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O senso de justiça e a sujeição à lei na teoria de John Rawls

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14/11/2009 às 00:00
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SUMÁRIO: RESUMO.. INTRODUÇÃO . 1. O SUJEITO RAWLSIANO. 1.1 Personalidade Moral. 1.1.1Concepção de Bem. 1.1.2 Senso de Justiça. 1.2 Liberdade. 1.3 Autonomia. 1.3.1 Posição Original. 1.4 Igualdade. 2. A NOÇÃO DE LEI. 2.1 Justiça como regularidade. 2.1.1 O Estado de Direito. 2.2 A lei legítima. 3. OBEDIÊNCIA E DESOBEDIÊNCIA À LEI. 3.1 A Obediência à Lei. 3.1.1 Povos Liberais (Regime Doméstico). 3.1.2 Povos Decentes. 3.1.3 Povos Fora da Lei (Outlaw States). 3.1.4 Sociedades Oneradas. 3.1.5 Absolutismo Benevolente. 3.2 A Obediência à uma Lei Injusta e a Desobediência Civil. 3.2.1 A Injustiça de uma Lei. 3.2.2 Definição da Desobediência Civil. 3.2.3 Justificação da Desobediência Civil. 3.2.4 Papel da Desobediência Civil. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

RESUMO

A obra de John Rawls tem sido objeto de inúmeras pesquisas no meio acadêmico-filosófico. Esta pesquisa é uma introdução ao estudo do senso de justiça e da sujeição do indivíduo à lei. Para tanto, são analisados os seguintes tópicos na obra de Rawls: a constituição da personalidade moral dos sujeitos rawlsianos no que concerne ao aprendizado da justiça, a relevância das práticas institucionais em uma sociedade bem-ordenada para a formação do senso de justiça, as noções de estado de direito e a sua respectiva subordinação à justiça como regularidade e legitimidade legal, desde o âmbito doméstico, isto é, interno a uma democracia constitucional até outras formas societárias admitidas por Rawls, expressas em, O Direito dos Povos. A temática da sujeição dos indivíduos às leis, a partir do senso de justiça dos cidadãos, neste âmbito, não é problematizada claramente pelo autor. Apesar disso, é possível entrever considerações, que apesar de lacônicas, no conjunto da obra, são bastante relevantes e interessantes. Para o filósofo, as leis são diretrizes direcionadas às pessoas racionais cujo objetivo é viver num sistema de cooperação social, do qual a base, como sistema social, é transmitida à geração posterior. Não obstante as leis serem diretrizes endereçadas às pessoas racionais, ocorre que nem sempre essas leis são expressões institucionalizadas da justiça. Apesar disso, em razão do dever natural de justiça, as pessoas participantes de uma sociedade bem-ordenada devem respeitar e seguir esta norma. Caso a injustiça dessa norma comprometa o sistema de cooperação social, dentro da estrutura básica da sociedade bem-ordenada, e satisfazendo alguns critérios nomeados por Rawls, este admite a possibilidade da desobediência civil, questão investigada nesta pesquisa. A desobediência civil é vista pelo filósofo como uma forma de protesto, legalmente factível, dentro dos limites da lei, em favor do benefício da sociedade e como forma de promover a justiça mediante a correção desta norma. A desobediência civil é, assim, um recurso de protesto público dentro dos limites da lei.

Palavras-chaves: John Rawls, senso de justiça, justiça, lei, desobediência civil.


INTRODUÇÃO

"A justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é dos sistemas de pensamento." [01]

Rawls é um pensador que politicamente defende o contratualismo, nos passos de Locke, Rousseau e Kant. Seguindo o contratualismo, expresso inicialmente em sua obra magistral, Uma Teoria da Justiça, de 1971, o autor vê na posição original, que é um dispositivo puramente hipotético e ahistórico, a origem da sociedade política. Na posição original, as pessoas, que são representativas, estariam sob o Véu da Ignorância, conceituado pelo pensador como total privação do conhecimento da posição que se ocupa na sociedade e das partes que representam. Assim condicionados, os sujeito representativos deliberariam sobre os princípios da justiça, os quais são frutos do consenso.

A discussão, dentro da qual a lei encontra-se na obra rawlsiana, vincula-se à concepção do estado de direito e sua função protetiva dos direitos individuais relacionados com os princípios de justiça especialmente com a liberdade [02], e, por outro lado, à questão do dever e da obrigação naturais dos indivíduos, no contexto do estado democrático-constitucional.

No entender de Rawls, o estado de direito está intimamente relacionado com a liberdade. Tal relação ganha relevo quando considera-se a noção de sistema jurídico e de sua íntima conexão com os preceitos que definem a justiça como regularidade. Um sistema jurídico é uma ordem coercitiva de normas públicas destinadas a pessoas racionais, com o propósito de regular sua conduta e prover a estrutura da cooperação social. Quando essas regras são justas, elas estabelecem uma base para expectativas legítimas, as quais possibilitam que as pessoas confiem umas nas outras e reclamem quando não vêem suas expectativas satisfeitas, de modo que, se a base dessas reivindicações forem incertas, os limites da liberdade também o serão. Para que as obrigações decorrentes constituam a base das expectativas legítimas, pressupondo que essas sejam regras eqüitativas ou justas, basta que um grupo de indivíduos se filie a essas instituições e aceite os benefícios daí resultantes. Os organismos constitucionais definidos por esse sistema têm, em geral, o monopólio do direto legal de exercer pelo menos as formas extremas de coação. Essas características simplesmente refletem o fato de que a lei define a estrutura básica no âmbito da qual se dá o exercício de todas as outras atividades [03].

Decorre assim, que o estado de direito é o resultado da aplicação ao sistema jurídico da concepção formal da justiça [04], e neste sentido, tal qual é pensado por Rawls, tem envolvimento com os seguintes princípios preceituais: princípio preceitual do dever implica poder [05], que, na teoria da justiça, identifica várias características do estado de direito, a saber: 1) as ações exigidas ou proibidas pelo estado de direito devem ser do tipo que seria razoável que as pessoas possam fazer ou evitar. Um sistema de regras dirigido para as pessoas racionais para organizar sua conduta se preocupa com o que elas podem, ou não, fazer; 2) a idéia de que o dever implica poder transmite a noção de que aqueles que estabelecem as leis e dão ordens fazem-no de boa fé; 3) a exigência de que um sistema jurídico reconheça a impossibilidade do cumprimento da lei como argumento de defesa; 4) exigência de que casos semelhantes devem receber tratamento semelhante; 5) a pressuposição de que não há ofensa sem lei; e, 6) reconhecimento dos princípios da justiça natural, os quais definem a noção de justiça natural que deve assegurar que a ordem jurídica seja imparcial e regularmente mantida [06].

No que concerne à especulação levada à efeito acerca da lei, elaborada perifericamente, esta é interpretada pelo autor como diretriz endereçada a pessoas racionais, para sua orientação [07]. Neste contexto, as leis, em consonância com a teoria da justiça, não precisam satisfazer necessariamente, em todos os casos, os princípios preceituais do estado de direito, mas, tendo em mente que esses princípios preceituais derivam de uma noção ideal, espera-se tão-somente que elas se aproximem dessa noção [08]. Com efeito, outra discussão relevante posteriormente intentada por Rawls é que a melhor ordenação, tendo em vista um sistema de sanções ponderado com relação às desvantagens pelas partes na convenção constituinte, é aquele que minimiza os riscos, referentes ao sistema de sanções, quais sejam: 1) o de que não seja atendida a necessidade de cobrir os gastos da manutenção do organismo e, 2) o da probabilidade de que essas sanções venham a interferir erroneamente na liberdade dos cidadãos.

Assim, para Rawls, está claro que em condições iguais os perigos para a liberdade são menores quando uma lei é administrada imparcial e regularmente de acordo com o princípio da legalidade [09]. É interessante notar que a liberdade, neste contexto, é um complexo de direitos e deveres definidos pelas instituições [10] e que o seu exercício se dá dentro daquilo que determina a lei em base nas expectativas legítimas. Esta é estabelecida quando as normas do sistema jurídico são justas. Assim, ela constitui a base que possibilita que as pessoas confiem umas nas outras e reclamem quando não vêem suas expectativas satisfeitas, de modo que, se as bases dessas reivindicações forem incertas, os limites da liberdade também o serão. Para que as obrigações decorrentes constituam as bases para expectativas legítimas, pressupondo que essas sejam regras equitativas ou justas, basta que um grupo de indivíduos se filie a essas instituições e aceite os benefícios daí resultantes [11].

De acordo com Rawls, o dever natural mais importante, sob a ótica da teoria da justiça, é o de apoiar e promover as instituições justas. Este dever tem duas implicações, quais sejam: os membros devem obedecer, por um lado, as instituições que lhes dizem respeito e, por outro lado, os membros devem cooperar na criação de instituições justas [12]. Desse dever origina-se o comprometimento de todos. Supondo-se que a constituição básica da sociedade seja justa, ela será estavelmente mantida mediante o apoio dos membros.

Este princípio, em contraste com o princípio utilitarista, é escolhido por combinar e ser coerente com os dois princípios da justiça. Assim, a estabilidade é assegurada, mediante o apoio dos membros, através do senso de justiça dos cidadãos, sendo este, inclusive, um dos aspectos da personalidade moral. O outro aspecto, no entender de Rawls, é sua capacidade para ter uma concepção de bem.

Outro dever natural, citado por Rawls, é o do respeito mútuo, que trata especificamente do manifestar a uma pessoa o respeito merecido como ser moral, caracterizado pelos dois aspectos acima referidos. A razão para reconhecer este dever está no reconhecimento dos cidadãos de que, no convívio social, precisam da garantia da estima de seus consócios [13].

Acerca da explanação em torno do dever e da obrigação, o princípio da eqüidade é particularmente relevante, pois afirma que cada pessoa deve fazer a sua parte, especificada pelas regras de uma instituição. Este princípio tem duas partes: a primeira afirma como contraímos obrigações e a segunda estabelece a condição de que a instituição envolvida seja justa. Assim, a obrigação é só originada mediante a existência de certas necessidades básicas, e o termo dever é destinado às exigências morais derivadas do princípio de eqüidade, enquanto que o termo de deveres naturais é destinado ás demais exigências [14].

Tendo isso em mente, de acordo com Rawls, para explicar obrigações baseadas na confiança precisamos tomar como premissa o princípio de eqüidade. Assim, a justiça como eqüidade apregoa que os deveres e obrigações naturais surgem unicamente em virtude de princípios éticos, os quais seriam escolhidos na posição original. Esses critérios, juntamente com os fatos relevantes das circunstâncias imediatas que determinam nossos deveres e obrigações, destacam o que conta como razão moral [15].

Além disso, Rawls propõe uma questão: em que medida e em quais circunstâncias deve-se continuar a obedecer a uma lei injusta? A injustiça de uma lei, afirma Rawls, não é justificativa suficiente para não se obedecer a ela, posto que as leis são vistas como obrigatórias, não excedendo certos limites de injustiça, quando a estrutura básica de uma sociedade é razoavelmente justa. Uma lei injusta, em linhas gerais, em determinadas ocasiões, deve ser obedecida tendo-se em vista o objetivo de se obter as vantagens de um procedimento legislativo eficaz e de não incorrer em prejuízos à estrutura básica de uma sociedade, quando esta é razoavelmente justa [16]. Esta questão conduz à outra relevante discussão na teoria rawlsiana: sua concepção dos limites da desobediência civil.

No plano internacional, Rawls desenvolve a idéia de tolerância estendida aos povos decentes. A discussão em torno das leis, a qual está vinculada ao sistema de direito, pertence a criterização para que as sociedades hierárquicas decentes pertençam, como membros de boa reputação, a uma Sociedade dos Povos razoável. Destes dois critérios elencados por Rawls, o mais relevante à questão do direito é o segundo, o qual é dividido em três partes. Primeiro: o sistema de direito deve assegurar a todos os membros do povo os direitos humanos; segundo: deve impor deveres e obrigações morais a todas as pessoas dentro do respectivo território; e terceiro: deve haver uma crença sincera e não irrazoável, da parte dos juízes e outros funcionários que administram o sistema jurídico, de que a lei é realmente guiada por uma idéia de justiça e do bem comum [17].

A discussão acerca das leis na teoria política de Rawls é situada, assim, dentro desse contexto. Por um lado, no âmbito interno, numa dependência aos dois princípios que regem uma sociedade, sobretudo em sua estrutura básica, posto que eles são aplicáveis tanto às instituições quanto aos indivíduos; e, por outro, no âmbito externo, aos direitos humanos. Assim, as leis, devidamente compreendidas e situadas, estão a serviço da justiça de modo a promover entre todos os membros a justiça eqüitativamente.


1. O SUJEITO RAWLSIANO

Rawls concebe sua teoria da justiça a partir de uma base kantiana, especificamente no que concerne à noção de sujeito, isto é, de pessoas, concebidas como racionais [18]. Nesse aspecto, Rawls se insere na concepção tradicional quanto a definição de sujeitos.

Segundo o filósofo, o sujeito é possuidor de uma personalidade moral a qual tem duas qualidades essenciais, quais sejam, a concepção de bem e o senso de justiça. É de posse dessas duas qualidades que será possível desenvolver no sujeito o aprendizado da justiça.

1.1 Personalidade Moral

Uma primeira qualidade do sujeito, na teoria de Rawls, é que ele é possuidor de uma personalidade moral, desenvolvida adequadamente ao longo de sua vivência em contato com as instituições da estrutura básica da sociedade, em uma sociedade bem-ordenada, regulada, portanto, por instituições justas. Assim, no processo de formação da personalidade moral, a justiça é inicialmente desenvolvida no sujeito por meio de práticas institucionais. Segundo Oliveira, o senso de justiça e a faculdade de concepção do bem – componentes elementares da personalidade moral – são inerentes à idéia de pessoas morais, livres e iguais, vivendo numa sociedade democrática [19].

1.1.1Concepção de Bem

A concepção de bem, na teoria moral rawlsiana, é um dos poderes morais atribuídos ao sujeito, ao indivíduo. Segundo Rawls, a definição do bem, que é puramente formal, afirma simplesmente que o bem de uma pessoa é determinado por um plano racional de vida que ela escolheria com racionalidade deliberativa. E o bem da pessoa é definido como a execução bem-sucedida de um plano racional de vida.

1.1.2 Senso de Justiça

O senso de justiça é desenvolvido, de acordo com Rawls, no seio de uma sociedade bem-ordenada. Esta é caracterizada por Rawls como aquela estruturada para promover o bem de seus membros e efetivamente regulada por uma concepção comum de justiça. Desse modo, em tal sociedade, todos os indivíduos aceitam e sabem que os outros aceitam os mesmos princípios da justiça, sendo, reverbera Rawls, esse fato publicamente reconhecido. [20] A justiça como eqüidade, neste sentido, é estruturada para estar de acordo com essa idéia de sociedade.

Outra característica da sociedade bem-ordenada apontada por Rawls refere-se ao fato de que ela é regulada por sua concepção de justiça, o que implica que seus membros têm um desejo forte e normalmente efetivo de agir em conformidade com os princípios da justiça. Como uma sociedade bem-ordenada perdura ao longo do tempo, no entender de Rawls, a sua concepção de justiça é provavelmente estável, isto é, quando as instituições são justas – da forma como essa concepção define –, os indivíduos que participam dessa ordenação adquirem o senso correspondente de justiça, e o desejo de fazer a sua parte para mantê-las. Para Rawls, uma concepção da justiça é mais estável do que outra se o senso de justiça que tende a gerar for mais forte e tiver maior probabilidade de sobrepujar inclinações perturbadoras, e se as instituições que ela permite não fomentam impulsos e tentações tão fortes no sentido de agir de forma injusta. Além disso, a estabilidade de uma concepção depende de um equilíbrio de motivos, ou seja, o senso de justiça que ela cultiva e os objetivos que encoraja devem normalmente ser mais fortes que as propensões para a injustiça. [21]

A estabilidade, para Rawls, é evidentemente um traço desejável nas concepções morais. As pessoas na posição original, em circunstâncias iguais, adotarão o sistema de princípios mais estável. Rawls entende que uma concepção da justiça, por mais atraente que seja por outros motivos, terá defeitos graves se, à luz do que denomina psicologia moral, não conseguir produzir o devido desejo de agir segundo seus princípios. O critério da estabilidade, neste aspecto, não é decisivo, haja vista que algumas concepções o ignoram. Reportando-se, entretanto, à teoria de Bentham, na qual este sustentava tanto o princípio da utilidade quanto o do egoísmo psicológico, Rawls aduz que é impossível – na teoria de bethamita – que as pessoas tenham senso efetivo de justiça tendo-se em conta que a resultante identificação de interesses é artificial. Além disso, o máximo que o legislador pode fazer, neste caso, é conceber as instituições de modo que elas visem a persuadir os cidadãos a agirem de modo a maximizar a soma do bem-estar. [22]

A maioria das doutrinas tradicionais, no entender de Rawls, afirma que, em certo grau, a natureza humana é tal que adquirimos um desejo de agir de forma justa quando vivemos em instituições justas e delas nos beneficiamos. Na medida em que tal fato é verdadeiro, afirma o autor, uma concepção é psicologicamente adequada às inclinações humanas, sendo, nesse caso, as concepções da justiça e do bem compatíveis uma com a outra. [23]

Antes de se prosseguir, é interessante atentar, com vistas a não serem originados mal-entendidos, algumas considerações feitas pelo filósofo sobre os conceitos de equilíbrio e de estabilidade. A primeira observação de Rawls concerne ao fato de que estes conceitos sãos aplicados a um certo tipo de sistema, no qual exista equilíbrio, o que acontece quando se atinge um estado que persiste indefinidamente, contanto que nenhuma força externa o perturbe ao longo do tempo. Rawls entende que para definir precisamente o estado de equilíbrio do sistema, se deve cuidadosamente demarcar os limites do sistema. Neste sentido, o autor distingue três passos que considera essenciais: i) identificar o sistema e distinguir as forças internas das externas; ii) definir os estágios do sistema; iii) especificar as leis que ligam os diferentes estágios. [24]

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Ora, para o autor, um equilíbrio é estável quando qualquer desvio em relação a ele, por motivos de ordem externa, mobiliza forças internas ao sistema que tendem a trazê-lo de volta a seu estado de equilíbrio. Esse não é o caso, se os motivos forem demasiado grandes. Por contraste, Rawls argumenta que o equilíbrio é instável quando um distanciamento em relação a ele gera no sistema forças que conduzem a mudanças ainda maiores. Assim, Rawls entende que os sistemas são mais ou menos instáveis, dependendo da intensidade das forças internas disponíveis para trazê-los de volta ao equilíbrio. Tendo-se em conta que na prática todos os sistemas sociais estão sujeitos a algum tipo de distúrbios, Rawls considera que eles são estáveis praticamente se os desvios em relação às suas posições normais de equilíbrio, depois de um período de tempo, despertem forças suficientes para restaurar essas posições ou delas se aproximar. [25]

Além disso, Rawls conjectura que os sistemas relevantes, no tocante a este assunto, são as estruturas básicas da sociedade bem-ordenadas correspondentes a diversas concepções de justiça quando elas satisfazem os princípios adequados da justiça – tendo-se em conta que este fato seja reconhecido de público pelos indivíduos que participam desse complexo de instituições. Rawls supõe, na avaliação da estabilidade desses sistemas complexos de instituições, que os limites são dados pela noção de comunidade nacional independente [26]. Outra observação feita por Rawls é que o equilíbrio e a estabilidade, no presente caso, devem ser definidos em relação à justiça da estrutura básica e a conduta moral dos indivíduos. Disso, Rawls aduz que a estabilidade das instituições, haja vista que a estabilidade de uma concepção de justiça não implica que as instituições não se alterem, por mais que elas mudem, permanecem justas ou aproximadamente justas quando faz-se ajustes em vista das novas circunstâncias sociais de forma que os desvios em relação à justiça são efetivamente corrigidos ou mantidos dentro de limites toleráveis por forças internas ao sistema. Exatamente entre essas forças, Rawls afirma que o senso de justiça tem fundamental papel. Neste aspecto, assim conclui Rawls, os sentimentos morais são necessários para garantir que a estrutura básica da sociedade seja estável em relação à justiça. [27]

Existem, na perspectiva rawlsiana da teorização acerca da origem dos sentimentos morais – a aprendizagem moral –, duas tradições principais: i) a primeira, nascida historicamente do empirismo e fundada nas idéias de filósofos utilitaristas, de Hume a Sidgwick, sendo, recentemente encontrada de forma mais desenvolvida na teoria da aprendizagem social; e ii) a segunda, derivada do racionalismo e ilustrada por Rousseau e Kant, e, recentemente, na teoria de Piaget. Sobre a primeira tradição, Rawls aduz que um dos argumentos principais dessa teoria é o de que o objetivo do treinamento moral é fornecer motivações que faltam, isto é, o desejo de fazer o que é correto apenas porque é correto, e o desejo de não fazer o que é errado. Nesse sentido, a conduta correta é aquela que geralmente beneficia os outros e a sociedade e, em geral, não há motivo para adotá-la. A conduta errada, por outro lado, é o comportamento prejudicial para os outros e para a sociedade, que, de acordo com Rawls, tem-se freqüentemente um motivo para adotá-la. A sociedade deve, explana o autor, de alguma forma, sanar esses defeitos, o que se consegue pela aprovação e desaprovação dos pais e de outras pessoas em posição de autoridade que se utilizam, quando faz-se necessário, de recompensas e punições. Mediante vários processos psicológicos, acaba-se adquirindo um desejo de fazer o que é correto e um repúdio ao que é errado. Rawls aponta ainda uma segunda tese, qual seja a de que o desejo de estar de acordo com os padrões morais é normalmente despertado precocemente antes mesmo de adquirir-se um entendimento adequado dos motivos dessa norma. [28]

Rawls argumenta que a teoria freudiana é similar a essa visão em aspectos fundamentais. Segundo Rawls, Freud afirma que os processos pelos quais a criança vem a ter atitudes morais giram em torno da situação edipiana e dos profundos conflitos originados por ela. Assim, os preceitos morais reforçados por aqueles que ocupam posições de autoridade são aceitos pela criança como o melhor modo de resolver as suas ansiedades, sendo as atitudes resultantes representadas pelo superego tendidas a ser duras e punitivas, refletindo as tensões da fase edipiana. Rawls critica esta visão, em função de que os pais e outros que ocupam posições de autoridade tendem de várias formas a equivocar-se e a agir de modo egoísta na utilização do elogio e da culpa. Por conseguinte, em decorrência da aplicação de recompensas e punições, decorre disso que, as primeiras atitudes morais das crianças serão irracionais e injustificadas, haja vista que não foram objeto de um exame racional. [29]

Acerca da segunda tradição, Rawls argúi que a aprendizagem moral não é tanto uma questão de fornecer motivos que faltam, mas sim, de acordo com a tendência natural, formula o livre desenvolvimento de capacidades intelectuais e emocionais inatas. Deste ângulo, quando as capacidades de entendimento amadurecem e as pessoas reconhecem o seu lugar na sociedade, sendo capazes de adotar o ponto de vista dos outros, elas apreciam os benefícios mútuos do estabelecimento de termos eqüitativos de cooperação social. Para Rawls, as pessoas têm uma simpatia natural com as outras pessoas, e uma suscetibilidade inata para os prazeres que o companheirismo e o autodomínio proporcionam, os quais fornecem uma base afetiva para os sentimentos morais – se as pessoas são capazes de ter um entendimento claro das relações com os consócios, de uma perspectiva adequadamente geral. Uma vez que seja assim, essa tradição considera, no entender de Rawls, os sentimentos morais como conseqüência natural de uma plena valorização da natureza social das pessoas. [30]

Segundo Rawls, Mill expressa essa visão argumentando que as organizações de uma sociedade justa são para nós tão adequadas que qualquer condição obviamente necessária para o seu estabelecimento é aceita da mesma forma que uma sociedade física a qual condiciona indispensavelmente as pessoas a terem consideração pelos outros, com base em princípios mutuamente aceitáveis de reciprocidade. Nesse sentido, a tendência à sociabilidade fornece uma base sólida para os sentimentos morais sem que se perca a natureza individual. Para o filósofo, a aprendizagem moral não é tanto uma questão de adquirir novos motivos, haja vista que estes surgirão por si mesmos, uma vez que se completem os desenvolvimentos necessários nas capacidades intelectuais e emocionais. Disso procede, uma vez que o entendimento da criança é primitivo, que um entendimento completo das concepções morais deve aguardar a maturidade. Tendo-se em conta que os princípios do justo e da justiça para a teoria racionalista nascem da natureza humana e não fazem oposição a seu bem, Rawls considera-a mais feliz neste quadro. [31]

Rawls passa a descrever os estágios do desenvolvimento moral pelos quais o indivíduo passa. O autor aponta três estágios, a saber: a moralidade de autoridade, a moralidade de grupo e a moralidade de princípio.

O primeiro deles é a moralidade de autoridade que em sua forma primitiva é a moralidade da criança. Rawls admite que o senso de justiça é adquirido gradualmente pelos membros mais jovens da sociedade à medida que vão crescendo, e que a sucessão de gerações e a necessidade de ensinar às crianças atitudes morais é uma das condições da vida humana. [32] Neste primeiro estágio, Rawls parte da hipótese de que a estrutura básica de uma sociedade bem-ordenada inclui de alguma forma a família e que, por primeiro, as crianças estão legitimamente submetidas à autoridade de seus pais. Rawls entende que é característico da situação da criança que ela não tenha condições de avaliar a validade dos preceitos e injunções que lhe são impostos por aqueles que ocupam posições de autoridade. A criança carece tanto de conhecimento como de entendimento com base nos quais, segundo o autor, a autoridade de seus pais possa ser desafiada de forma que não pode ter fundamentos para duvidar das determinações de seus pais. [33] Rawls supõe igualmente que os pais amam a criança e que esse sentimento, com o tempo, torna-se recíproco. Neste aspecto, Rawls pergunta-se pelo modo como essa mudança ocorre. Para responder esta questão, o autor supõe o seguinte princípio psicológico, qual seja, o de que a criança vem a amar seus pais apenas se estes manifestam primeiro o seu amor. Nesta perspectiva, as ações da criança são inicialmente motivadas por certos instintos e desejos, e seus objetivos são regulados por um interesse próprio racional – segundo Rawls, num sentido adequadamente restrito. [34]

Ademais, as condições que favorecem o desenvolvimento da moralidade de autoridade, que deve estar subordinada aos princípios da justiça, por parte das crianças, para o autor, são as seguintes: i) os pais devem amar a criança, e serem objetos dignos de sua admiração, o que fará com que elas despertem em si um senso de seu próprio valor e o desejo de tornar-se o tipo de pessoa que são seus pais; ii) devem enunciar regras inteligíveis e claras, de compreensão da criança, definindo os motivos para essas injunções até eles poderem ser entendidos. Rawls presume que, quando essas condições estão ausentes, o desenvolvimento moral deixa de ocorrer. O autor considera que a aceitação da moralidade de autoridade pela criança consiste na sua disposição de seguir preceitos que não podem só parecer (às crianças) arbitrário, mas que vão no sentido oposto ao de suas inclinações naturais. Se a criança adquirir o desejo de obedecer as proibições impostas pelos pais ela concluirá que elas expressam formas de ação as quais caracterizam o tipo de pessoa que ela desejaria ser. [35]

O segundo estágio do desenvolvimento moral é denominado por Rawls de moralidade de grupo. Esta moralidade, diferentemente da moral de autoridade para a criança, a qual consiste em grande parte numa coleção de preceitos, tem seu conteúdo ditado pelos padrões morais adequados ao papel do indivíduo nas várias associações às quais pertence. Segundo Rawls, esses padrões incluem as regras da moralidade ditadas pelo senso comum e, ainda de acordo com o autor, são impressos nele pela aprovação ou pela desaprovação daqueles que detêm a autoridade, ou pelos outros membros do grupo. Desse modo, para Rawls, nesse estágio a família é considerada uma pequena associação hierarquicamente definida na qual cada membro tem direitos e deveres – de forma que à medida que a criança cresce ela aprende os padrões de conduta adequados para alguém na sua posição. O autor entende, neste sentido, que as virtudes de um bom filho ou filha são explicadas pelas expectativas dos pais que se manifestam por meio de suas aprovações e desaprovações. Semelhantemente, há na escola e na vizinhança grupos com os quais se aprende certas ordenações, às quais se corresponde, aprende-se as virtudes de um bom aluno e colega de classe, assim como os ideais de um bom parceiro e companheiro. Esse tipo de visão moral, no entender de Rawls, se estende aos ideais posteriormente adotados na vida e, ainda, também a várias funções e ocupações adultas e ao lugar de uma pessoa como membro da sociedade. Neste sentido, o autor entende que a moralidade de grupo inclui um grande número de ideais dos quais cada um é definido de modo adequado para a respectiva função ou papel. Além disso, o entendimento moral aumenta, nesta perspectiva, à medida que as pessoas mudam de lugar passando por uma seqüência de posições, no curso da vida. Essa seqüência correspondente de ideais exige cada vez mais um maior juízo intelectual e discriminações morais mais elevadas. [36]

Rawls entende que, quando uma pessoa implementa a sua capacidade para sentimentos de companheirismo, adquirindo laços de acordo com a primeira lei psicológica, então, na medida em que seus consócios, com evidente intenção, correspondem aos seus deveres e obrigações, essa pessoa desenvolve sentimentos amigáveis em relação a eles, juntamente com sentimentos de confiança: esse princípio é uma segunda lei psicológica. À medida que os indivíduos entram no grupo ao longo de um período de tempo, eles adquirem esses laços quando os outros consócios mais antigos fazem a parte que lhes é correspondente dentro da sociedade. Neste entender, se os indivíduos se associam a um sistema de cooperação social e agem regularmente com a evidente intenção de apoiar suas regras justas, laços tendem a acontecer entre eles, vinculando-os mais fortemente ao sistema, de forma que estabelecidos esses laços, a não correspondência ao que se espera de uma pessoa dentro do sistema, tende a produzir sentimentos de culpa quando não cumpre a sua parte. Isso é evidenciado pela inclinação de sanar os males causados aos outros – reparação – assim como a sujeição a admitir que o que fez foi injusto e ao consentimento à punição e à censura. [37]

O terceiro estágio do desenvolvimento moral é, segundo Rawls, o da moralidade de princípios. Uma pessoa que atinge as formas mais complexas da moralidade de grupo, entende o autor, certamente tem um entendimento dos princípios da justiça assim como já tem desenvolvido um apego a vários indivíduos e comunidades em particular, estando, neste sentido, disposto a seguir os padrões morais que se aplicam a ele nas várias posições que ocupa, os quais são sustentados pela aprovação ou desaprovação social. Além disso, quando o indivíduo associa-se a outros e aspira a corresponder a essas concepções éticas, ele está interessado em conquistar a aceitação para sua conduta e seus objetivos. Neste momento, Rawls caracteriza como sendo o estímulo de sua obediência aos princípios da justiça, em grande parte, os laços de amizade e companheirismo com os outros e seu interesse pela aprovação da sociedade num sentido mais amplo. A partir disso, Rawls passa a considerar o processo pelo qual o um indivíduo se apega a esses princípios, segundo ele, de ordem superior, com o intuito de ser uma pessoa justa. [38]

Rawls argumenta, na explanação acerca do surgimento da moralidade de princípios, que a moralidade de grupo conduz a um conhecimento dos padrões de justiça. Numa sociedade bem-ordenada, esses padrões não apenas definem a concepção pública de justiça, mas também os cidadãos adquirem o interesse nas relações políticas, e aqueles que ocupam cargos legislativos e judiciais e outros semelhantes, são obrigados a aplicá-los e a interpretá-los. Neste sentido, estes têm muitas vezes de adotar a posição dos outros com o intuito de se atingir um equilíbrio razoável entre as reivindicações conflitantes e de ajustar os vários ideais secundários da moralidade de grupo. O filósofo entende que colocar os princípios da justiça em prática exige adotar a seqüência de quatro estágios [39]. Rawls alerta ainda que, conforme uma situação o exija, adota-se a perspectiva de uma convenção constituinte, ou de uma assembléia legislativa. O indivíduo acaba por adquirir, nesta perspectiva, um domínio desses princípios, entendendo os valores que eles garantem e o modo pelo qual eles trazem benefícios para todos. Isso, de acordo com Rawls, conduz o indivíduo à aceitação desses princípios segundo uma terceira lei psicológica, a qual afirma que, quando as atitudes de amor, amizade e confiança mútuos – originados de acordo com as duas leis psicológicas precedentes –, e o reconhecimento de que o indivíduo mesmo e aqueles com os quais se preocupa são os beneficiários de uma instituição justa e duradoura, tendem a criar no indivíduo o senso de justiça correspondente. Desse modo, o indivíduo desenvolve o desejo de aplicar os princípios da justiça e de agir em conformidade com eles no momento em que percebe como as organizações sociais que representam promoveram o seu bem e o bem daqueles com os quais se associou. [40]

O senso de justiça, de acordo com o autor, manifesta-se de dois modos: i) leva o indivíduo a aceitar que os princípios da justiça se aplicam à sociedade e das quais ele e seus consócios se beneficiam. Nesta medida, o indivíduo tende, no entender do filósofo, a se sentir culpado quando não honra seus deveres e obrigações, mesmo não estando vinculado por nenhum sentimento especial de companheirismo àqueles às custas dos quais consiga vantagens. Rawls aduz ainda que o corpo de cidadãos como um todo não se liga por laços de companheirismo entre os indivíduos, mas pela aceitação de princípios públicos da justiça. É a lealdade a esses princípios que fornece uma perspectiva unificada a partir da qual os indivíduos podem resolver suas divergências. ii) fomenta uma disposição de trabalhar em favor da construção de instituições justas, e no sentido de reformar as instituições existentes quando a justiça o exija. [41]

Quando o sujeito vai contra o senso de justiça, Rawls aduz que ele explica se sentimento de culpa – segundo o autor, experimentado pela primeira vez no sentido estrito – referindo-se aos princípios da justiça. Desse modo, uma vez aceita uma moralidade de princípios, as atitudes morais deixam de estar unicamente ligadas ao bem-estar e à aprovação de grupos específicos. Neste sentido, elas são moldadas por uma concepção do justo, escolhida independentemente dessas contingências, haja vista que os sentimentos morais manifestam uma independência em relação às circunstâncias acidentais [42].

Apesar da independência dos sentimentos morais em relação às contingências, Rawls argumenta que o apego natural do indivíduo a pessoas e grupos específicos ainda tem lugar apropriado no âmbito interno de sua teoria moral tendo em conta que dentro da moralidade de princípios as infrações que causavam culpa originavam culpa e ressentimento – em relação ao grupo –, e outros sentimentos morais, ocasionam agora estes sentimentos no sentido estrito. Além disso, o indivíduo, em sua justificativa, faz referência aos princípios pertinentes quando explica suas emoções. [43]

Rawls afirma que, à primeira vista, pode parecer estranho que venhamos a ter o desejo de agir segundo uma concepção do justo e da justiça. Neste sentido, pergunta-se como é possível que princípios morais conquistem nossa afeição. Na justiça como eqüidade existem várias respostas a essa pergunta: i) em primeiro lugar os princípios morais necessariamente têm um certo conteúdo e definem modos já aceitos de promover os interesses humanos visto que foram escolhidos por pessoas racionais para julgamento de reivindicações concorrentes. As instituições, assim como as ações humanas, são avaliadas segundo a garantia que dão a esses princípios. ii) em segundo lugar, o senso de justiça é um prolongamento do amor pela humanidade. Como apontado no parágrafo 30, de Uma Teoria da Justiça, a benevolência fica sem rumo se os princípios da justiça não a orientarem.

A diferença básica entre o senso de justiça e o amor pela humanidade, na visão de Rawls, é que o amor pela humanidade é sepererrogatório, indo além das exigências morais, e não invocando as isenções permitidas pelos princípios de obrigação e dever naturais. Para Rawls, é evidente a íntima ligação desses dois sentimentos os quais são definidos, em grande parte, pela mesma concepção de justiça. Além disso, a interpretação kantiana desses princípios demonstra que, ao agiram de acordo com eles, as pessoas expressam sua natureza de seres racionais livres e iguais. O senso de justiça tem como objetivo o bem-estar dos indivíduos de forma bastante direta: apóia as ordenações que possibilitam que todos expressem sua natureza comum. Ora, sem um senso de justiça comum ou coincidente, o civismo não pode existir. Assim, o desejo de agir de maneira justa não é uma forma de obediência cega a princípios arbitrários sem relação com objetivos racionais. [44]

Rawls esclarece que não pretende argumentar que a justiça como eqüidade seja a única doutrina capaz de interpretar o senso de justiça de um modo natural. Neste sentido, reconhece que o utilitarismo, e também o perfeccionismo, satisfazem a visão de que o sentimento de justiça pode ser caracterizado de forma a ser psicologicamente compreensível. Com efeito, aduz o autor, pareceria que a doutrina do ato de consciência é irracional. Essa doutrina, em primeiro lugar, afirma que a mais elevada motivação moral é o desejo de fazer o que é correto e justo simplesmente porque é correto e justo; e, em segundo lugar, que embora outros motivos tenham certamente algum valor moral, exemplificando, o desejo de fazer o que é porque assim procedendo aumenta-se a felicidade humana, esse desejo tem menos valor moral do que o de fazer o que é correto unicamente por ser correto. [45]

Não obstante estas considerações, para alguém que entende e aceita o contratualismo, o sentimento de justiça não difere do desejo de agir segundo os princípios que indivíduos racionais aceitariam em uma situação inicial que concede a todos uma representação igual como pessoas morais, e tampouco é diferente de querer agir de acordo com os princípios que expressam a natureza das pessoas como seres racionais livres e iguais. Os princípios da justiça correspondem a essas descrições, o que permite, segundo Rawls, dar uma interpretação aceitável do que seja o senso de justiça. Para Rawls, o fato de o indivíduo ser governado por princípios morais significa que queremos viver com os outros em termos que todos reconheceriam como eqüitativos, de uma perspectiva que todos aceitariam como razoável. [46]

O autor observa ainda que a moralidade de princípios assume duas formas: i) uma corresponde ao senso do justo e de justiça; e ii) o amor pela humanidade e pelo autodomínio. Salienta que a segunda é supererrogatória, ao passo que a primeira não o é. A moralidade de princípios, em sua forma normal, inclui as virtudes das moralidades precedentes – a de grupo e de autoridade. Além disso, ela define o último estágio no qual todos os ideais secundários são entendidos e organizados em um sistema coerente mediante princípios adequadamente gerais. No tocante às qualidades das outras modalidades, elas recebem a sua explicação e justificativa dentro do sistema mais amplo, e suas respectivas reivindicações são ajustadas pelas prioridades atribuídas à concepção mais abrangente.

Rawls argumenta que a moralidade supererrogatória – dependendo da direção na qual as exigências da moralidade de princípios são espontaneamente ultrapassadas – tem dois aspectos, quais sejam: i) por um lado, o amor pela humanidade que se manifesta na promoção do bem comum de modos que vão muito além de nossos deveres e obrigações naturais [47]; e ii) por outro lado, a moralidade de autodomínio, que se manifesta em sua forma mais simples na atitude de cumprir sem nenhuma dificuldade as exigências do justo e da justiça. [48]

1.2 Liberdade

A liberdade na teoria rawlsiana é um conceito complexo: por um lado – a partir da idéia implícita no primeiro princípio da justiça –, implica necessidades básicas, como a liberdade política – direito de voto e de ocupar cargo público –, a liberdade de expressão e de reunião, a liberdade de consciência e de pensamento, a liberdades de pessoa – proteção psicológica contra agressão física (integridade) –, o direito à propriedade privada e a proteção, em consonância com o conceito de estado de direito, contra a prisão e a detenção arbitrárias [49], as quais, em consonância com o primeiro princípio devem ser iguais para todos; por outro lado, de acordo com o que escreve em, Uma Teoria da Justiça, "a descrição geral de uma liberdade assume a seguinte forma: esta ou aquela pessoa (ou pessoas) está (ou não está) livre desta ou daquela restrição (ou conjunto de restrições) para fazer (ou não fazer) isto ou aquilo. [50]

Nesta medida, de acordo com o autor, a liberdade estaria restrita aos limites daquilo que a lei estipula, ou não, como sendo permissível fazer. É esclarecedora, com relação a esse aspecto, a argumentação de Rawls:

Nesses casos, a liberdade é uma certa estrutura de instituições, um certo sistema de normas públicas que definem direitos e deveres. Colocadas nesse contexto, as pessoas têm liberdade para fazer alguma coisa quando estão livres de certas restrições que levam a fazê-la ou a não fazê-la, e quando sua ação ou sua ausência de ação está protegida contra interferência de outras pessoas. Se, por exemplo, consideramos a liberdade de consciência como a lei a define, então os indivíduos têm essa liberdade básica quando estão livres para perseguir seus interesses morais, filosóficos ou religiosos sem restrições legais que exijam que eles se comprometam com qualquer forma particular de prática religiosa ou de outra natureza, e quando os demais têm um dever estabelecido por lei de não interferir. Um conjunto bastante intrincado de direito e deveres caracteriza qualquer liberdade básica e particular. [51]

Com relação à determinação da liberdade de ação, o sujeito é livre para fazer aquilo que desejar, dentro daquilo que não é especificado como ação criminosa, isto é, o sujeito é livre para fazer o que quiser desde que a lei não proíba esta ação.

Em, O Liberalismo Político, aludindo ao processo de elaboração das leis, Rawls argumenta que "quando também consideramos o papel distinto do processo político na determinação das leis e políticas que devem regular a estrutura básica, não é implausível que somente as liberdades políticas devam ser objeto da garantia especial do valor eqüitativo. Essa garantia constitui um ponto focal natural entre a liberdade meramente formal, de um lado, e alguma espécie de garantia mais ampla para todas as liberdades fundamentais, do outro" [52]. Aqui, portanto, o autor afirma que as liberdades políticas é que devem ser equitativamente garantidas. Assim, apenas o conjunto de liberdades, compondo o quadro político é que, de acordo com a igualdade deliberada pelo primeiro princípio, devem ser garantido equitativamente. É mister esclarecer que as demais liberdades não devem e não são inacessíveis às pessoas, mas estas devem ser garantidas eficazmente de acordo com o prisma da igualdade.

1.3 Autonomia

A autonomia, na teoria de Rawls, é um conceito estritamente político, não político-moral, conforme sustenta Kant [53]. Neste sentido, de acordo com Oliveira, a autonomia rawlsiana representa a ordem de valores políticos embasados nesses mesmos princípios e inseparáveis de concepções políticas da sociedade e da pessoa. [54]

1.3.1 Posição Original

A autonomia, na teoria política do filósofo, é garantida efetivamente pela idéia de posição original [55]. Como já apontado, Rawls coloca-se na esteira do contratualismo por entender que esta terminologia contém algumas vantagens quando considerada a concepção de pessoas como livres e iguais. Nesta sua elaboração contratualista são particularmente relevantes os conceitos de posição original bem como os dois princípios da justiça, tendo em vista uma situação inicial mediante a qual são escolhidos princípios para a formulação de uma teoria da justiça assim como de uma sociedade bem-ordenada, concebidas a partir da justiça como equidade. O conceito de posição original empregado por Rawls, em sua teoria política, segundo seu próprio juízo, "é o que apresenta, do ponto de vista filosófico, a interpretação mais adequada dessa situação de escolha inicial para os propósitos de uma teoria da justiça," [56] tendo em vista a realização da liberdade e da igualdade, "(...) uma vez que se considere a sociedade como um sistema equitativo de cooperação entre cidadãos livres e iguais." [57] Dessa forma, segundo o autor, esse conceito é introduzido com a finalidade de descobrir qual concepção de justiça especifica os princípios mais adequados para realizar a liberdade e a igualdade. A este respeito, argumenta Rawls:

"Introduzimos uma idéia como a de posição original porque não parece haver forma melhor de elaborar uma concepção política de justiça para a estrutura básica a partir da idéia fundamental da sociedade como um sistema duradouro e equitativo de cooperação entre cidadãos livres e iguais. Isso parece particularmente evidente quando pensamos na sociedade como algo que se estende por gerações, herdando sua cultura pública e suas instituições sociais e políticas (juntamente com seu capital real e estoque de recursos naturais) daqueles que viveram antes." [58]

Ora, para supor essa escolha dos princípios, Rawls supõe, igualmente, uma posição original, que é um dispositivo puramente hipotético e ahistórico, em que, mediante condições predeterminadas, as partes representativamente escolheriam estes princípios tendo por objetivo uma sociedade baseada na justiça como equidade. Nesta posição original, essas pessoas representativas estariam sob o Véu da Ignorância, conceituado pelo pensador como total privação do conhecimento da posição que se ocupa na sociedade e das partes que representam. Esta mesma idéia tem aplicação ao conhecimento sobre raça e grupo ético, gênero e talentos naturais.

Outra condição é que as partes são iguais como pessoas éticas, concebidas como "criaturas que têm uma concepção de seu próprio bem e que são capazes de ter um senso de justiça" [59]. A igualdade das partes é baseada na similaridade desses dois pontos. Assim, têm elas os mesmos direitos no processo de escolha dos princípios, e estes, a partir destas condições, são definidos "como sendo aqueles que pessoas racionais preocupadas em promover seus interesses consensualmente aceitariam em condições de igualdade nas quais ninguém é consciente de ser favorecido ou desfavorecido por contingências sociais e naturais." [60]

Os dois princípios da justiça são produtos do consenso das partes contratuantes na posição original, elaborados a partir daquelas condições anteriormente especificadas. Esses princípios [61], em sua formulação total, segundo Rawls, são:

"Primeiro Princípio: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema total de liberdades básicas que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para todos.

Segundo Princípio: as desigualdades econômicas e sociais devem ser ordenadas de tal modo que, ao mesmo tempo:

a) tragam o maior benefício possível para os menos favorecidos, obedecendo às restrições do princípio da poupança justa, e

b) sejam vinculadas a cargos e posições abertos a todos em condições de igualdade eqüitativa de oportunidades." [62]

A aplicação destes princípios, em primeiro lugar, destina-se à estrutura básica da sociedade de forma que governam a atribuição de direitos e deveres e regulam as vantagens econômicas e sociais. Segundo Rawls, a formulação de tais princípios tem como pressuposto que a estrutura básica da sociedade seja dividida em duas partes: o primeiro princípio é aplicável à primeira parte, que compõe o sistema social o qual define e assegura as liberdades básicas iguais; e o segundo princípio é aplicável à segunda parte, que especifica e estabelece as desigualdades de ordem econômicas e sociais. [63] É patente esclarecer que os dois princípios são compreendidos em ordem serial, isto é, o primeiro antecede o segundo, de forma que não é permitida a violação das liberdades básicas em prol de vantagens econômicas e sociais, em outras palavras, não se admite a permuta entre liberdades básicas e ganhos sociais e econômicos por força dos princípios da justiça.

É notório, em relação aos princípios da justiça, que, de acordo com esta perspectiva da justiça, não há restrições para os tipos de desigualdades. O que se exige, porém, por parte dos princípios, é que a condição de todos seja melhorada, baseada nos benefícios que uma sociedade fundada na concepção da justiça como equidade pode oferecer.

A autonomia, sob o viés político dos indivíduos, enquanto cidadãos, na teoria de Rawls, é, pois, assegurada e garantida mediante a posição original. É através dela que estes deliberariam a escolha racional dos princípios que mais estariam em condições de realizar, dentro da estrutura básica da sociedade, a justiça.

1.4 Igualdade

A igualdade é discutida por Rawls na perspectiva da aplicação dos princípios da justiça. Ante o enunciado de que a conduta humana em relação aos animais não é regulada pelos princípios da justiça, propõe uma questão qual seja, que motivos se tem para distinguir a humanidade de outros seres vivos, e considerar que as restrições da justiça se aplicam apenas às pessoas. Segundo ele, deve-se examinar o que determina o alcance da aplicação das concepções de justiça. [64]

Com intuito de esclarecer esta questão, Rawls diz poder distinguir três níveis as quais o conceito de igualdade se aplica: i) O primeiro deles refere-se à administração das instituições como sistemas públicos de regras, nos quais, essencialmente, a igualdade é a justiça como regularidade. Assim, envolve a aplicação imparcial e a interpretação consistente de regras de acordo com preceitos tais como o da isonomia, segundo o qual casos semelhantes devem receber tratamento semelhante [65]. Nesse nível, segundo o autor, a igualdade é elemento menos discutível da idéia de justiça definida pelo senso comum.

ii) O segundo nível de aplicação da igualdade que, segundo Rawls, é muito mais difícil, refere-se à estrutura substantiva das instituições. O significado da igualdade, neste nível, é especificado pelos princípios da justiça, os quais, no raciocínio do autor, exigem que direitos básicos iguais sejam atribuídos a todas as pessoas. No que diz respeito aos animais, Rawls os exclui dessa base igualitária. Segundo ele, os animais certamente têm alguma proteção, mas o seu status não é o mesmo dos seres humanos. Em razão de se ter que considerar a que tipos de seres se deve conceder garantias da justiça, o filósofo argúi que leva ao terceiro nível, no qual surge a questão da igualdade. [66]

iii) Rawls argumenta que a resposta natural parece ser a de que são precisamente as pessoas éticas que têm direito à justiça igual, as quais distinguem-se por duas características, a saber: i) são capazes de ter – e, segundo Rawls, supõe-se que tenham – uma concepção de seu próprio bem, expressa por um plano racional de vida; ii) são capazes de ter – e, enfatiza o autor, supõe-se que adquiram – um senso de justiça, um desejo normalmente efetivo de aplicar os princípios da justiça e de agir segundo suas determinações. Rawls usa a caracterização das pessoas na posição original para determinar o tipo de seres aos quais se aplicam os princípios escolhidos. Isto porque considera-se que as partes adotam esses critérios para regular suas instituições comuns e sua conduta em relação umas às outras. Deste modo, a justiça igual é um direito daqueles que têm capacidade de participar da posição original e de agir de acordo com o respectivo entendimento comum. Aqui, é conveniente pôr em relevo que a personalidade ética, para o autor, é definida como uma potencialidade que, no devido tempo, realiza-se. [67] Assim, tão-somente é condição suficiente, para que se tenha direito à justiça igual, uma personalidade ética potencial visto que é esta personalidade moral a condição para garantir direitos aos sujeitos.

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Sobre o autor
Marcos Rohling

Professor da Rde Pública de Ensino de São José, Santa Catarina, Graduado em filosofia, pela UFSC, graduando em Direito, pela UNISUL, e mestrando em´Ética e Filosofia Política pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFSC

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROHLING, Marcos. O senso de justiça e a sujeição à lei na teoria de John Rawls. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2327, 14 nov. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13863. Acesso em: 5 out. 2024.

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