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Bioética no estado de direito plurinacional

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CULTURA É VIDA

Durante 500 anos, desde o inicio do processo de invasão e colonização das "Américas" pelos europeus, a cultura destes, com pretensão de superioridade, foi imposta aos povos originários. A invasão, colonização e dominação ocorreram não só pela força das armas, mas por meio de uma imposição cultural na qual a religião teve um papel fundamental. Assim, desde o inicio do processo, religiosos europeus, entre eles os dedicados jesuítas, passaram a evangelizar os chamados "indígenas" (povos originários).

Imagine o leitor se de repente aparecessem seres extraterrestres que se mostram superiores, com tecnologia e armas mais sofisticadas. Estes seres descem de suas "embarcações flutuantes" e trazem objetos desconhecidos e ideias novas. Então nos revelam que tudo que acreditamos, tudo que nossos pais, nossos ancestrais nos ensinaram não tem valor. Estes seres nos revelam que nosso Deus não existe, nossa crença é falsa, que Jesus Cristo não existiu, que os valores cristãos não são corretos e que nossa forma de viver não é boa. O que estes seres fizeram conosco? Retiraram nossas raízes, nossos referenciais de vida, nossas coordenadas. Sem estas coordenadas, nos perdemos, enfraquecemos, enlouquecemos.

Isto os invasores europeus (os evangelizadores europeus) fizeram e ainda fazem com os povos originários. Estes povos, afastados de sua história, de suas crenças e valores, de seus pais e ancestrais, desenraizados, não conseguem ficar em pé. Muitos se suicidam, muitos encontram nas drogas e no álcool refúgio para o desespero.

A destruição cultural mata as pessoas.

Vamos então analisar o artigo 7º, que mostra o espírito do projeto de lei acima descrito. Este dispositivo estabelece que "serão adotadas medidas para a erradicação das práticas tradicionais nocivas, sempre por meio da educação e do diálogo em direitos humanos, tanto em meio às sociedades em que existem tais práticas, como entre os agentes públicos e profissionais que atuam nestas sociedades. Os órgãos governamentais competentes poderão contar com o apoio da sociedade civil neste intuito."

É obvio que a partir de nossos referenciais religiosos e culturais condenamos a prática de infanticídio, mas não estaremos, de novo, para salvar vidas, matando de outra forma? Novamente, partindo de um pressuposto de superioridade da civilização europeia, não estaríamos ignorando nossos próprios problemas?

Repetimos 500 anos de história europeia retornando às tristes teses de Sepúlveda que até hoje sustentam as intervenções humanitárias que matam mais do que o problema que visam resolver. Juan Ginés Sepúlveda (século XVI) escreveu sobre os "ameríndios":

"bárbaros, simplórios, iletrados e não instruídos, brutos totalmente incapazes de aprender qualquer coisa que não seja atividade mecânica, cheios de vícios, cruéis e de tal tipo que se aconselha que sejam governados por outros." [06]

Interessante nesta comparação como, naquela época e hoje, as atrocidades cometidas pelos civilizados não eram vistas como atrocidades. A inquisição, a queima de pessoas em fogueiras, as torturas, a fome, a violência urbana e rural, a ganância, a propriedade privada e as guerras não eram coisas de bárbaros. O mesmo continua hoje. A fome, as favelas, a desnutrição, a ganância desmedida, a propriedade privada, a guerra, a criminalidade e a violência policial contra os pobres, inclusive crianças e adolescentes, a tortura sistemática nas cadeias e delegacias não incomoda os civilizados. Selvagens e iletrados são os outros.

Sepúlveda influencia claramente a política externa das potências ocidentais. Este pensador europeu escreveu a sua segunda tese:

"os índios devem aceitar o jugo espanhol mesmo que não o queiram, como retificação (enmienda, emendentur) e punição por seus crimes contra a lei divina e natural com os quais estão manchados, principalmente a idolatria e o costume ímpio do sacrificio humano." [07]


OS "ÍNDIOS" EM MUSEUS

De outro lado, a política alternativa a intervenção civilizadora e a equivocada criminalização, invasão e imposição cultural tem sido a "museificação" dos povos originários no Brasil. Se a tentativa da solução do "problema" por meio do direito penal e a imposição de uma visão "civilizada" do mundo contra a barbárie ou selvageria "indígena" é equivocada, também não é correto colocar os povos originários em redomas de vidro para serem preservados como peças de museus longe do contato com a civilização. Esta visão talvez seja ainda mais preconceituosa do que a anterior, e continua a tratar os povos originários como inferiores, que não podem ter contato com a "civilização" pois podem ter sua "frágil" cultura contaminada ou destruída pela "forte" civilização. Esta visão é perversa, pois nega a história para estes povos, que se tornam peças de museus para antropólogos estudarem.

Esta tem sido a postura adotada no Brasil em diversos momentos. Sob o argumento de proteção destas culturas (vista como frágeis e que por isto precisam ser mantidas no museu da história) negam o diálogo e a possibilidade destes povos serem agentes de sua história, e mais, se integrarem em condição de igualdade para a construção de um mundo plural, onde poderiam contribuir fortemente para a construção de agendas comuns.

Não é esta a visão do Estado plurinacional.


CRIAR ESPAÇOS DE DISCUSSÃO IGUAL SEM SUPERIORIDADES: ESTA É A PROPOSTA DO ESTADO PLURINACIONAL

Qual a diferença da proposta do Estado plurinacional na Bolívia e Equador? A fundamental diferença é o fato de que, neste Estado, até mesmo por serem majoritários, os povos originários assumiram a sua própria história, e sem excluir aqueles que os excluíram durante 500 anos, passaram a construir um "Estado" que, de forma diferente do Estado nacional, construído pelos invasores europeus e seus descendentes, tem espaço para todos em efetiva diversidade.

A questão acima estudada, do infanticídio em algumas culturas originarias, pode ser colocada dentro de uma nova perspectiva, uma nova equação.

Assim como o Estado plurinacional pode servir de uma alternativa entre culturalismo e universalismo, a lógica da plurinacionalidade pode servir de alternativa entre o intervencionismo "civilizador" de um lado e a "museificação" preconceituosa de outro lado.

A criação de espaços institucionalizados e permanentes de diálogos entre os diversos grupos sociais, étnicos, culurais, presentes em um espaço territorial determinado (que finalmente pode ser todo o globo mas pode começar nos Estados) deve colocar, em condição de igualdade de fala, todos estes grupos.

Este novo arranjo de poder nos Estados deve partir do reconhecimento de múltiplos ordenamentos jurídicos e da construção de um ordenamento constitucional comum, dialogicamente construído em torno de uma agenda mínima, constantemente revista e ampliada, de direitos fundamentais.

Assim, cada comunidade local (não necessariamente étnica) poderá construir ou preservar seu próprio direito de família assim como seu próprio direito de propriedade com tribunais locais para resolver as questões nestes âmbitos. No mesmo momento, a construção de espaços institucionais "plurinacionais", deve garantir que estes diversos grupos sociais (étnicos ou não) possam dialogar permanentemente em condição de igualdade (sem presunções de superioridade civilizacional, étnica ou qualquer outra pretensão) para a construção de uma agenda histórica e dinâmica de direitos humanos.

Assim, pode ser que um dia acordemos em não mais matar as pessoas em sistemas econômicos egoístas; na ganância da sociedade de consumo; nas guerras; nos conflitos urbanos; pode ser resolvamos não matar mais as crianças de fome ou em qualquer outra forma de infanticídio.


CONCLUSÕES

Para a compreensão da grande contribuição do Estado Plurinacional e do constitucionalismo boliviano e equatoriano para a construção de um novo paradigma democrático de Estado que supere os 500 anos de Estado nacional, precisamos pontuar algumas questões:

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a)Vimos que o Estado moderno surge a partir da afirmação de uma esfera territorial intermediária de poder: o poder dos reis entre o poder dos impérios (multiétnico e descentralizado) e o poder dos senhores feudais (local e fragmentado);

b)Para que o poder deste novo Estado fosse reconhecido, foi necessário construir uma nacionalidade por sobre as nacionalidades pré-existentes. Assim foi inventado o espanhol, como uma identidade por sobre as identidades anteriores de castelhanos, galegos, bascos, catalães e outros, processo que se repetiu em escalas diferentes na França, Portugal, Reino Unido e vários outros Estados nacionais que se formaram nos últimos quinhentos anos;

c)Este Estado nacional uniformiza valores por meio, inicialmente, da religião. A partir daí e gradualmente construído todo um aparato burocrático que permitirá o desenvolvimento do capitalismo: o povo nacional, a moeda nacional, os bancos nacionais, os exércitos nacionais (fundamental para a expansão europeia a busca de recursos para o desenvolvimento de sua economia) e a polícia (fundamental para o controle e repressão dos pobres excluídos do sistema econômico desigual);

d)Desde então, este modelo uniformizador vem se reproduzindo, até mesmo nas novas formas descentralizadas de Estado como os Estados federais, os Estados regionais e o Estado autonômico espanhol. Nestes Estados, mesmo reconhecendo a diversidade cultural, linguística, a base uniformizadora do direito de propriedade (que sustenta um sistema econômico único) e o direitos de família (que sustenta os valores deste sistema econômico) permanecem mais ou menos intactas, mas sólidas;

e)A uniformização econômica fundada na uniformização do direito de família e do direito de propriedade permanece também em novas formas jurídicas como, por exemplo, o direito comunitário europeu;

f)Nas Américas os Estados nacionais tiveram um processo de formação diferenciado: enquanto na Europa os mais diferentes foram excluídos fisicamente (muçulmanos e judeus) e os menos diferentes foram uniformizados (os grupos étnicos internos), na América os Estados formados que se tornaram independentes nos séculos XVIII e XIX, foram construídos pelos descendentes dos europeus para os homens brancos descendentes dos europeus. Os povos originários, chamados de índios pelos perdidos invasores europeus, foram radicalmente excluídos da ordem jurídica constitucional nascente, assim como os imigrantes forçados da África que tiveram suas vidas escravizadas;

g)Assim surgiram nas Américas, Estados nacionais para 20% (este é um número simbólico uma vez que encontramos Estados que até hoje a exclusão supera este número). Nos Estados Unidos, a população carcerária já atinge 2.750.000 pessoas (dois milhões setecentos e cinquenta mil pessoas) sendo que destes, 80% são negros e hispânicos. Só de homens negros são 800 mil presos e mulheres negras 75 mil presas. [08] Este fenômeno se repete em toda a América. No Brasil só os pobre são presos. A maioria dos povos originários na Bolívia, Equador e Chile foram radicalmente excluídos e só agora, com governos democráticos finalmente eleitos (Evo Morales na Bolívia; Rafael Correa no Equador e Michelle Bachelet no Chile), a situação começa a mudar;

h)A onda democrática na América Latina trouxe uma importante novidade: a previsão de um Estado plurinacional, onde cada grupo étnico poderá manter o seu próprio direito de família e o seu próprio direito de propriedade, mantendo ainda tribunais para resolver as questões nestas esferas;

i)Esta novidade pode finalmente representar uma ruptura com 500 anos de hegemonia do paradigma do Estado nacional que representa a hegemonia europeia;

j)Este novo constitucionalismo plurinacional pode fundamentar uma nova ordem internacional democrática e logo igualitária exige a coragem de romper com o universalismo europeu [09] que gerou os direitos humanos "universais" europeus e uma ordem desigual cultural, econômica e social favorável aos Estados do norte (Europa ocidental, EUA e Canadá) reproduzidos nos textos preconceituosos de suposta superioridade europeia presentes no Tratado de Versalhes e com fortes resquícios na Carta das Nações Unidas (como, por exemplo, no sistema de tutela).

Um novo Estado constitucional democrático plurinacional é possível assim como uma nova ordem mundial e a construção de um direito internacional (talvez mundial) democrático deve partir da superação das pretensões hegemônicas; das falsas declarações ou suposições disfarçadas de superioridade cultural. Uma nova ordem constitucional pode fundamentar a construção de uma nova ordem mundial democrática o que exige a construção de espaços permanentes de diálogo em condições reais de igualdade de manifestação, de igualdade de fala e de igualdade de voto nas deliberações. Este novo constitucionalismo latino-americano deve fundamentar uma nova ordem mundial democrática, o que exige o reconhecimento dos novos atores das relações mundiais, de novos sujeitos de um direito internacional que, talvez, a partir daí, seja finalmente democrático e deixe de ser meramente internacional, mas efetivamente mundial: um constitucionalismo mundial.


BIBLIOGRAFIA

CREVELD, Martin van Creveld. Ascensão e declínio do Estado, Editora Martins Fontes, São Paulo, 2004.

CUEVA, Mario de la. La idea del Estado, Fondo de Cultura Econômica, Universidad Autônoma de México, Quinta Edição, México, D.F., 1996.

ALMEIDA, Ileana. El Estado Plurinacional – valor histórico e libertad política para los indígenas ecuatorianos. Editora Abya Yala, Quito, Ecuador, 2008.

WALLERNSTEIN, Immanuel. O universalismo europeu, Editora Boitempo, 2007, São Paulo.

WACQUANT, Loïc. As duas faces do gueto, Editora Boitempo, São Paulo, 2008


Notas

  1. CREVELD, Martin van Creveld. Ascensão e declínio do Estado, Editora Martins Fontes, São Paulo, 2004 e CUEVA, Mario de la. La idea del Estado, Fondo de Cultura Econômica, Universidad Autônoma de México, Quinta Edição, México, D.F., 1996.
  2. Utilizamos neste texto as palavras identidade e identificações quase como sinônimos, ou seja, uma identidade se constrói a partir da identificação de um grupo com determinados valores. Importante lembrar que o sentido destas palavras é múltiplo em autores diferentes. Podemos adotar o sentido de identidade como um conjunto de características que uma pessoa tem e que permitem múltiplas identificações sendo dinâmicas e mutáveis. Já a ideia de identificação se refere ao conjunto de valores, características e práticas culturais com as quais um grupo social se identifica. Nesse sentido não poderíamos falar em uma identidade nacional ou uma identidade constitucional, mas sim em identificações que permitem a coesão de um grupo. Identificação com um sistema de valores ou com um sistema de direitos e valores que o sustentam, por exemplo.
  3. ALMEIDA, Ileana. El Estado Plurinacional – valor histórico e libertad política para los indígenas ecuatorianos. Editora Abya Yala, Quito, Ecuador, 2008, pág.21.
  4. ALMEIDA, Ileana. El Estado Plurinacional – valor histórico e libertad política para los indígenas ecuatorianos. Ob. Cit., pág.19. 20
  5. ALMEIDA, Ileana. El Estado Plurinacional – valor histórico e libertad política para los indígenas ecuatorianos. Ob. Cit., pág.19. 20
  6. WALLERNSTEIN, Immanuel. O universalismo europeu, Editora Boitempo, 2007, São Paulo, pagina 32.
  7. WALLERNSTEIN, Immanuel. O universalismo europeu, Editora Boitempo, 2007, São Paulo, pagina 34.
  8. WACQUANT, Loïc. As duas faces do gueto, Editora Boitempo, São Paulo, 2008.
  9. WALLERNSTEIN, Immanuel. O universalismo europeu – a retórica do poder, Editora Boitempo, São Paulo, 2007.
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Sobre o autor
José Luiz Quadros de Magalhães

Especialista, mestre e doutor em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais<br>Professor da UFMG, PUC-MG e Faculdades Santo Agostinho de Montes Claros.<br>Professor Visitante no mestrado na Universidad Libre de Colombia; no doutorado daUniversidad de Buenos Aires e mestrado na Universidad de la Habana. Pesquisador do Projeto PAPIIT da Universidade Nacional Autonoma do México

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAGALHÃES, José Luiz Quadros. Bioética no estado de direito plurinacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2386, 12 jan. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14151. Acesso em: 22 nov. 2024.

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