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Biotecnologia e ideologia.

A naturalização do social

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A naturalização das ciências sociais e da história como técnica ideológica.

A despolitização do mundo é uma ideologia recorrente utilizada pelo poder econômico manter sua hegemonia. Nas já citadas palavras de Slavoj Zizek "a luta pela hegemonia ideológico-política é por consequência a luta pela apropriação dos termos espontaneamente experimentados como apolíticos, como que transcendendo as clivagens políticas."14 Uma expressão que ideologicamente o poder insiste em mostrar como apolítica é a expressão "Direitos Humanos". Os direitos humanos são históricos e logo políticos. A naturalização dos Direitos Humanos sempre foi um perigo pois coloca na boca do poder quem pode dizer o que é natural o que é natureza humana. Se os direitos humanos não são históricos, mas direitos naturais, devemos nos perguntar quem é capaz de dizer ou quem pode dizer o que é o natural humano em termos de direitos?

Ao contrário, se afirmarmos os direitos humanos como históricos, estamos reconhecendo que nós somos autores da história e logo, o conteúdo destes direitos deve ser construído pelas lutas sociais, pelo diálogo aberto, do qual, todos, possam fazer parte. Ao contrário, se afirmarmos estes direitos como naturais fazemos o que fazem com a economia agora. Retiramos os direitos humanos do livre uso democrático e transferimos para um outro espaço sacralizado, intocável. Neste outro espaço encontraremos o significado sacralizado do que é natural. Quem é este que pode dizer o que é natural? Deus? Os sábios? Os filósofos? A natureza?

A naturalização das ciências sociais é um forte fator ideológico desmobilizador. Ora, se a nossa vida se submete às leis naturais, como a lei da gravidade, nada podemos fazer para mudá-Ia. Assim a violência aparece naturalizada na afirmação: "Violência sempre houve e sempre existirá"; ou então na famosa afirmação de muitos: "isto sempre foi assim e sempre será". Se acreditamos que existe uma lei natural para a história; para economia; para a política; para o direito;, para a sociedade; nada podemos fazer então para mudar e devemos nos conformar a administrar de forma egoísta nossas vidas dentro dos limites que a natureza, em tudo presente, nos impõe.


Conclusão

O retorno do discurso ideológico naturalizante se reveste hoje de um grau de cientificidade e complexidade muito maior que aquele no inicio do século XX. Em um mundo dominado pela técnica e pelo pragmatismo; pelo discurso técnico acima da política e da filosofia; o grau de sofisticação tecnológica na pesquisa genética pode justificar um novo discurso naturalizante da violência; da diversidade e da não adaptação ao sistema imposto.

A violência pode ser resolvida não mais com a mudança do sistema social e econômico, isto não entra mais nas novas discussões, a violência se resolve com um "chip" no cérebro ou então com a supressão de genes responsáveis pelo comportamento violento.

A promessa da eliminação de doenças com o planejamento genético; a eliminação de "imperfeições" genéticas e de construção de uma pessoa "livre" de "deficiências" físicas e mentais nos joga novamente no discurso da busca da perfeição humana, tão festejada nos jogos olímpicos. Um mundo de superatletas, superintelectuais, não violentos e bons, tudo isto garantido pela intervenção da ciência avançada na constituição dos dados genéticos das gerações futuras.

Esta perfeição totalitária, que reproduz os piores pesadelos hitleristas, está presente em nossa sociedade, que ao mesmo tempo em que é tolerante com a imperfeição festeja diariamente a perfeição.

Várias questões surgem desta ingênua e perigosa crença na perfeição que a ciência biológica poderia supostamente nos oferecer:

- A concepção de perfeição é histórica e logo cultural;

- A construção de uma concepção do perfeito é totalitária, eliminando a diversidade, a pluralidade e logo, ao buscar eliminar o imponderável, cria um sistema de controle total sobre as pessoas;

- A explicação cientifica absolutizada do mundo, nos mergulha no mundo do discurso da técnica eliminando o espaço da política (logo da democracia) e da filosofia (logo do humano);

- Temos, portanto, a consagração do mundo da técnica, absolutamente descontextualizado. A história passa a ser a história das coisas, dos objetos, das técnicas e não mais das pessoas;

- A negação da história nos torna reféns, imóveis, meros reprodutores do sistema que se pretende final. Sistema que, em troca de nosso bom comportamento, nos oferecerá bens de consumo: se agirmos direito um prêmio nos será oferecido ao final de cada jornada de trabalho encaixado no mundo perfeito.

O pior pesadelo que o homem já pôde imaginar.


Notas

1 RIFKIN, Jeremy. O século da biotecnologia. Tradução de Arão Sapiro. São Paulo: Makron Books, 1999, pág. 130.

2 TEXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos;. MEDEIROS, Sabrina Evangelista; VIANNA, Alexander Martins. Dicionário Crítico do pensamento da Direita - Idéias, Instituições e Personagens; MAUAD Editora Ltda., Rio de Janeiro, 2000, pág. 158.

3 A Constituição brasileira de 1934, de caráter social e democrática e que antecede a Constituição do Estado novo de 1937, de forte inspiração fascista, mencionava no seu artigo 138 duas referencias à eugenia. Estabelecia como incumbência da União, dos Estados membros e dos municípios brasileiros o estimulo a educação eugênica e o cuidado com a higiene mental e o incentivo a luta contra os venenos sociais.

4 TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlo;.MEDEIROS, Sabrina Evangelista; VIANNA, Alexander Martins. Dicionário Crítico do pensamento da Direita - Idéias, Instituições e Personagens; ob. cit, pág. 158.

5 CARVALHO, Thais Daí Ananias de; Considerações jurídicas e bioéticas acerca da pesquisa com células-tronco embrionárias humanas: o processo reflexivo como premissa à aceitabilidade racional e à manutenção da dignidade humana. Tese de doutorado apresentada na FD-UFMG, Belo Horizonte, 2006

6 MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco, El Arbol DeI Conoscimiento, Editorial Universitária, undécima edición, Santiago do Chile, 1994.

7 No livro acima mencionado os pesquisadores chilenos escrevem:

"Nosotros tendemos a vivir un mundo de certidunbre, de solidez percpetual indisputada, donde nuestras convicciones prueban que las cosas solo son de la manera que Ias vemos, y lo que nos parece cierto no puede tener outra alternativa. Es nuestra situación cotidiana, nuestra condicion cultural, nuestro modo corriente de humanos." Prosseguindo, os autores afirmam escrever o livro justamente para um convite a afastar, suspender este hábito da certeza, com o qual é impossível o dialógo: "Pues bien, todo este libro puede ser visto como una invitación a suspender nuestro hábito de caer em la tentación de Ia certitumbre." MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco, ob.cit.p.S

8 Nas páginas 8 e 9 do livro "El arbol do conoscimiente"os autores propõem aos leitores experiências visuais de nos demonstram facilmente como a nossa visão pode nos enganar, revelando o que não existe e não revelando o que esta lá. Nas várias experiências com a visão das cores nos é mostrado como nossa visão revela percepções diferentes de uma mesma cor. Mostrando no livro dois círculos cinzas impressos com a mesma cor, mas com fundo diferente mostra como o circulo cinza com fundo verde parece ligeiramente rosado. Ao final nos faz uma afirmativa contundente mas importante para tudo que dizemos aqui: "el color no es una propiedad de las cosas; es inseparable de como estamos constituídos para vedo". MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco, ob. cit. p. 8

9 Verificar ainda o seguinte livro: MATURANA, Humberto. Cognição, ciência e vida cotidiana, organização de textos de Cristina Magro e Victor Paredes, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2001.

10 A palavra ideologia aparece no sentido de encobrimento do real ou na proposital distorção do real para conseguir direcionar a ação das pessoas no sentido que o poder deseja. Desta forma tem uma forte influência marxista:

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"Duas vertentes do pensamento filosófico crítico influenciaram diretamente o conceito de ideologia de Marx e de Engels: de um lado, a crítica a religião desenvolvida pelo materialismo francês e por Feuerbach e, de outro, a crítica da epistemologia tradicional e a revalorização da atividade do sujeito realizada pela filosofia alemã da consciência (ver idealismo) e particularmente por Hegel. Não obstante, enquanto essas críticas não conseguiram relacionar as distorções religiosas ou metafísicas com condições sociais especificas, a crítica de Marx e Engels procura mostrar a existência de um elo necessário entre formas "invertidas" de consciência e a existência material dos homens. É esta relação que o conceito de ideologia expressa, referindo-se a uma distorção do pensamento que nasce das contradições sociais (ver contradição) e as oculta. Em consequência disso, desde o início, a noção de ideologia apresenta uma clara conotação negativa e crítica .. " (Dicionário de pensamento marxista editado por Tom Bottomore, editora Jorge Zahar editor, Rio de Janeiro, 2001, pág.184).

11 ZIZEK, Slavoj. Plaidoyer en faveur de l´´intolerance, Editions Climats, Castelnau-le-lez, 2004, pag.19.

12 Assistimos no final do ano 2008 o fim do discurso neoliberal (que encobre os interesses neoconservadores) com a crise radical do sistema capitalista nos EUA e com reflexo em todo o mundo. Trinta anos de doutrinação ideológica contra o Estado terminam na estatização de boa parte do sistema financeiro que recorrem ao Estado para salvar as corporações privadas. O pior é o uso de recursos públicos para salvar a incompetência e ganância de poucos milionários e de alguns candidatos a milionários agora falidos.

13 A classe média existe ou é uma invenção terminológica para se referir aos trabalhadores que se sentem capitalistas, pessoas que dependem de seu trabalho para viver mas que acreditam firmemente pertencer a uma outra categoria social que não se enquadre no termo "trabalhador". Será que alguns sujeitos de classe média se escondem de si mesmos diante do espelho? Ou, referindo-se a classe média como uma entidade, será que a "classe media" se esconde de si mesma diante do espelho? Antes de prosseguir uma outra frase: para ser de classe média é necessário acreditar ser de classe média antes de qualquer outra coisa. Classe média é um estado mental. Classe média é uma crença.

14 ZIZEK, Slavoj. Plaidoyer en faveur de l´´intolérance. Climats, 2004, Paris, pago 18. Interessante nào apenas ler este livro como a obra deste fascinante pensador esloveno. Vários livros já foram traduzidos e publicados no Brasil: "Bem vindo ao deserto do real" e "Às portas da revolução" são duas obras importantes.

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Sobre o autor
José Luiz Quadros de Magalhães

Especialista, mestre e doutor em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais<br>Professor da UFMG, PUC-MG e Faculdades Santo Agostinho de Montes Claros.<br>Professor Visitante no mestrado na Universidad Libre de Colombia; no doutorado daUniversidad de Buenos Aires e mestrado na Universidad de la Habana. Pesquisador do Projeto PAPIIT da Universidade Nacional Autonoma do México

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAGALHÃES, José Luiz Quadros. Biotecnologia e ideologia.: A naturalização do social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2447, 14 mar. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14510. Acesso em: 29 mar. 2024.

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