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A situação atual da teoria dos princípios no Brasil

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05/02/2010 às 00:00
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3 PRINCÍPIOS JURÍDICOS

O estudo dos princípios jurídicos e da distinção entre princípios e regras não é recente. Em 1941, Walter Wilburg (Die Elemente des Schadensrechts), e em 1956, Josef Esser (Grundsatz und Norm), já tratavam desses temas. Mas esse esses estudos ganham força total a partir das obras de Ronald Dworkin (Taking Rights Seriously, 1977) e Robert Alexy (Theorie der Grundrechte, 1984) (SILVA, 2003, p. 609).

3.1.1 Ronald Dworkin

Ronald Dworkin realizou um "ataque geral contra o positivismo", pois, em sua visão, os positivistas consideram, de maneira equivocada, o direito como um sistema composto exclusivamente de regras, ignorando os princípios (2007, pp. 35-36).

Ele dirá que os juristas não se valem apenas das regras, pois em certas situações, principalmente nos chamados casos difíceis, aqueles em que não conseguem identificar uma regra jurídica aplicável, recorrem a padrões que não funcionam como regras (2007, p. 36).

Esses padrões seriam políticas ou princípios [08], ressalvando que ao longo do texto utiliza o termo princípio para se referir de maneira genérica a esses dois tipos de padrões. As políticas estabelecem "um objetivo a ser alcançado, em geral uma melhoria em algum aspecto econômico, político ou social da comunidade." Ao passo que os princípios, em sentido estrito, trariam "um padrão que deve ser observado, não porque vá promover ou assegurar uma situação econômica, política ou social considerada desejável, mas porque é uma exigência de justiça ou equidade ou alguma outra dimensão da moralidade". Como exemplo de princípio, cita o de que "nenhum homem pode beneficiar-se dos erros que comete" (DWORKIN, 2007, pp. 36-40).

A diferença entre princípios e regras, diz Dworkin, é de natureza lógica. As regras "são aplicáveis à maneira tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão". Já um princípio enuncia "uma razão que conduz o argumento em uma certa direção". Mas pode haver outro princípio que argumente na direção oposta. Pode ser, então, que aquele princípio não prevaleça, "mas isso não significa que não se trate de um princípio de nosso sistema jurídico, pois em outro caso, quando essas considerações em contrário estiverem ausentes ou tiverem menor força, o princípio poderá ser decisivo" (DWORKIN, 2007, pp. 39-42).

Outra diferença, decorrente da primeira, é que os "princípios possuem uma dimensão que as regras não têm – a dimensão de peso ou de importância". No caso concreto, deve ser levada em conta a força relativa de cada princípio. Regras não têm essa dimensão. Não se pode dizer que "uma regra é mais importante que outra enquanto parte do mesmo sistema de regras". [09] (DWORKIN, 2007, pp. 42-43).

3.1.2 Robert Alexy

Robert Alexy apresenta uma distinção entre regras e princípios a partir da realizada por Dworkin, como o próprio admite (2008, p. 91, nota 27).

Dirá expressamente que as regras e os princípios são espécies de normas. "Tanto regras quanto princípios são normas, porque ambos dizem o que deve ser. Ambos podem ser formulados por meio das expressões deônticas básicas do dever, da permissão e da proibição" (ALEXY, 2008, p. 87).

Princípios "são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes", considerados, por isso, como mandamentos de otimização (com esse conceito o autor também inclui as permissões e as proibições), satisfeitos em grau variados, dependendo das possibilidades jurídicas e fáticas. [10] (ALEXY, 2008, p. 90).

Por outro lado, as regras "são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas", que contêm determinações. Se a regra é válida, então, "deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos" (ALEXY, 2008, p. 91).

A diferença fica mais clara nos casos de colisões entre princípios e de conflitos entre regras. Em ambos os casos, "duas normas, se isoladamente aplicadas, levariam a resultados inconciliáveis entre si, ou seja, a dois juízos concretos de dever-ser jurídico contraditórios", mas a forma de solução dessa situação é distinta se as normas são princípios ou se são regras (ALEXY, 2008, p. 92).

Um conflito entre regras somente pode ser solucionado de duas maneiras. Com a introdução, em uma das regras, de uma cláusula de exceção que elimine o conflito; nesse caso, ambas as regras seriam válidas. Ou com pelo menos uma das regras sendo declarada inválida, nessa situação uma das regras será extirpada do ordenamento jurídico; essa invalidez pode se dar de diferentes formas, por exemplo, usando os institutos lex posterior derogat legi priori (critério cronológico) ou lex specialis derogat legi generali (critério de especialidade). [11] (ALEXY, 2008, pp. 92-93).

A colisão entre princípios é solucionada de maneira diversa. Quando dois princípios colidem, um deles terá que ceder. Mas isso não significa "que o princípio cedente deva ser declarado inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção". Ocorre, na verdade, que um dos princípios terá precedência sobre o outro no caso concreto, através do sopesamento de interesses; mudando as condições, pode ser que a questão da precedência seja solucionada de forma oposta. Por isso o autor, seguindo claramente Dworkin, diz que "os princípios tem pesos diferentes e que os princípios com o maior peso tem precedência". [12] (ALEXY, 2008, pp. 93-94).

Conclui que "conflitos entre regras ocorrem na dimensão de validade, enquanto as colisões entre princípios – visto que só princípios válidos podem colidir – ocorrem, para além dessa dimensão, na dimensão de peso" (ALEXY, 2008, p. 94).

Outra distinção é constatada pelo "distinto caráter prima facie das regras e dos princípios". Os princípios não contêm um "mandamento definitivo, mas apenas prima facie", representam razões que podem ser afastadas por razões antagônicas. Portanto, "não dispõem da extensão de seu conteúdo em face dos princípios colidentes das possibilidades fáticas". O caso das regras é diverso, pois elas "exigem que seja feito exatamente aquilo que elas ordenam", então, vale definitivamente aquilo que elas prescrevem. [13] (ALEXY, 2008, pp. 103-104).

3.2 A distinção entre princípios e regras no Brasil

Como ressalta Eros Grau: "A última década do século passado é marcada, no campo da meditação sobre o direito, pelo paradigma dos princípios". Mas isso se passou de tal modo que foram eles banalizados, (2003, p. 46) a euforia é tamanha que hoje se fala até em "Estado Principiológico". [14] (ÁVILA, 2007, p. 23).

Em um já clássico trabalho sobre os princípios jurídicos relativos ao direito do consumidor, percebe-se um exemplo dessa banalização, já que a violação de um princípio, de acordo com Nelson Nery Júnior, seria a forma mais grave de inconstitucionalidade ou de ilegalidade, "porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra" (1992, p. 51). Veremos mais a frente que as coisas não devem ser colocadas nesses termos.

Disso resulta que não apenas se confundem os princípios gerais de direito com os princípios jurídicos, mas também a distinção entre princípios e regras é feita (ou não é feita, na verdade) de tal maneira que nítidas regras são consideradas princípios.

É comum na doutrina pátria que se proceda, preliminarmente, à distinção entre princípios e regras com base nas teorias de Dworkin e Alexy para, todavia, ser feita uma tipologia dos princípios constitucionais, no moldes das concepções tradicionais, que, de acordo com Virgílio Afonso da Silva, define princípios como "mandamentos nucleares" ou "disposições fundamentais de um sistema", [15] (2003, p. 613) confundindo os dois diferentes tipos de princípio já aludidos.

Princípios seriam então as "normas mais fundamentais do sistema, enquanto as regras costumam ser definidas como uma concretização desses princípios e teriam, por isso, caráter mais instrumental e menos fundamental". Mas na teoria de Robert Alexy princípio "é um conceito que nada diz sobre a fundamentalidade da norma", uma norma, então, seria classificada como princípio "apenas em razão de sua estrutura normativa e não de sua fundamentalidade" (SILVA, 2003, pp. 612-613). Daí nota-se a diferença elementar entre princípios gerais de direito e os princípios jurídicos.

A renomada obra de Paulo Bonavides, Curso de Direito Constitucional, é um exemplo desse posicionamento criticado pelo autor, pois apesar de se valer das teses de Dworkin e Alexy, concluirá que os princípios:

Fazem eles a congruência, o equilíbrio e a essencialidade de um sistema jurídico legítimo. Postos no ápice da pirâmide normativa, elevam-se, portanto, ao grau de norma das normas, de fonte das fontes. São qualitativamente a viga mestra dos sistemas, o esteio da legitimidade constitucional, o penhor da constitucionalidade das regras de uma Constituição (2008, p. 294).

Por outro lado, continua Virgílio Afonso da Silva, os autores brasileiros procedem também de maneira contraditória ao efetuar uma distinção entre princípios e regras, pois "muito do que as classificações tradicionais chamam de princípio, deveria ser, se seguirmos a forma de distinção proposta por Alexy, chamado de regra". Como exemplo os chamados "princípios" do nulla poena sine lege, da legalidade e da anterioridade seriam classificados como regras. De maneira que, "mesmo quando se diz adotar a concepção de Alexy, ninguém ousa deixar esses ‘mandamentos fundamentais’ de fora das classificações dos princípios para incluí-los na categoria das regras" (2003, p. 613).

Essa confusão ocorre também pela ideia de que o critério da generalidade distingue os princípios das regras, mas como Robert Alexy elucida, há normas de alto grau de generalidade que não são princípios, mas sim regras, já que exigem algo que sempre ou é cumprido, ou não. Como é o caso do artigo 103, § 2º, da Constituição alemã, (2008, p. 109) correspondente ao enunciado do inciso XXXIX, do artigo 5º, da Constituição Federal brasileira – "não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal", ser chamado de "princípio" da legalidade ou nullum crimen nulla poena sine lege de maneira unânime pela doutrina, principalmente penalistas (BATISTA, 2007, pp. 65 e seg.; JESUS, 2005, p. 9). Nessa hipótese, na verdade, o dispositivo constitucional traz uma regra.

Virgílio Afonso da Silva conclui ao dizer que "classificações ou são coerentes e metodologicamente sólidas, ou são contraditórias". Por isso, "se se define ‘princípio’ pela sua fundamentalidade, faz sentido falar-se em princípio da legalidade ou princípio do nulla poena sine lege. Essas são, sem dúvida, duas normas fundamentais em qualquer Estado de Direito." Caso, no entanto, se prefira utilizar os critérios estabelecidos por Robert Alexy não se deve incluir aquelas "normas tradicionalmente chamadas de princípios – legalidade etc.-, visto que elas, a despeito de sua fundamentalidade, não poderiam mais ser consideradas como princípios, devendo ser incluídas na categoria de regras". De maneira que há regras tão ou mais importantes que muitos princípios, como é o caso da legalidade ou da nulla poena sine lege (2003, p. 64).

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3.3 A proposta de dissociação entre princípios e regras de Humberto Ávila

3.3.1 Críticas à distinção fraca e à distinção forte

De acordo com Humberto Ávila, pode-se falar em duas correntes que definem os princípios: uma seria a "distinção fraca" e outra a "distinção forte" (2007, p. 84). A distinção fraca, de certa forma se adequada às críticas efetuadas por Virgílio Afonso da Silva, e a outra, a distinção forte, seria a tese defendida acima pelo referido autor.

A primeira, que pode ser denominada distinção fraca, sustenta que os princípios são normas de elevado grau de abstração e generalidade, dirigem-se a um número indeterminado de pessoas e situações, exigindo um grande subjetivismo do aplicador; são os alicerces, as vigas-mestras ou os valores do ordenamento jurídico. As regras, ao contrário, possuem pouco ou nenhum grau de abstração e generalidade, por isso, exigem pouca ou nenhuma influência de subjetividade do intérprete (ÁVILA, 2007, p. 84).

Essa corrente fundamenta a distinção no grau de indeterminação das normas. Assim, os princípios são mais indeterminados, fluídos, permitindo maior mobilidade valorativa do aplicador, ao passo que as regras são menos indeterminadas ou pretensamente determinadas, o que elimina ou diminui drasticamente a liberdade do intérprete (ÁVILA, 2007, pp. 84-85).

São dois os problemas provocados pela distinção fraca. Primeiro, por distinguir as normas tendo em vista algo que é comum a todas elas, a indeterminação, transforma as regras em normas de segunda categoria, [16] esquecendo que elas possuem um conteúdo valorativo, pois servem, no mínimo, de meio para a realização de dois valores: o valor formal da segurança jurídica e o valor substancial referente a uma finalidade que é subjacente, levando a crença de que o "intérprete não tem liberdade alguma de configuração dos conteúdos semântico e valorativo das regras". O que resulta, também, em uma "supervalorização dos princípios" (ÁVILA, 2007, pp. 85-86).

Em segundo lugar, tal distinção tem levado autores a qualificar como princípios normas que não são e, pior, que sequer possuem elevado grau de abstração e generalidade. Por exemplo, a norma que veda a utilização de provas obtidas por meios ilícitos no processo, inciso LVI, do artigo 5º, da Constituição Federal, é uma regra. Apesar disso, os autores em geral a incluem no rol dos chamados princípios processuais penais (OLIVEIRA, Eugênio, 2009, p. 41; BONFIM, 2009, pp. 48-49; CAPEZ, 2003, p. 31.). Sendo assim, "a doutrina, de um lado cai em contradição e, de outro – o que é bem pior -, legitima a flexibilização na aplicação de uma norma que a Constituição, pela técnica de normatização que utilizou, queria menos flexível" (ÁVILA, 2007, p. 86).

Enquanto que a distinção forte, capitaneada por Dworkin e Alexy, [17] afirma que os princípios são diferentes das regras "relativamente ao modo de aplicação e ao modo como são solucionadas as antinomias que surgem entre eles" (ÁVILA, 2007, p. 87). Apesar de ser a corrente mais difundida na doutrina, Humberto Ávila aponta duas inconsistências.

O modo de aplicação das espécies normativas, diz o autor, "não é adequado para diferenciá-las, na medida em toda norma jurídica é aplicada mediante um processo de ponderação", não apenas os princípios; podendo conduzir à uma trivialização das regras, "transformando-as em normas que são aplicadas de modo automatizado e sem a necessária ponderação de razões". [18] (ÁVILA, 2007, pp. 88-89).

O mesmo ocorre com o modo de solução de antinomias, "embora o conflito entre regras resolva-se, normalmente, com a decretação de invalidade de uma delas, nem sempre isso ocorre", podendo a superação de uma regra ocorrer por razões extraordinárias, como a utilização do postulado da razoabilidade. E se tratando de princípios, o enfoque em sua classificação nas hipóteses de colisão conduz ao uso "arbitrário dos princípios, relativizados conforme o interesse em jogo" (ÁVILA, 2007, pp. 88-89).

Essa corrente também padece do mal de qualificar de "princípios" normas que não têm essa propriedade, como visto na distinção fraca. Além de generalizar o entendimento de que "descumprir um princípio é mais grave que descumprir uma regra", enquanto, em geral, o correto é o contrário; pois uma regra reflete uma solução provisória para um "conflito de interesses já conhecido ou antecipável pelo Poder Legislativo", devido à sua pretensão de decidibilidade, ao passo que os "princípios apenas oferecem razões complementares para solucionar um conflito futuramente verificável" (ÁVILA, 2007, p. 90).

3.3.2 Dissociação entre princípios e regras

De início, cabe ressaltar que Humberto Ávila propõe uma classificação que admite "alternativas inclusivas", no sentido de que os dispositivos podem servir de base, simultaneamente, para mais de uma única espécie normativa. Um dispositivo legal ou vários deles interpretados conjuntamente, ou mesmo a implicação lógica deles decorrente, pode exprimir uma dimensão imediatamente comportamental (regras) ou finalística (princípios). Afasta a ideia de "alternativas exclusivas" entre as espécies normativas, visto que a observação de uma espécie normativa não exclui a existência de outra (ÁVILA, 2007, pp. 68-69).

Como exemplo, analisa o dispositivo constitucional que exige lei formal para a instituição ou aumento de tributo (artigo 150, inciso I). Esse dispositivo é considerado, de forma geral, como sendo um princípio pela doutrina, (MACHADO, 2004, p. 94; TORRES, 2005, p. 106.) no que concorda o autor ao dizer que pode ser examinado como princípio "porque estabelece como devida a realização dos valores de liberdade e de segurança jurídica". Mas também pode ser examinado como regra, porque condiciona a validade da lei à observância de um determinado procedimento legislativo (ÁVILA, 2007, pp. 68-69).

Propõe três critérios de dissociação fundamentais: critério da natureza do comportamento prescrito, critério da natureza da justificação exigida e critério da medida de contribuição para a decisão.

De acordo com o critério do comportamento prescrito, tanto as regras quanto os princípios fazem referência a fins e a condutas. As regras são normas imediatamente descritivas, pois descrevem as condutas a serem adotadas ao estabelecer obrigações, permissões e proibições. Essas condutas servem à realização de fins, por isso também são definidas como normas mediatamente finalísticas, visto que estabelecem indiretamente fins ao estabelecerem o comportamento devido.

Os princípios são normas imediatamente finalísticas, "já que estabelecem um estado de coisas para cuja realização é necessária a adoção de determinados comportamentos". Esse estado ideal de coisas a ser atingido, por óbvio, é um fim, sua realização depende de condutas necessárias. Por exemplo, o princípio do Estado de Direito estabelece estados de coisas, como a previsibilidade da legislação, logo, é necessária a adoção de determinadas condutas, como a publicação com antecedência da lei (ÁVILA, 2007, pp. 71-73).

Já o critério da justificação tem como base a ideia de que a interpretação e a aplicação das normas permitem a diferença entre suas espécies se for centrada no modo de justificação, que pode ser observado preliminarmente, não no modo de aplicação (tudo ou nada e mais ou menos), que só pode ser confirmado ao final.

Dessa forma, no caso das regras o aplicador avalia a correspondência entre os fatos e o conceito da norma e a finalidade que a esta dá suporte. Quando a correspondência ocorre facilmente, o aplicador necessita de uma argumentação menor, pois a descrição normativa serve, por si só, como justificação. Nos chamados casos difíceis, por outro lado, é necessário um ônus maior de argumentação, tendo em vista que há uma correlação entre o fato e a descrição normativa, mas pode não ser adequada à finalidade que dá suporte a regras ou pode ser esta superável por razões excepcionais. Por haver essa correlação entre fatos e descrição normativa, as regras possuem "caráter retrospectivo (past-regarding), na medida em que descrevem uma situação de fato conhecida pelo legislador".

Ao passo que no caso dos princípios, deve ser feita "uma avaliação da correlação entre o estado de coisas posto como fim e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária". Daí ser fundamental a análise de casos paradigmáticos (não casos fáceis nem difíceis) para identificar o conteúdo normativo dos princípios, pois demonstram os efeitos decorrentes da adoção de um princípio. Como não há correlação entre fatos e descrição normativa, diferente das regras, os princípios "possuem caráter prospectivo (future-regarding), já que determina um estado de coisas a ser construído" (ÁVILA, 2007, pp. 73-76).

Por fim, o critério da contribuição para a decisão demonstra que os princípios consistem em normas primariamente complementares e preliminariamente parciais, em razão de não terem a pretensão de gerar uma solução específica e abrangerem apenas parte dos aspectos relevantes para uma tomada de decisão, contribuindo ao lado de outras razões. Um exemplo claro é o princípio de proteção dos consumidores que, por um lado, não pretende prescrever todas e quaisquer medidas para alcançar o fim e, por outro, ainda se harmoniza com outras razões além da proteção do consumidor, como a livra iniciativa e a propriedade.

Já as regras consistem em normas preliminariamente decisivas e abarcantes, pois abrangem os aspectos relevantes para a tomada de decisão e aspiram gerar uma solução específica para o conflito entre razões. Como exemplo, o artigo 150, inciso VI, "d", da Constituição Federal afasta, por si só, a inclusão de outros objetos, como quadros ou estátuas, pois, apesar de ter como finalidade a disseminação da cultura, apenas veda a instituição de impostos sobre livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão (ÁVILA, 2007, pp. 76-78).

Vale a pena, por fim, transcrever a forma sintética com que o autor dissocia os princípios das regras:

As regras são normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos.

Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção. [19] (2007, pp. 78-79).

Pelo exposto, nota-se que a Teoria dos Princípios elaborada por Humberto Ávila é a que apresenta maiores qualidades técnicas em comparação com o restante da doutrina pátria; pois, além de sua originalidade, não confunde os princípios gerais do direito com os princípios jurídicos e elabora uma rigorosa dissociação entre princípios e regras.

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Sobre o autor
Guilherme Bohrer Lopes Cunha

Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CUNHA, Guilherme Bohrer Lopes. A situação atual da teoria dos princípios no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2410, 5 fev. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14289. Acesso em: 23 abr. 2024.

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