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A criação de um tribunal penal internacional.

Dos tribunais militares aos tribunais "ad hoc"

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1.5 A Segunda Guerra Mundial e o Tribunal Militar Internacional de Tóquio

Os fundamentos para a criação do Tribunal de Tóquio encontram-se na Declaração do Cairo, datado de 1º de dezembro de 1943, em que participaram e assinaram representantes dos Estados Unidos da América, da Grã-Bretanha e da China, no qual demonstraram a intenção de por termo a agressão japonesa e levar a julgamento os criminosos de guerra japoneses. Tais objetivos são reiterados e anunciados durante a Conferência de Potsdam, em julho de 1945, quando os três mesmos aliados fazem saber que uma estrita justiça deve sancionar todos os criminosos de guerra e especialmente aqueles que tiveram cometido crueldades contra os prisioneiros.

O Japão só se rendeu em 2 de setembro de 1945 e, no ato de rendição, se definiu precisamente como se dariam os procedimentos relativos às condições de tratamento a serem empregados aos suspeitos de terem cometido crimes de guerra. Ao mesmo tempo, a Comissão de Crimes da Organização das Nações Unidas aprovou uma recomendação para o estabelecimento de um tribunal militar internacional para julgar os crimes praticados pelos japoneses. Nessas bases, o Departamento de Estado dos EUA adota um instrumento visando à prisão e à sanção dos criminosos de guerra no Extremo Oriente pelo qual notifica o Comando Supremo das Forças Aliadas e as oito nações (Austrália, Canadá, China, França, Grã-Bretanha, Nova Zelândia, Países Baixos e União Soviética) de criar o tribunal militar. [73]

A Conferência de Moscou entre os Ministros das Relações Exteriores de Estados Unidos, Grã-Bretanha, União Soviética e China, concordaram que o tribunal fosse sediado em Tóquio. Em janeiro de 1946, o general Douglas Mac Arthur aprovou a Carta do Tribunal, que tinha competência para julgar os acusados de crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes contra a Humanidade.

O tribunal era composto de juízes provenientes de 11 nações aliadas: Austrália (Wiliiam F. Webb, presidente do Tribunal), Canadá (E. Stuart McDougall), China (Ju-ao Mei), Estados Unidos (John P. Higgins), França (Henri Bernard), Grã-Bretanha (Lorde Patrick), Índia (Tadhabinod M. Pal), Países Baixos (Bernard Victor A. Roling), Nova Zelândia (Erima Harvey Northeroft), Filipinas (Delfin Jaranilla) e União Soviética (I. M. Zaryanov).

O procurador-chefe estava a cargo do norte-americano Joseph Keenan e cada país aliado designava um procurador-adjunto.

A Carta do Tribunal Militar Internacional par ao Extremo Oriente contava com 17 artigos, contra 30 do Estatuto do Tribunal de Nuremberg. Contudo, a substância e a forma eram muito parecidas, senão quase idênticas.

Os julgamentos se realizaram no prédio onde funcionava o Ministério da Guerra japonês, tendo início em maio de 1946, durando dois anos e meio, até novembro de 1948. Dos 80 suspeitos de terem cometidos crimes de guerra, capturados e detidos na prisão de Sugamo, em Tóquio, só são levados a julgamento 28 deles, dos quais 9 civis e 19 militares de carreira.

A acusação os censurou por terem elaborado e executado um plano de conquista baseado na realização de um programa de assassinatos, terem subjugado prisioneiros de guerra e submetido civis a experiências médicas, trabalhos forçados em condições desumanas, pilhagem de bens públicos e privados, destruições de cidades e vilarejos sem necessidades militares, e de uma forma geral assassinatos, estupros e crueldades em massa em todos os territórios invadidos. Dos réus, dois morreram de causas naturais durante o julgamento, enquanto outro teve um colapso nervoso, sendo levado a um hospital psiquiátrico, de onde foi libertado em 1948. Os 25 restantes foram considerados culpados, diversos deles por mais de um crime. Sete foram condenados à morte por enforcamento, 16 à prisão perpétua e dois a penas menores. [74]

O processo de Tóquio foi manifestamente submetido a razões de Estado e a justiça que foi feita se prestou a várias críticas, mais ainda que as do Tribunal de Nuremberg. As críticas se fundaram na razão de que foi uma justiça de vencedor submetida de forma muito estreita à tutela norte-americana e ao seu representante, o general Mac Arthur, que tinha não apenas o poder de escolher os juízes componentes do Tribunal, mas também de reduzir as penas pronunciadas, sem entretanto poder aumenta-las. Além disso, os Estados Unidos foram os principais provedores de fundos do tribunal. Enquanto o Tribunal de Nuremberg era composto por quatro juízes, contando cada um com um substituto, em Tóquio os onze juízes não tinham substitutos. Em Nuremberg, as nações aliadas contavam cada uma com um procurador com igualdade de direitos, enquanto em Tóquio os procuradores das potências aliadas eram apenas os assistentes do procurador dos Estados Unidos.

As críticas ao Tribunal de Tóquio não foram poucas, podendo ser adicionadas aquelas lembradas por Jean-Paul Bazelaire e Thierry Cretin, na análise entre o Tribunal de Nuremberg e Tóquio:

Os dois tribunais diferem também no que diz respeito às infrações e às pessoas julgadas. Apenas os crimes contra a paz com contornos incertos e violações caracterizadas das leis de guerra são retidos em Tóquio, enquanto em Nuremberg, outras categorias de crimes são visadas pela acusação. Enfim, em Tóquio são julgadas apenas pessoas físicas, enquanto em Nuremberg organizações como a Gestapo são acusadas. Entretanto, no Japão não faltam organizações patrióticas que preconizam a política expansionista. [75]

Ainda podemos ressaltar as críticas no que corresponde aos desacordos expressos pelos juízes do Tribunal de Tóquio no final dos processos. Alguns juízes criticaram duramente as penas aos acusados, outros entenderam que algumas autoridades japonesas, como o próprio imperador japonês que não foi julgado, deveriam fazer parte do rol dos acusados, já o juiz Radhabinod Pal da Índia entendia que todos os acusados deveriam ser absolvidos.

Enfim, os resultados dos processos de Tóquio podem ser considerados como insatisfatórios em larga medida. Todavia, também foi mérito do Tribunal Militar do Extremo Oriente, assim como do Tribunal de Nuremberg, a partir da tipificação dos crimes referenciados, instigar o nascimento da obrigação das Nações em respeitar os princípios do Direito Internacional e mais ainda, a criação do embrião do Direito Internacional Penal, que tem como "pressuposto de que existem certas exigências fundamentais de vida em sociedade internacional" [76].

Os Tribunais Militares Internacionais alimentaram a esperança de que, no futuro, os crimes contra os direitos humanos seriam julgados em um tribunal penal permanente das Nações Unidas, livre de pressões políticas, dotado de uma jurisdição definida e com base em uma legislação abarcando os crimes contra a humanidade.


1.6 O período pós-guerra

Após os Tribunais de Nuremberg e Tóquio, os Aliados criaram Tribunais Internacionais para crimes de guerra em suas respectivas zonas de ocupação na Alemanha. A República Federal da Alemanha, após a II Guerra, processou (entre 1947 e 1990) cerca de 60.000 pessoas acusadas de genocídio e crimes de guerra, das quais 960 foram condenadas à morte. Na França, registram-se os julgamentos de Paul Touvier, Klaus Barbie e René Bousquet por crimes praticados durante a II Guerra Mundial [77]. A Itália processou Erich Priebke (condenado a 15 anos de prisão) e Karl Hass (condenado a 10 anos e 6 meses de prisão). O Canadá julgou Inre Finta e a ex-Iugoslávia julgou e executou Artukovik.

Além desses, de todos os julgamentos posteriores à Segunda Guerra Mundial, o que se tornou mais célebre foi o de Adolf Eichman em 1961 perante o Estado de Israel. Eichman foi seqüestrado em 11 de maio de 1960 pelo serviço secreto israelense na cidade de Buenos Aires, Argentina, e foi levado para ser julgado pelo Tribunal Distrital de Jerusalém. Lá, Eichman, que fora subsecretário do Estado nazista, que se tornara, segundo ele próprio afirmara, um perito na questão judaica e que atuou ativamente, embora sem ter sido diretamente responsável pela morte de uma única pessoa, no extermínio de milhões de pessoas durante o conflito mundial. Tal julgamento criou um grande paradoxo para a humanidade, pois Eichman não se revelou um monstro assassino, mas apenas um funcionário burocrático que cumpria ordens e agia conforme determinação de seus superiores. Eichman foi condenado à morte por enforcamento.

Hannah Arendt traduziu uma das questões que ficaram expostas com o julgamento de Eichman, com relação à esses eventos relativos as duas guerras mundiais:

Resta, porém, um problema fundamental, que está implicitamente presente em todos esses julgamentos pós-guerra e que tem de ser mencionado aqui porque toda uma das grandes questões morais de todos os tempos, especificamente a natureza e a função do juízo humano. O que exigimos nesses julgamentos, em que os réus cometeram crimes ‘legais’ é que os seres humanos sejam capazes de diferenciar o certo do errado mesmo quando tudo que têm para guiá-los seja apenas seu próprio juízo, que, além do mais, pode estar inteiramente em conflito com o que eles devem considerar como opinião unânime de todos a sua volta. E essa questão é ainda mais séria quando sabemos que os poucos que foram suficientemente ‘arrogantes’ para confiar em seu próprio julgamento não eram, de maneira nenhuma, os mesmos que continuavam a se nortear pelos valores, ou que se nortearam por crenças religiosas. [78]

Apesar desses julgamentos levados à cabo pelas jurisdições nacionais, a necessidade do estabelecimento de um Tribunal Internacional Penal foi discutida na Organização das Nações Unidas, em 1948. Na Resolução 260, de 9 de dezembro, a Assembleia Geral reconheceu que em todos os períodos da história o crime de genocídio havia amealhado grandes perdas para a humanidade, sendo que deveria haver uma cooperação internacional a partir de então.

Nesta mesma Resolução, a Assembleia Geral das Nações Unidas requisitaria à Comissão de Direito Internacional (CDI) um estudo sobre a possibilidade do estabelecimento de um órgão judicial internacional para julgar as pessoas que cometessem crimes de genocídio, iniciando assim uma elaboração de um Estatuto para uma corte penal internacional.

Desta forma, a CDI concluiu em seus estudos que uma corte internacional para julgar crimes de genocídio e outros crimes de gravidade similar era tanto possível como desejável. Então, a Assembleia Geral nomeou um comitê para preparar uma proposta de Estatuto para a almejada corte. O comitê preparou o primeiro anteprojeto em 1951 e um outro, revisado em 1953. Entretanto, o cenário internacional, marcado pela Guerra Fria, impediu avanços neste sentido, o que só seria retomado em 1989, quando retornaram com força as discussões na ONU para a negociação de uma convenção internacional acerca do tema.

No ano de 1989, em resposta a um requerimento de Trinidad e Tobago, a Assembleia Geral solicitou à CDI um resumo dos trabalhos sobre uma corte internacional penal em cuja jurisdição se incluísse o tráfico de drogas. O fato ensejou levantar, novamente, a necessidade de se pensar a criação de um sistema penal permanente. [79]

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No próprio ano de 1989, através de uma resolução da Assembleia Geral, a CDI deu início novamente a estudos para viabilizar o estabelecimento de um órgão judiciário com competência para o processamento de crimes semelhantes àqueles julgados pelos tribunais militares internacionais. No entanto, os trabalhos não avançaram, novamente, por efeito das divergências ideológicas proporcionadas por um mundo que, ainda naquele período, estava marcado pelo equilíbrio de poder entre EUA e União Soviética. [80]

Durante a Guerra Fria os crimes de guerra, contra a humanidade e genocídio receberam menor atenção do que as prementes questões que se desenrolavam no cenário internacional, eis que os fatos que preocupavam a paz e a segurança internacional eram tais como as invasões da Hungria (1956) e Tchecoslováquia (1968) por tropas da URSS, a crise dos mísseis em Cuba (1961), a construção do muro de Berlim (1961), a corrida armamentista, entre outros. Mas com a derrocada dos regimes comunistas do Leste Europeu no início da década de 90, representada pela queda do Muro de Berlim, houve a reativação pelo interesse pela matéria, já que as tensões Leste-Oeste foram reduzidas.


1.7 O Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia

Com a queda do Muro de Berlim e o fim da Guerra Fria, a ordem internacional criada com o fim da Segunda Guerra Mundial caiu por terra, e a última década do século XX é marcada pelo surgimento de uma nova ordem internacional.

No mundo pós Guerra Fria o equilíbrio entre as superpotências desaparece, revelando, com o fim dos regimes socialistas, conflitos regionais e localizados, motivados por fatores étnicos e religiosos.

Gustavo Sampaio T. Ferreira sintetiza o que ocorreu nesse período da seguinte maneira:

Com o advento da Guerra Fria, os países socialistas, sob o patrocínio da União Soviética e edificados sob as bases do totalitarismo, impunham por vezes a união de povos diversos em torno da bandeira de um só Estado Nacional, gerando uma falsa unidade que, em momentos de tensão, certamente não resistiriam a propostas separatistas. Foi o que aconteceu, por exemplo, com a Ex-República Socialista Federal da Iugoslávia. Com o fim da bipolaridade ideológica e com a conseqüente abertura política dos países do Leste, vários foram os pontos de insurgência de movimentos étnicos com vistas a obter independência. O caso que mais repercutiu foi sem dúvida o da Iugoslávia, onde as múltiplas etnias geraram, com o romper do governo forte, as sangrentas disputas pela imprensa internacional e deflagradoras de uma expressa violação dos direitos do homem. [81]

Nos conflitos regionais que se desenvolveram, volta-se a testemunhar crimes de genocídio, limpeza étnica, agressões direcionadas contra populações civis não-combatentes e conflitos armados significativos. Após a Segunda Guerra Mundial, foi a primeira vez que a Europa presenciava muitas das atrocidades elencadas em Nuremberg.

Para se dar uma clara ideia do que aconteceu, deve-se ler alguns trechos constantes do documento S/25274, de 9 de fevereiro de 1993, que consubstanciou o primeiro relatório da Comissão nomeada pelo Secretário Geral da ONU, em atenção ao determinado pela Resolução 780 (1992) do Conselho de Segurança:

A expressão ‘depuração étnica’ é relativamente nova. No contexto dos conflitos na ex-República Socialista Federal da Iugoslávia a prática da ‘depuração étnica’ consistiu em dar homogeneidade étnica a uma zona, utilizando a força ou a intimidação para expulsar pessoas ou determinados grupos em dita zona. A ‘depuração étnica’ violou o Direito Internacional.

A julgar pelo grande número de informações nas quais foram descritas as políticas e práticas aplicadas na ex-Iugoslávia, a ‘depuração étnica’ se produz mediante homicídios, torturas, encarceramentos arbitrários, execuções sem processo judicial, estupros e outras agressões sexuais, confinamento de populações civis em guetos, expulsões pela força, deslocamento e deportação de populações civis, ataques deliberados ou ameaças de ataques contra civis e zonas civis, destruição injustificada de bens. Estas práticas constituem crimes de ‘lesa-humanidade’ e podem ser assemelhadas a crimes de guerra concretos. Esses atos também poderão ser considerados como compreendidos na Convenção de Prevenção e Repressão do Delito de Genocídio. [82]

Ainda Sobre os crimes cometidos na ex-Iugoslávia, acrescenta João Marcello de Araújo Júnior:

A vinculação entre as agressões sexuais e a política de depuração étnica ficou provada de forma manifesta, pois muitos estupros foram praticados em praça pública como fim de desmoralização pessoal e coletiva e, além disso, os estupradores afirmavam que queriam tornar suas vítimas grávidas e, quando efetivamente engravidavam eram mantidas presas pelo tempo necessário a tornar inviável o aborto. Ficou conhecido o caso de uma mulher muçulmana, que permaneceu detida por um vizinho, durante seis meses, em uma casa perto de sua aldeia. Foi estuprada reiteradas vezes por três ou quatro soldados, que lhe diziam que daria à luz um menino chetnik, que ao crescer mataria muitos muçulmanos.

[...] Grande parte dos atentados aconteceram no contexto dos esforços efetuados para o deslocamento de grupos étnicos de um lugar para outro. Além disso, alguns dos supostos autores alegaram haver recebido ordens para a prática de estupros. [83]

Assim, devido a este panorama, o Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia (TPII) é criado em 25 de maio de 1993, pela Resolução 827 do Conselho de Segurança, com caráter ad hoc, ou seja, não permanente, com sede na cidade de Haia, Holanda.

O Estatuto [84] desse tribunal permitiu responsabilizar criminalmente indivíduos que tivessem cometido crimes contra a humanidade no território da antiga Iugoslávia, cujas definições são bastante similares às do art. 6º do Estatuto do Tribunal de Nuremberg.

As competências do Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia, que é órgão da ONU, são:

a)ratione temporis: o período de tempo abrangido tem início em 1º de janeiro de 1991, primeiro dia do ano calendário de 1991, conforme estipulado no art. 1º;

b)ratione materiae: os crimes são definidos no art. 3º (crimes de guerra), no art. 4º (genocídio) e no art. 5º (crimes contra a humanidade), além das condutas especificadas no art. 2º, de forma genérica, como graves violações às Convenções de Genebra de 1949, em especial uma série de condutas enumeradas nesse dispositivo (contra pessoas ou propriedades protegidas pelos dispositivos da correspondente Convenção de Genebra);

c)ratione loci: o território da antiga Iugoslávia;

d)ratione personae: delimitado como as pessoas responsáveis por graves violações ao Direito Internacional Humanitário (art. 1º), tanto aquelas que cometeram quanto as que deram ordens para que fossem cometidos esses crimes (art. 2º, caput, 1ª parte).

A competência do TPII é concorrente com a de tribunais nacionais para processar os acusados. Contudo, pode solicitar preferência em relação a estes tribunais nacionais, assumindo assim as investigações e procedimentos locais em qualquer fase, se isso se mostrar de interesse da justiça internacional (art. 9º).

O grande marco na estrutura do Tribunal é a regra contida no art. 7º, que prevê a responsabilidade penal individual, quando dispõe que, além dos sérvio-bósnios, também os ocupantes de cargos oficiais, como chefes de Estados ou de Governo serão submetidos à jurisdição criminal do Tribunal. Além disso, prevê-se a possibilidade de recurso (art. 25), que não havia nos Tribunais Militares de Nuremberg e Tóquio.

Desde a primeira audiência, sobre o caso Tadic, em 8 de novembro de 1994, até outubro de 2009, o Tribunal havia acusado formalmente cerca 160 pessoas, das quais apenas 2 estavam foragidas; 181 processos haviam sido concluídos, dos quais 151 foram declarados procedentes (dos quais 6 ainda estão pendentes de julgamento de recurso) e 30 casos foram declarados não procedentes (dos quais 3 ainda estão pendentes de apreciação de recurso). Retiraram-se as acusações contra 25 acusados e 6 morreram, destes últimos, três na prisão e três em liberdade condicional. Quatro casos foram enviados a tribunais nacionais para serem localmente julgados. Os processos continuam em relação a 25 acusados. [85]

Entre os indiciados encontram-se desde soldados rasos até generais e comandantes políticos. O indiciado mais notório em âmbito internacional é o de Slobodan Milosevic, ex-presidente da República Federal da Iugoslávia, preso em Belgrado em 1º de abril de 2001, e cujo julgamento se iniciara em 12 de fevereiro de 2002. Milosevic fora acusado de crimes contra a humanidade, de infrações graves às Convenções de Genebra de 1949 e de violações a leis e costumes de guerra. Foi processado tanto com base em sua responsabilidade individual (art. 7.1 do Estatuto deste Tribunal) quanto em virtude de sua condição de superior hierárquico (art. 7.3 do Estatuto deste Tribunal) daqueles que cometeram atrocidades na Bósnia-Herzegóvina, na Croácia e no Kosovo. Durante o julgamento, no entanto, foi encontrado morto em sua cela, na prisão das Nações Unidas em 11 de março de 2006.

Logicamente que diversas críticas são dirigidas contra o Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia, destacando-se as seguintes:

1) Foi criado pelo Conselho de Segurança da ONU, e não pela Assembleia Geral. A questão foi levantada por Milosevic e por Tadic, em seus respectivos julgamentos, argumentando que, por esse fato, não teria legitimidade internacional, uma vez que o Conselho de Segurança não representaria uma base ampla de Estados-membros. A Carta da ONU estipulou, no Artigo 42, que o Conselho de Segurança poderá ‘adotar a ação que julgar necessária para manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais’, e é muito discutido se a criação de um tribunal poderia ser considerada uma medida para a manutenção ou restabelecimento da paz;

2) Um número desproporcional de sérvios foi acusado, enquanto relativamente poucos indivíduos foram indiciados por crimes cometidos contra os sérvios (muitos croatas indiciados foram acusados de terem cometido crimes contra muçulmanos de origem bósnia). Os defensores do Tribunal argumentam, dizendo que os sérvios controlavam a maior parte da estrutura de comando e dos armamentos, o que facilitava a ocorrência de crimes em uma escala mais ampla e organizada. Além disso, pelo nível de organização militar, consegue-se mais facilmente identificar os comandantes responsáveis pelos crimes de guerra;

[...]

4) O Tribunal pode fazer acusações secretas, e isso seria incerteza entre pessoas que entendem poder ser acusadas, o que faz surgirem tensões injustificadas, que as impediam de levar uma vida normal, tanto a curto quanto a longo prazo;

5) O Tribunal não diferencia os idiomas bósnio, croata e sérvio, redigindo documentos em uma língua que identifica como ‘B/C/S’, sem diferenciar os três. Isso é justificado pelo fato de que as três línguas são perfeita e mutuamente inteligíveis (e, oficialmente, eram consideradas língua única antes do desmantelamento da antiga Iugoslávia), o que dispensaria traduções. Apesar, no entanto, de a maioria dos acusados serem sérvios, o Tribunal emprega, exclusivamente, tradutores que falam apenas os idiomas bósnio e croata. Alguns dos acusados apresentaram reclamações por não entenderam plenamente as traduções oficiais feitas;

6) O Tribunal não processou cidadãos dos países da OTAN, como resultado do envolvimento dessa organização no Kosovo;

7) A atuação do Tribunal, na visão de seus críticos, exacerbou as tensões, em lugar de promover a reconciliação, conforme alegado por seus defensores. Pesquisas de opinião mostram uma reação geralmente negativa entre a população sérvia e croata. A maioria dos membros dessas etnias duvida da integridade desses tribunais, enquanto os albaneses do Kosovo e os muçulmanos bósnios têm visão opostas;

8) O alto custo do Tribunal, que chegou a US$ 277 milhões par ao biênio 2006-2007, arcado por todos os Estados-membros da ONU;

9) A duração excessiva dos julgamentos é outro ponto levantado pelos críticos, mas os defensores alegam que muitos dos réus são acusados de diversos crimes, com muitas vítimas, o que exige provas conclusivas e demanda muito tempo. Também a tradução simultânea retarda os julgamentos;

10) Alguns analistas políticos comentam que decisões judiciais não obtêm êxito em escrever a História. Constataram os historiadores que julgamentos como os de Nuremberg e Tóquio não afetaram as populações da Alemanha e do Japão, respectivamente, na forma desejada. Essas populações passaram a adotar uma postura defensiva, desconfiada, que encarava esses processos como julgamento-exibição (show trials) ou mesmo como armas de vingança usadas pelas forças de ocupação. Apenas mais de duas décadas depois do fim da guerra, e com a prosperidade econômica, é que a opinião pública, em geral, passou a concordar com diversos pontos (mas não com todos) levantados em Nuremberg. [86]

Ainda no que tange às críticas quanto aos trabalhos deste Tribunal, temos a opinião de Thales Tácito Pontes Luz de Pádua:

O Tribunal de Milosevic é uma réplica do de Nuremberg, enfim, uma ''trapalhada'' internacional, quebrando o juiz natural em nome do salvamento da humanidade, esquecendo-se de que o exemplo é sempre seguido pelas futuras gerações (leis casuísticas). A grande questão é: os fins justificam os meios ou os meios deveriam justificar os fins?. Com a palavra, as ‘grandes potências’ que inexplicavelmente se opõem à consolidação e efetividade de um Direito Internacional justo, ético e humanitário que tenha como foco a dignidade da pessoa humana e a participação igualitária das nações pobres e ricas. [87]

No entanto, devem-se realçar as virtudes deste Tribunal, dando créditos aos trabalhos apuratórios levados a efeito para o julgamento dos crimes contra a humanidade cometidos no território da antiga Iugoslávia, o desenvolvimento dos princípios e dos mecanismos de apuração dos crimes de genocídio, de Guerra e contra a humanidade, bem como a responsabilidade penal do indivíduo, inclusive quando pratica atos na qualidade de governante, ou desempenha funções de preposto do Estado ou agindo em seu nome. [88]

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Sobre o autor
Cristiano José Martins de Oliveira

Advogado, Professor Universitário e Coordenador do Curso de Direito das Faculdades Integradas do Vale do Ribeira, em Registro-SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Cristiano José Martins. A criação de um tribunal penal internacional.: Dos tribunais militares aos tribunais "ad hoc". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2449, 16 mar. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14525. Acesso em: 26 abr. 2024.

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