6 Conclusão
O Superior Tribunal de Justiça mantém posicionamento reiterado de que não configura incidência do artigo 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente na hipótese de bebidas alcoólicas, sendo o leading case o REsp nº. 331.794/RS. Este entendimento foi construído asseverando que o legislador atribuiu tratamento diferenciado para a conduta de vender bebidas alcoólicas e vender produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica, cabendo ao primeiro a aplicação do artigo 63, inciso I, da Lei de Contravenções Penais e ao segundo a aplicação do artigo 243, do Estatuto da Criança e do Adolescente. Levou-se em consideração também a impossibilidade de interpretação extensiva no campo penal, em função do princípio da reserva legal, previsto no artigo 5º, inciso XXXIX, da CF/88.
A aplicação do artigo 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente ou do artigo 63, inciso I, da Lei de Contravenções Penais recai na interpretação do conteúdo dos dizeres "produtos que causem dependência física ou psíquica".
A dependência física se manifesta pela alteração das reações químicas que ocorrem no indivíduo, em função de substância externa que faz com que o metabolismo seja modificado. A dependência psíquica refere-se ao desejo do indivíduo na utilização da substância, o que torna difícil afirmar que determinada substância causa dependência psíquica.
Não seria viável ao juiz, no caso concreto, identificar de maneira inequívoca que determinada substância causou dependência psíquica e seria lenta e onerosa a produção de prova para verificar se há a dependência física, valendo-se o Brasil, desta forma, de estudos para criar um regramento interno com as substâncias que causem dependência, o que foi positivado por intermédio da Portaria nº. 344, de 12 de maio de 1988, da ANVISA, órgão diretamente subordinado ao Ministério da Saúde. A Portaria nº. 344/1988 – ANVISA/MS sofre pequenas alterações, sendo a última alteração a que se deu por intermédio da publicação da RDC nº. 07, de 26 de fevereiro de 2009.
As substâncias que se encontram na Portaria nº. 344/1988 – ANVISA/MS causam dependência e foram consideradas pelos países que ratificaram as convenções sobre este tema nocivas o suficiente para serem proscritas ou rigorosamente controladas, não correspondendo à totalidade de substâncias que causam dependência. Por outro lado, a Portaria nº. 344/1988 – ANVISA/MS não se compõe apenas de substâncias ilícitas, contendo substâncias lícitas merecedoras de controle.
Deste a edição da Portaria nº. 344/1988 – ANVISA/MS em nenhum momento houve a inclusão do álcool etílico como substância considerada como causadora de dependência física ou psíquica, merecedora de controle, nem a nicotina.
A separação feita pelo legislador, nos incisos II e III do artigo 81 do Estatuto da Criança e do Adolescente, em bebidas alcoólicas no inciso II e produtos cujos componentes podem causar dependência física ou psíquica no inciso III, apenas reforça o acerto do legislador, evitando criar, no ordenamento jurídico, dois significados para o termo "substância que cause dependência física ou psíquica". O legislador explicitamente separou as bebidas alcoólicas dos demais produtos que contém substâncias que causam dependência física ou psíquica. E o fez por coerência com outros dispositivos legais que mencionam termos da mesma natureza.
Independente da existência do artigo 81 do Estatuto da Criança e do Adolescente, apenas o fato de constar o termo "substância que cause dependência física ou psíquica" no caput do artigo 243 já é o suficiente para concluir que não estão incluídas as bebidas alcoólicas.
Adota-se a possibilidade de interpretação extensiva em sede penal, deste que com o critério de convergência das interpretações gramatical e teleológica. A partir da interpretação gramatical constatou-se a impossibilidade de não aplicação do artigo 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente na hipótese de bebidas alcoólicas, enquanto que o resultado da interpretação teleológica foi o inverso. Nesta hipótese, de ausência de convergência entre a interpretação gramatical e a interpretação teleológica, deve-se evitar a interpretação extensiva.
Ante o exposto, defende-se o acerto no posicionamento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça.
Não é possível argumentar que não cabe infração administrativa, fundada no artigo 249 e no artigo 258 do Estatuto da Criança e do Adolescente, uma vez que a conduta do artigo 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente é atípica para o caso de bebidas alcoólicas, já que a responsabilidade criminal independe da responsabilidade administrativa.
Por representar um grave problema de saúde pública, trazendo sérios efeitos deletérios para o organismo, dever-se-ia alterar o artigo 81 e o artigo 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente para criminalizar as condutas previstas no artigo 243 no caso de bebidas alcoólicas e produtos fumígemos derivados do tabaco.
Referências Bibliográficas
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ZAFFARONI, Eugenio Raúl, PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral, 5 ed. rev. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
Notas
- Após o julgado objeto deste trabalho, o Superior Tribunal de Justiça se manifestou, no mesmo sentido, nos seguintes acórdãos: RHC 20629/SC, Quinta Turma, relator Ministro Felix Fisher, j. 20-09-2007, DJ 19-11-2007 e REsp 942288/RS, Quinta Turma, relator Ministro Jorge Mussi, j. 28-02-2008, DJe 31-03-2008. Também houve manifestação do Superior Tribunal de Justiça nas seguintes decisões monocráticas: CC 105627/PR, decisão monocrática, relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, j. 25-08-2009, data da publicação 04-09-2009; CC 104587/PR, decisão monocrática, relator Ministro Nilson Naves, j. 09-06-2009, data da publicação 17-06-2009; CC 104614/PB, decisão monocrática, relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, j. 29-05-2009, data da publicação 04-06-2009; REsp 1082658/RS, decisão monocrática, relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, j. 30-03-2009, data da publicação 14-04-2009; Ag 1054845/PR, decisão monocrática, relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, j. 28-11-2008, data da publicação 05-12-2008; HC 090299/AL, decisão monocrática, relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, j. 31-08-2007, data da publicação 12-09-2007 e Ag 861374/RS, decisão monocrática, relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, j. 31-05-2007, data da publicação 13-06-2007. Na base de dados disponível no endereço eletrônico <http://www.stj.jus.br> Acesso em: 30-09-2009, não foram encontrados julgados em sentido contrário. Na base de dados disponível no endereço eletrônico <http://www.stf.jus.br> Acesso em: 30-09-2009, não foram encontrados julgados referentes ao artigo 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
- O artigo 105, inciso III, alínea c, da CF/88 assegura a possibilidade de utilização do recurso especial no caso de divergência entre tribunais e o artigo 541, parágrafo único, do CPC refere-se ao procedimento para o ingresso do recurso especial quando for alegado o dissídio jurisprudencial. Estes dois dispositivos positivam a função uniformizadora do Superior Tribunal de Justiça.
- Súmula nº. 7/STJ: A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial.
- Controlou-se inicialmente o ópio, a morfina e a cocaína, através da Convenção de Haia, realizada em 1912, que não foi ratificada pelo Brasil. O Decreto n°. 2.994/1938, promulgando a Convenção de Genebra para a repressão do tráfico ilícito de drogas nocivas, de 1936, foi o primeiro instrumento normativo editado no Brasil com a finalidade de repressão do tráfico ilícito de drogas nocivas; e a primeira lista de substâncias controladas consta no Decreto-Lei nº. 891/1938.
- Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961, promulgada através do Decreto nº. 54.216/1964, a Convenção de 1971 sobre as Substâncias Psicotrópicas, promulgada através do Decreto nº. 79.388/1977 e a Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, de 1988, promulgada através do Decreto n.º 154/1991.
- Disponível em: <http://e-legis.anvisa.gov.br/leisref/public/showAct.php?id=35907&word=> Acesso em: 01-10-2009.
- Substância entorpecente é toda aquela capaz de agir no sistema nervoso central, provocando estado de entorpecimento, de embriaguez, podendo ser considerada como sinônimo de substância psicoléptica.
- Substância que introduzida no organismo provoca alterações na atividade psíquica e no comportamento. São classificadas em psicoanalépticas (estimulantes do sistema nervoso central), psicodislépticas (perturbadoras do sistema nervoso central) e psicolépticas (depressoras do sistema nervoso central).
- Nesta lista inclui-se a substância cloreto de etila, princípio ativo do lança perfume.
- Nesta lista inclui-se o alcalóide cocaína.
- Nesta lista inclui-se o THC, princípio ativo da maconha e o MDMA, princípio ativo do ecstasy.
- Lei nº. 5.726/1971, revogada pela Lei nº. 6.368/1976.
- Lei nº. 6.368/1976, revogada pela Lei nº. 11.343/2006.
- Lei nº. 10.409/2002, revogada pela Lei nº. 11.343/2006.
- Lei nº. 11.343/2006.
- Dicionário eletrônico Houaiss. Verbete: interpretar. Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=interpretar&stype=k&x=14&y=11> Acesso em: 03-10-2009.
- BONFIM, Edílson Mougenot. CAPEZ, Fernando. Direito Penal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 157.
- Por todos MIRABETE. Julio Fabbrini. Manual de direito penal: parte geral. v. 1, 22 ed. rev. atual. São Paulo: Atlas, 2005, p. 51-54.
- Artigo 5º, inciso XXXIX, da CF/88 que reza que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.
- DELMANTO, Celso. et alli. Código penal comentado. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 4.
- ASÚA, Luis Jiménez da. El criminalista, t. 5, Buenos Aires: La Ley, 1945, p. 240, defende que no caso do intérprete judicial permanecer em dúvida depois do esforço para esclarecer a vontade da lei, deve-se atender ao princípio de maior benignidade. Em sentido semelhante BRUNO, Aníbal. Direito penal: parte geral. t. 1 Rio de Janeiro: Forense, 1967, p. 220-221 afirma que não "se dirá que a interpretação deva ser, para certos casos ou para certas categorias de agentes, mais benévola; nem benévola, nem, por outro lado, rigorosa, em geral ou para situações particulares". E quanto à solução no caso de conflito de interpretações assevera que só "em caso de dúvida irredutível entre interpretações diversas, todas parecendo igualmente aproximadas do texto legal, é que se poderia admitir ainda o valor dos velhos adágios do tipo in dúbio mitius".
- ZAFFARONI, Eugenio Raúl, PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral, 5 ed. rev. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 170-171. Estes autores apresentam outros critérios para a aplicação da interpretação extensiva.
- Artigo 227, caput, da CF/88, que informa que "É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão" (grifos nossos).
- Ver item 5.1.
- STJ, REsp 1072658/MT, decisão monocrática, Ministro Benedito Gonçalves, j. 04-11-2008, data da publicação 14-11-2008; STJ, REsp 1079687/MT, decisão monocrática, Ministro Mauro Campbell Marques, j. 26-02-2009, data da publicação 06-03-2009 e STJ e REsp 1103202/MT, decisão monocrática, Ministro Luiz Fux, j. 16-03-2009, data da publicação 23-03-2009.
- STJ, REsp 1071823/GO, decisão monocrática, Ministro Humberto Martins, j. 28-10-2008, data da publicação 14-11-2008.
- STJ, REsp 1072658/MT, decisão monocrática, Ministro Benedito Gonçalves, j. 04-11-2008, data da publicação 14-11-2008.
- Ver também <http://www.uerj.br/modulos/kernel/index.php?pagina=454&cod_modulo=557> Acesso em: 04-10-2009.
- Dentre os estudos sobre o assunto, cita-se SCHAEFER, Thais Pletsh; et alli. Álcool, nicotina e substâncias ilícitas: prevalência de uso na vida, idade de primeiro consumo e associação com fatores sócio-demográficos: estudo transversal com adolescentes masculinos oriundos da comunidade, no sul do Brasil. Revista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Anais da 26ª Semana Científica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, v. 26, supl. 1, 2006. Disponível em: <http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/8191/000569733.pdf?sequence=1> Acesso em 04-10-2009, que obteve em um universo de 920 adolescentes do sexo masculino, observou-se o consumo de álcool em 86,6%, de nicotina em 43,5%, de maconha em 15,7% e de cocaína em 10,8%, com uma idade de primeiro uso de 13,79 anos para o álcool, 14,05 para a maconha, 14,52 anos para a nicotina e 15,29 anos para a cocaína e CASTRO, Márcia Regina Pizzo de; et alli. A dependência da nicotina associada ao uso de álcool e outras substâncias psicoativas. Semina: Ciências Biológicas e da Saúde, Londrina, v. 29, n. 2, jul./dez. 2008, p. 131-140. Disponível em <http://www.uel.br/proppg/portal/pages/arquivos/pesquisa/semina/pdf/semina_29_2_20_29.pdf> Acesso em 04-10-2009, que em um grupo de 123 indivíduos fumantes, com idades em torno de 46 anos, a idade média de início do uso de nicotina foi de 16 anos.