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A formação ética e intelectual dos magistrados e as faculdades de Direito

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Na medida em que os ocupantes de cargos típicos dos poderes Executivo e Legislativo são eleitos pelo povo, pelo menos teoricamente representam a vontade desses eleitores e estão em diálogo com a comunidade.

Os integrantes das funções típicas do Poder Judiciário, por outro lado, não são eleitos e passam a ocupar os referidos cargos através de concurso público. Esse tipo de seleção parece adequado a medir o conhecimento técnico dos candidatos a magistrados. Porém, sua higidez moral e seus valores tornam-se de difícil apreciação, pois são meros desconhecidos do povo e irão julgar lides que afetam diretamente a vida das pessoas que sequer conhecem.

Dessa constatação, de que os ocupantes do Poder Legislativo e Executivo são eleitos enquanto os integrantes do Poder Judiciário não são, partimos para a afirmação da necessidade de se conhecer o perfil dos magistrados brasileiros, não só em sua competência técnica, mas também em sua formação intelectual e ética.

O exercício da magistratura exige que, ao lado de uma formação técnica segura, exista também uma formação social, uma consciência política da função e uma ética humanista. Dessa forma, ao juiz brasileiro é colocado o dever de reconhecer a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e o pluralismo político, alicerces da democracia brasileira, de uma sociedade aberta [1].

Os juízes são aplicadores e intérpretes principais do sistema jurídico e possuem um fundamental poder em suas mãos. Não lhes cabe dizer o que é certo ou errado no momento de proferir a decisão no caso concreto. Mas a pretensão de um juiz ativo deve ser no sentido de seu poder ser um elemento a mais essencial para aprimorar a atividade jurisdicional. O juiz enquanto ser humano pode errar nas suas avaliações. Mas quando a sua decisão parte do conhecimento da realidade, os fundamentos da decisão permitem maior discussão do conteúdo decisório, na medida em que não se fecha em dogmas e enigmas.

Ressalte-se o fato de que os juízes são seres humanos e têm a singela função de adequar as normas aos fatos. Porém, mais importante do que essa mera subsunção é a necessidade de o magistrado conhecer seus próprios valores, seus preconceitos, seus contingenciamentos morais e, principalmente, pesquisar a fundo a verdade na reconstrução dos fatos sob seu juízo.

As faculdades de direito têm papel fundamental na formação do futuro juiz. De fato, a educação de um povo diz muito sobre a forma do exercício do seu poder político. A trajetória universitária daqueles que se tornarão os magistrados brasileiros é basilar para definir a maneira como exercerão suas funções.

Mas ressalte-se que não é tarefa da universidade oferecer ao Poder Judiciário magistrados prontos e acabados, tampouco garantir sua idoneidade e integridade ética e intelectual. Apesar de o Judiciário ser o único dos poderes a recrutar integrantes obrigatoriamente egressos de uma faculdade de direito, a presunção de uma formação jurídica e ética suficiente para prover os quadros da magistratura não é absoluta [2].

Porém, não restam dúvidas de que a faculdade, além de preparar tecnicamente o bacharel, tem a missão de desenvolver-lhe a sua consciência social a respeito de suas funções enquanto operadores do direito. A par disso, sem dúvida, parte também da postura mental do novo juiz a consolidação do Judiciário do futuro, apto a solucionar as controvérsias do indivíduo, do Estado e da massa, de modo eficiente, célere e, portanto, respeitado pela comunidade dos destinatários [3].

A averiguação do preparo intelectual do futuro magistrado é de extrema relevância, pois está diretamente ligada à concepção acerca do papel do juiz na sociedade. Verificar os conhecimentos técnico-jurídicos do candidato a juiz não é suficiente, "pois o juiz que oferecer apenas isso, ainda que em alto grau, não conseguirá ser mais do que um eficiente burocrata". Para a boa seleção e, consequentemente, para que se tenha uma magistratura íntegra e eficiente, é indispensável que a seleção seja de pessoas conscientes de que "os casos submetidos a sua decisão implicam interesses de seres humanos" [4].

O curso de direito que ofereça ao estudante a possibilidade de fazer pesquisas, que "estimule o conhecimento de questões filosófico-jurídicas, que estimule a sensibilidade do educando para que não atue de forma meramente racional como um autômato" [5] estará contribuindo para uma elevação direta do nível de congruência entre a realidade que se coloca perante o magistrado e a decisão tomada naquele caso concreto.

Numa pesquisa realizada pela AMB – Associação dos Magistrados Brasileiros, restou claro que não há grandes distorções estatísticas no que diz respeito às faculdades de origem dos juízes recrutados. Não existe maioria advinda de instituições públicas ou de privadas, pois os indicadores são homogêneos.

Essa homogeneidade entre os entrevistados diplomados em faculdades públicas e privadas pode ser apreendida pelos números. Possuem diploma de instituição superior pública 52,7% dos juízes que responderam à pesquisa. Já o diploma é proveniente de instituição privada em 47,3% dos casos [6].

Tal constatação nos leva a duas hipóteses. A primeira é de que os juízes não são se preparam para o concurso durante a faculdade, deixando tal tarefa para os cursos preparatórios, que abordaremos em seguida. A segunda hipótese é que a educação é um problema generalizado no Brasil e tanto as faculdades públicas quanto as faculdades privadas apresentam deficiências sérias.

Tais hipóteses são elaboradas levando em conta o grau de dificuldade de aprovação nos certames públicos para magistratura. De fato, são raros os candidatos que conseguem aprovação logo após a conclusão do curso. Essa afirmação se confirma na medida em que a exigência criada pela Constituição Federal de 1988, em recente mudança feita pela Emenda Constitucional n. 45/2004, não significou grande mudança na média de anos para aprovação em concurso, que já era elevada [7].

A pesquisa elaborada pela AMB conclui que o tempo médio após a formatura até o ingresso na carreira é de 7,2 anos. Curioso notar que essa média consiste praticamente no dobro do tempo determinado na reforma constitucional (três anos de prática jurídica) [8].

Outro fator importante de análise é o que diz respeito ao tempo de exercício da atividade profissional antes do ingresso na magistratura. A amostragem abaixo nos permite concluir que praticamente a totalidade dos entrevistados exerceu alguma atividade profissional prévia ao exercício da magistratura.

Tabela I: Exercício de atividade profissional anterior ao ingresso na magistratura em %

 

Ativa

Aposentados

SIM

96,5

98,2

NÃO

3,5

1,8

Fonte: Disponível em <www.amb.com.br> Acesso em: 27 dez. 2008.

Esse dado sugere que o corpo de magistrados não é constituído em sua maioria por indivíduos egressos imediatamente dos cursos de direito. Pelo contrário, a pesquisa retrata que o recrutamento ocorre entre profissionais do direito ou entre candidatos que precisam de algum tempo de preparação entre a conclusão do curso e a aprovação no concurso.

Conforme já alertara Boaventura Santos, a universidade não pode ser pensada fora da dicotomia educação-trabalho. Tal dicotomia passou a significar a coexistência de dois mundos diferentes que quase não se comunicam: "o mundo do trabalho e o mundo ilustrado". Cada um dos mundos precisou inevitavelmente se adequar. A resposta da universidade foi tentar compatibilizar educação humanística e formação profissional. Os resultados são, porém, bastante questionados [9].

As universidades buscam se adequar ao mercado e as pessoas tentam conciliar trabalho e estudo. Muda o perfil das próprias faculdades com a ampliação de instituições particulares, interiorização das faculdades e o aumento dos cursos noturnos. Nota-se que entre 1966 e 1995 aumentou para 50% o número de instituições particulares, ao passo que os cursos diurnos diminuíram a participação de 50% para 26% [10].

Se, por um lado, a ampliação do número de cursos, a disponibilização em cidades do interior dos estados e a maior oferta de cursos noturnos tenham gerado a maior democratização do acesso ao ensino superior, por outro, a qualidade dos cursos prestados passa a ser questionada.

Nesse sentido entende Boaventura Santos:

O questionamento da dicotomia educação-trabalho tem ainda duas implicações, de algum modo contraditórias para a posição da universidade no mercado de trabalho. Por um lado, é hoje evidente que a universidade não consegue manter sob seu controle a educação profissional. A seu lado, multiplicam-se instituições de menores dimensões, maior flexibilidade e maior proximidade ao espaço da produção com oferta maleável de formação profissional cada vez mais volátil [11].

Fala-se até mesmo de certa "decadência e vulgarização do direito e, consequentemente, da atividade jurisdicional" [12] a partir do momento em que as faculdades de direito foram sendo criadas desmedidamente. A crítica continua no sentido de que o corpo docente dessas faculdades foi sendo formado por profissionais da área jurídica, meros técnicos do direito e sem habilitação para o magistério superior, retirando a formação humanista e ética mais aprofundada.

Nesse sentido também é a crítica de Dalmo de Abreu Dallari:

Existem muitos professores que concebem e praticam o ensino jurídico como sendo a transmissão de informações sobre textos de códigos e de leis. O professor lê o texto para os seus alunos, como se estes fossem analfabetos, e faz comentários breves e superficiais, que são pouco mais do que a releitura do texto por meio de sinônimos [13].

Por outro lado, o próprio corpo de magistrados brasileiros não demonstra grande preocupação em reverter essa lacuna de aprendizagem ética mais aprofundada das escolas de direito. De acordo com a pesquisa realizada pela AMB, apenas 8,8% dos juízes que responderam às entrevistas estão matriculados em cursos de especialização. Quando indagados acerca do mestrado, esse percentual cai para 4% dos juízes que participaram da pesquisa. Já o doutorado apresenta a margem ínfima de 2,1% de magistrados cursando esse nível da pós-graduação [14].

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Nesse momento, indaga-se de que maneira a precarização da educação superior pode ser revertida no âmbito das próprias universidades. Pois a verdade é que as universidades têm deixado a formação dos alunos aquém da exigível para o exercício da magistratura.

Deve-se reforçar o ensino nos cursos de direito não no sentido da técnica, mas de uma transformação efetiva no conteúdo das grades curriculares. O que é preciso fazer "é reforçar, para todos os alunos, a formação humanística, que estimule a aquisição de conhecimentos sobre história e a realidade das sociedades humanas. Com isso é possível o profissional do direito, seja qual for a área de sua escolha, saiba o que tem sido, o que é, e o que pode ser a presença do direito e da justiça no desenvolvimento da pessoa humana e das relações sociais". Ademais, devem ser "transmitidas noções básicas de disciplinas relacionadas com os comportamentos humanos, como a antropologia, a sociologia, a psicologia. Isso porque, seja qual for o conflito jurídico, temas que envolvem conhecimentos profundos dessas áreas sempre estarão presentes e é importante que o profissional do direito saiba reconhecê-los [15].

A formação ética e intelectual do magistrado deve ter como premissa básica o fato de que o conhecimento do direito não ocorre por simples instituição ou por mera repetição de textos normativos. Pelo contrário, é preciso profundo e paciente estudo da história humana, da realidade para a qual trabalha e dos dados filosóficos e culturais de cada comunidade, que são minuciosamente diferentes e relevantes.

Enfim, o que tanto as faculdades de direito quanto os próprios magistrados não podem perder de vista é que os direitos humanos antecedem e subordinam o direito positivo. Conhecê-los significa entender verdadeiramente a realidade, pois os direitos presentes no ordenamento jurídico têm como suporte justamente as lutas travadas em favor do respeito à dignidade humana [16].


NOTAS

[1] LEARDINI, Márcia. A importância da formação do magistrado para o exercício de sua função política. In: Recrutamento e formação de magistrados no Brasil. José Maurício Pinto de Almeida, Márcia Leardini (Coords.). Curitiba: Juruá, 2007, p. 118-119.

[2] NALINI, José Renato. O desafio de criar juízes. In: Recrutamento e formação de magistrados no Brasil. José Maurício Pinto de Almeida, Márcia Leardini (Coords.). Curitiba: Juruá, 2007, p. 91.

[3] COLNAGO, Cláudio de Oliveira Santos. O processo de formação e seleção do magistrado brasileiro. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/6113>. Acesso em: 26 dez. 2008.

[4] DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. 3.ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 28-29.

[5] DALLARI, op.cit., p. 32.

[6] SADEK, Maria Tereza. Magistrados: uma imagem em movimento. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 27.

[7] Inovação trazida pela Emenda Constitucional n. 45/2004. Trata-se da exigência de três anos, no mínimo, de atividade jurídica de bacharel em direito candidato ao concurso da magistratura (CF, art. 93, I).

[8] SADEK, op.cit., p. 29.

[9] SANTOS, Boaventura de Sousa. Da ideia de universidade à universidade de ideias. In: Revista Crítica de Ciências Sociais. Coimbra: Centro de Estudos Sociais (CES), n. 27/28, Jun., 1989, p. 20.

[10] COLNAGO, Cláudio de Oliveira Santos. O processo de formação e seleção do magistrado brasileiro. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/6113>. Acesso em: 26 dez. 2008.

[11] SANTOS, Boaventura de Sousa. Da ideia de universidade à universidade de ideias. In: Revista Crítica de Ciências Sociais. Coimbra: Centro de Estudos Sociais (CES), n. 27/28, Jun., 1989, p. 2023.

[12] ARRUDA, Augusto Francisco Mota Ferraz de. Formação e recrutamento de juízes. In: Recrutamento e formação de magistrados no Brasil. José Maurício Pinto de Almeida, Márcia Leardini (Coords.). Curitiba: Juruá, 2007, p. 46.

[13] DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. 3.ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 30.

[14] SADEK, Maria Tereza. Magistrados: uma imagem em movimento. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 28.

[15] DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. 3.ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 30.

[16] LEARDINI, Márcia. A importância da formação do magistrado para o exercício de sua função política. In: Recrutamento e formação de magistrados no Brasil. José Maurício Pinto de Almeida, Márcia Leardini (Coords.). Curitiba: Juruá, 2007, p. 114.

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Sobre a autora
Maria Cecília Máximo Teodoro

Doutora em Direito do Trabalho e Seguridade Social pela USP, Mestre em Direito do Trabalho pela PUC/MG e professora de Direito do Trabalho, Processo do Trabalho e Direito Previdenciário da PUC/MG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TEODORO, Maria Cecília Máximo. A formação ética e intelectual dos magistrados e as faculdades de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2410, 5 fev. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14312. Acesso em: 22 dez. 2024.

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