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Abuso dos tratados contra a dupla tributação internacional

16/11/2009 às 00:00
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Sumário: 1 - Introdução; 2 - Treaty Shopping; 3 – Rule Shopping; 4 – Conclusão.

Resumo: Trata-de de capítulo extraído da monografia intitulada "CONSEQÜÊNCIAS NEGATIVAS DA PLURITRIBUTAÇÃO INTERNACIONAL: TRATADOS INTERNACIONAIS COMO SOLUÇÃO BILATERAL PARA A QUESTÃO", apresentado pelo autor como exigência para a conclusão do curso de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS, com as devidas alterações, versando sobre o abuso dos tratados internacionais sobre a dupla tributação internacional, especificamente abordando as figuras do treaty shopping e rule shopping.

Palavras-chaves: tratados; abuso; dupla; tributação; treaty shopping.


1- Introdução

Ao tratar sobre a temática de abuso dos tratados internacionais sobre a dupla tributação internacional deve-se entender que se trata de uma modalidade de abuso de direito. Ao buscar a definição de abuso de direito no Direito brasileiro, remete-se especialmente ao artigo 187 do Código Civil de 2002, que prescreve que "Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes". [01]

Já no plano internacional resta de difícil entendimento o significado de abuso de direito, porquanto não há um conjunto normativo que o defina, restando aos ordenamentos domésticos, que por vezes diferem entre si, a tarefa de fazê-lo ao caso concreto. Inobstante referida dificuldade, é certo que o exercício do direito que contrarie a boa-fé e o propósito almejado pela norma, independente da forma, é considerado no âmbito internacional como formas de abuso de direito.

Retomando a análise pontual do abuso dos tratados sobre o fenômeno impositivo tributário, se percebe algumas características que geram sua constituição, tais como uma violação indireta da Convenção ou um comportamento contrário aos objetivos e propósitos do tratado, ou a esquiva das regras naquele contidas, sendo que o Departamento de Assuntos Econômicos e Fiscais das Nações Unidas concluiu que se trata, na maior parte, de uma nítida questão de interpretação – quem seriam os efetivos beneficiários do tratado tributário firmado. [02]

Dentre as formas de abuso de tratados internacionais sobre a dupla tributação, destacam-se duas figuras de maior relevância: o treaty shopping e o rule shopping.


2- Treaty Shopping

O treaty shopping constitui o modo mais corrente de abuso dos tratados, e ocorre quando:

com a finalidade de obter benefícios de um acordo de bitributação, um contribuinte que, de início, não estaria incluído entre seus beneficiários, estrutura seus negócios, interpondo, entre si e a fonte do rendimento, uma pessoa ou um estabelecimento permanente, que faz jus àqueles benefícios. [03]- [04]

Tavolaro explica a origem da terminologia adotada, expondo que se baseia na similitude do chamado forum shopping do direito norte-americano, que consiste na busca do tribunal, pela parte, que lhe parece mais favorável a atender sua pretensão judicial. [05]

A figura do treaty shopping costuma se manifestar por meio de duas condutas dos contribuintes, isto é, as chamadas empresas canais (conduit companies) e as empresas trampolins (stepping stone companies). [06]

A situação das empresas canais pode ser mais bem entendida com um exemplo. Suponha que uma empresa sita no Estado "A" mantenha operações no Estado "B", onde não há nenhuma convenção sobre a pluritributação internacional, sendo que a taxação total em ambos os países, por certas categorias (dividendos, juros, royalties etc), totalize 25% sobre este valor. Contudo, o Estado "C" firmou tratados tributários tanto com o Estado "A", quanto com o Estado "B", sendo que as mesmas operações realizadas pela aludida empresa nos Estados "A" e "B" seriam tributadas, devido aos benefícios dos tratados celebrados, a 10% entre os Estados "A" e "C", e a 8% entre os países "B" e "C". Desta sorte, a empresa em comento instituiria uma empresa subsidiária no Estado "C", praticando as mesmas operações primeiramente entre "A" e "C", e posteriormente entre "C" e "B", totalizando uma tributação de 18%, tendo assim se beneficiado com os benefícios concedidos pelas convenções celebradas por países os quais não era beneficiária.

O caso das stepping stones companies, por sua vez, pode ocorrer quando uma empresa sita no país "A", que não possui acordos internacionais nem com o país "B", nem com o "C", efetua um empréstimo a sua subsidiária localizada no país "C". Ocorre que os países "B" e "C" possuem tratados que isentam a tributação de juros decorrentes de empréstimo devidos pelos residentes de "B" ao Estado "C". Assim, o empréstimo obtido pela empresa subsidiária no Estado "C" é novamente transferido sob forma de empréstimo a outra subsidiária no Estado "B". Desta forma os juros devidos pela empresa em "B" à empresa em "C" serão isentos. Como a empresa em "C" não terá nenhuma espécie de lucro a não ser os juros recebidos, também não terá tributação sobre sua renda. Desta forma a empresa principal localizada em "A" pode utilizar a empresa em "C" para manter seu capital isento de tributação, servindo a segunda como um trampolim para o crescimento financeiro da primeira.

A figura do treaty shopping se torna indesejável aos Estados por uma série de motivos, podendo-se elencar principalmente: a) o princípio da reciprocidade entre os Estados contratantes é quebrado com a entrada de uma pessoa residente de um terceiro Estado que não compartilha os sacrifícios devidos pelas partes signatárias do tratado; b) a taxação ou o fluxo de investimentos ocorre de uma maneira descontrolada, o que fere o propósito do tratado que é limitado a certas situações específicas; c) os Estados, em especial o da residência, se sentem desencorajados a firmar novas convenções. [07]

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Buscando evitar a ocorrência dos abusos das convenções sobre a dupla tributação internacional, muitos países adotam medidas anti-treaty shopping, destacando-se a inserção de cláusulas na própria convenção que limitem os benefícios aplicados a determinadas pessoas, devendo, a rigor, haver um vínculo econômico robusto entre a pessoa beneficiada e o Estado cedente do benefício.


3- Rule Shopping

O rule shopping, de uso menos freqüente que o treaty shopping, consiste não em buscar a aplicação do tratado, mas sim assegurar que a qualificação de um rendimento previsto na convenção seja categorizada como uma espécie que traga um regime tributário mais favorável ao sujeito passivo. [08]

Assim, Carlo Garbarino enxerga que enquanto no treaty shopping o abuso dos tratados ocorre mediante um tipo subjetivo – tentativa de aplicação da convenção a um sujeito não acobertado por aquela -, o rule shopping configura um abuso do tipo objetivo, buscando articular o fato gerador de modo a adequar-se à convenção de acordo com suas pretensões. [09]

Logo, percebe-se que neste caso, ao contrário do que ocorre no treaty shopping, o abuso das convenções é efetuado pelos próprios beneficiários do tratado, que tentam buscar verdadeiras válvulas de escape, sempre com o intuito de buscar uma qualificação – que por vezes mostra-se evidentemente incompatível com a verdadeira natureza da matéria – que gere maiores benefícios fiscais.


4 -Conclusão

Percebe-se que frente ao fenômeno da dupla tributação internacional – que apesar de lícito gera diversas consequências contraproducentes -, os contribuintes buscam formas, por meio do planejamento tributário, de terem reduzidos os gravames fiscais que recaem sobre eles. Duas das formas mais recorrentes de planejamento tributário, conforme evidenciado, são o treaty shopping e o rule shopping.

Apesar de não constituírem manobras ilícitas, a quase totalidade dos Estados abominam referidas condutas, buscando cada vez mais instituir regras e medidas que tornem inviável a utilização daqueles.

Resta, portanto, aos Fiscos transnacionais, em cooperação com os sujeitos passivos tributários – leia-se contribuintes –, a busca de uma solução agradável a ambos, a fim de que a dupla tributação não se torne um óbice ao exercício da competência tributária dos Estados, nem lesione a capacidade contributiva dos sujeitos envolvidos.


Notas

  1. BRASIL. Código Civil. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. s/p.
  2. UN: United Nations. International cooperation in tax matters: Report of the ad hoc group of experts on international cooperation in tax matters on the work of its eleventh meeting. p.9.
  3. Luís Eduardo Schoueri. Planejamento fiscal através de acordos de bitributação: treaty shopping, p.21.
  4. Da conceituação de treaty shopping, Heleno Torres (Direito tributário internacional: Planejamento tributário e operações transnacionais, pp.329-330) elenca como elementos imprescindíveis à caracterização daquele a: a) busca planejada da melhor convenção; b) a pessoa que planeja não pode ser residente de um dos países abrangidos pelo tratado; c) interposição de pessoa qualificável como residente em um dos países acobertados pelo tratado; e d) afastamento do regime anteriormente aplicável quando não utilizado o treaty shopping.
  5. Agostinho Toffoli Tavolaro. Utilização abusiva dos tratados internacionais de dupla tributação (treaty shopping). Revista Tributária e de Finanças Públicas. p.247.
  6. Autores que também souberam demonstrar de forma apurada a situação das conduit companies e stepping stones companies foram Agostinho Toffoli Tavolaro (ibidem, pp.249-250), Sozza Guerrino (La fiscalità internazionale: Vademecum tributario per studiosi e operatori del mercato globale. pp.202-203), Luís Eduardo Schoueri (Planejamento fiscal através de acordos de bitributação: treaty shopping, pp.24-25), Carlo Garbarino (Manuale di tassazione internazionale, p.757), Heleno Torres (Direito tributário internacional: Planejamento tributário e operações transnacionais, p.327) e Stef van Weeghel (The improper use of tax treaties: with particular reference to the Netherlands and the United States, p.120).
  7. Stef van Weeghel. The improper use of tax treaties: with particular reference to the Netherlands and the United States, pp.121-122.
  8. Félix Alberto Vega Borrego. Limitation on benefits clauses in double taxation conventions. p.21.
  9. Carlo Garbarino. Manuale di tassazione internazionale, p.758.
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Sobre o autor
Flávio Garcia Cabral

Bacharelando do Curso de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e Professor de Língua Inglesa

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABRAL, Flávio Garcia. Abuso dos tratados contra a dupla tributação internacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2329, 16 nov. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13859. Acesso em: 19 abr. 2024.

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