretamente a Constituição. Será inconstitucional."

Ao excetuar as emendas constitucionais do plano normativo previsto constitucionalmente, os constitucionalistas admitem que esse tipo de norma presta-se, única e tão-somente, à modificação do texto constitucional, sem que regulamente a sua modificação, descendo a conteúdo normativo ordinário.

Para que entendamos perfeitamente esta lição, recorremos aos ensinamentos de outro não menos renomado doutor em direito constitucional da PUC, Prof. MICHEL TEMER (13), e atual Presidente da Câmara dos Deputados. Eis o que preleciona, a respeito, o constituinte derivado:

"(...) o constituinte estabelece documento que é sintético. São as sumas, são as vigas mestras do sistema. O desdobramento para o cumprimento da Constituição deve ser observado pelo legislador infraconstitucional. Portanto, num sentido amplo, todas as leis, todas as espécies normativas são complementares à Constituição. Isto é, se os limites constitucionais não forem obedecidos, não podem ingressar no sistema. Assim, quando se diz complementar - em sentido lato - significa desdobramento de norma constitucional.

Mas o constituinte criou espécie determinada e a rotulou de lei complementar."

Como bem assinala MEIRELLES TEIXEIRA (14):

"Qualquer desvio, do legislador ordinário, destes como de outros limites negativos ou positivos, estabelecidos pela Constituição, equivalerá a um vício de inconstitucionalidade da lei, ou do ato da Administração, eventualmente baseado nessa lei inconstitucional."

E, mais adiante, arremata:

"Determinando, destarte, limites rigorosos à ação dos próprios Parlamentos, bem como da Administração, a Constituição rígida reforça o princípio da legalidade, erigindo-se numa superlegalidade, ou numa legalidade reforçada, na expressão de Barthélemy-Duez, que coloca as normas e soluções constitucionais acima da instabilidade política, da inconstância, das paixões e dos interesses do momento, ou mesmo da ação meramente irrefletida ou apressada do legislador ordinário, erigindo-se como já reconhecia Duguit, "em proteção poderosa em favor do indivíduo, contra o arbítrio legislativo, sob a condição indispensável de que existam tribunais fortemente organizados, cuja independência e capacidade estejam acima de toda suspeita e que tenham o poder de recusar-se a aplicar toda e qualquer lei que reputem contrária à Constituição".

Recentemente - à semelhança do que já vinha fazendo com o beneplácito de todos, o constituinte derivado achou por bem dispor, nas Emendas Constitucionais nºs. 19 e 20, de dispositivos complementares às emendas propostas ao corpo da Carta Política Federal, minudenciando os assuntos ali contidos e modificadores do texto constitucional.

Tal prática vem se verificando desde a EC nº 2, de 1992, que dispôs sobre o plebiscito previsto no art. 2º do ADCT e realizado a 21 de abril do ano seguinte, tratando, em sede de emenda constitucional, de matéria infensa ao seu objetivo, e tratável a nível de legislação infraconstitucional regulamentadora do assunto.

Pior, nota-se que apesar de ter sido modificada a data da realização daquele exercício constitucional de cidadania para o dia 21 de abril de 1993, o texto constitucional permaneceu inalterado, prevendo o dia 7 de setembro de 1993, como aquele para a realização da consulta plebiscitária, sem que a EC nº 2, de 1992, o modificasse formal e substancialmente, regulando, em §§ o único artigo com que foi editada, constituindo-se numa verdadeira aberração legislativa.

Foi assim, também, com a de nº 3/93, regulamentando nos artigos 2º ao 5º, a matéria tratada materialmente por aquele espécie normativa, e com a de nº 17/97, nos arts. 3º ao 5o, nesta, inclusive, retroagindo os efeitos de sua aplicabilidade, ao tratar do Fundo Social de Emergência, a ser previsto na lei orçamentária da União.


CONCLUSÃO

Ora, essas "caudas" legislativas inseridas nas "emendas constitucionais", sempre trarão sérios prejuízos aos administrados, assim como aos entes federativos da República, na medida em que estes arcarão com as despesas de um sistema imposto de fora para dentro.

Exemplo desse prejuízo é o que advirá com a aplicabilidade do disposto no art. 6º, da EC 20/98, com a fixação da alíquota de contribuição do Poder Público semelhante à da contribuição da iniciativa privada.

Assim, o lapidar ensinamento do mestre JOSÉ AFONSO DA SILVA (15) é no sentido de que:

"Toda modificação constitucional, feita com desrespeito do procedimento especial estabelecido (iniciativa, votação, quorum, etc.) ou de preceito que não possa ser objeto de emenda, padecerá de vício de inconstitucionalidade formal ou material, conforme o caso, e assim ficará sujeita ao controle de constitucionalidade pelo Judiciário, tal como se dá com as leis ordinárias."

É de se entender aqui que os preceitos excluídos das modificações a serem processadas no texto constitucional, por intermédio de "emendas" não serão somente aqueles vedados pelo § 4º do art. 60, da al Carta Política, mas sim, também, toda matéria estranha à sede dessa produção legislativa, daí porque podemos concluir que toda emenda constitucional que inclua no seu conteúdo disposições de legislação infraconstitucional regulamentando o mérito do texto a ser modificado, padece da eiva de inconstitucionalidade material e formal. Material porque estabelece dispositivos regulamentadores não inseridos no texto constitucional; e formal porque trata de matéria regulamentadora cujo quorum não é o qualificado para ser tratado em sede de emenda constitucional, previsto constitucionalmente pelo constituinte originário.

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Ora, se toda norma contida nos "direitos e garantias individuais" do Título II, que trata DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS da Carta Política de 88 (arts. 5º ao 17), está albergada pela sua intocabilidade via emenda constitucional - segundo previsibilidade do art. 60, § 4º, IV, do corpo permanente da Lei Fundamental - por que então o rabilongo art. 3º, assegurou o direito adquirido daqueles que já haviam completado o tempo necessário para aposentadoria, com base na legislação infraconstitucional anterior à edição do "emendão", se este já está assegurado pelo disposto no art. 5º, XXXVI, da Constituição ?

Obviamente foi para dar a impressão, aos desavisados, de que as normas contidas no texto excedente às emendas propostas teriam força constitucional, quando, na realidade, não as têm.

Aliás, diga-se de passagem, que esse texto resultou de "emenda aglutinativa" aprovada pela Câmara dos Deputados e reafirmada pelo Senado da República, depois de ter sido rejeitada pela Câmara Popular.

Em seu voto, como Relator, na ADIn nº 466, o Ministro CELSO DE MELLO, assim deixou consignado:

"Emendas à Constituição - que não são normas constitucionais originárias - podem, assim, incidir, elas próprias, no vício da inconstitucionalidade, configurado pela inobservância de limitações jurídicas superiormente estabelecidas no texto constitucional por deliberação do órgão exercente das funções constituintes primárias ou originárias".

Prelecionando acerca da observância do processo legislativo, MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO (16) não descura a possibilidade do seu controle jurisdicional dizendo que "(...) A violação de preceito constitucional, mesmo de caráter estritamente formal, importa em inconstitucionalidade, e, portanto, seguindo a doutrina clássica, em nulidade do ato violador."

Qualquer administrado, pessoa jurídica de direito público ou ente federativo, que se ache atingido, em seus direitos ou prerrogativas, pelas normas "caudalosas" contidas em emendas constitucionais, poderá recorrer ao Poder Judiciário para que seja restabelecido o seu direito, tentado subtrair por força da pior ditadura que pode existir, que é a ditadura do direito.

Os prepotentes e arbitrários, que se julgam acima da Constituição e das leis, pretendem escravizar o povo através da arma que o próprio povo lhes outorgou - que é o de legislar em seu benefício, sem quebrar a segurança jurídica. Quebrada a segurança jurídica, restará somente desestabilizar o Judiciário para que se termine com o último escudo contra os golpes que eles nos intentarem.


NOTAS

1. Daniel Coelho de Souza, Int. à Ciência do Direito, Saraiva, 5ª ed., 1988, p. 47.

2. Princípios Gerais do Direito Constitucional Moderno, p. 60

3. Curso de Direito Constitucional Positivo, 15ª ed., 1998, Malheiros.

4. Ob. cit. p. 48.

5. Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 32 (Ob. cit. nota de rodapé)

6. Ob. cit. p. 49.

7. Curso de Direito Constitucional, Forense Universitária, 1a ed., 1991.

8. Processos informais de mudança da constituição, Max Limonad, 1986.

9. Mutação constitucional, Saraiva, 1997.

10. Ob. cit., p. 115.

11. Ob. cit. p. 127.

12. Curso de Direito Constitucional, Saraiva, 18a ed., 1997, p. 355.

13. Elementos de Direito Constitucional, RT, 7ª ed., p. 149.

14. Ob. cit. p. 126.

15. Ob. cit. p. 70.

16. Do Processo Legislativo, 3ª ed., Saraiva, 1995, p. 243.

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Sobre o autor
José Maria de S. Martínez

advogado em Belém (PA), técnico em assessoramento legislativo da Assembléia Legislativa do Estado do Pará

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTÍNEZ, José Maria S.. Emendas inconstitucionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 33, 1 jul. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/138. Acesso em: 26 abr. 2024.

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