4. A Assembléia Constituinte de 1987 e a promulgação da nova Constituição
A Assembléia Constituinte de 1987 foi instalada em 01/02/1987, sob a presidência do Presidente do Supremo Tribunal Federal, o Ministro José Carlos Moreira Alves. No dia seguinte foi eleito como Presidente da Constituinte o Deputado Ulysses Guimarães. Começaram os trabalhos sem nenhum projeto de Constituição previamente elaborado. Não soube lidar bem com essa ausência de projeto, constituindo comissões setoriais que resultaram num projeto de 551 artigos, vulgarmente chamado de "Frankestein". Após mais de vinte mil emendas foi apresentado um projeto substitutivo, com 374 artigos, que recebeu mais de quatorze mil emendas. A desordem resultou numa alteração do Regimento da Constituinte, idealizado pelo "Centrão" (grupo de parlamentares contrários à atual sistemática). O cansaço tomou conta dos constituintes, até que conseguiram levar a plenário o projeto de constituição, tendo sido aprovado em dois turnos. 26
Em que pese o turbulento trabalho da Assembléia Nacional Constituinte, uma coisa há que se concordar, se deu em virtude da ampla autonomia de que dispôs, com verdadeiro espírito democrático. Nela, mesmo diante da inexperiência de seus componentes (por razões óbvias), verificou-se a plena abertura para a discussão de idéias, contando inclusive com ampla participação popular, por meio de 122 emendas, que reuniram doze milhões de assinaturas (dez por cento da população da época), sem contar as 72.719 sugestões efetivamente incorporadas ao processo constituinte, e a realização de mais de 400 audiências públicas. 27 Podemos dizer que o país inteiro participou ou teve efetiva oportunidade de participar da Assembléia Nacional Constituinte.
Num país onde os direitos políticos nunca tinham sido completamente existentes, essa Assembléia Constituinte, e o seu fruto, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, sem dúvida, mostraram ser um divisor de águas. Estava certo Ulysses Guimarães, ao proclamar no discurso de promulgação que essa Constituição não é perfeita, mas seria útil para a mudança do país. As mudanças são visíveis, embora lentas como todo processo de democratização.
5. A Constituição de 1988
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 pode não ser perfeita, mas é um inegável e imenso avanço na história jurídica do país, pelo conteúdo e pela aplicação. Clèmerson Merlin Clève assevera que "basta ver que até mesmo os movimentos sociais contestatórios agem sob os signos da constituição, não contra eles". 28
Deveras criticada como extremamente analítica, Luiz Alberto Davi Araújo acentua que temos que parar de reclamar da extensão e passarmos a aplicar a Constituição; em 1988 começamos um estado juridicamente novo, com novos valores; é um texto longo, prolixo, detalhado, mas de esperança, pois instaurou um Estado Democrático no Brasil. 29
A Constituição de 1988 apresentou originalmente 250 artigos em seu texto normativo e 83 Atos de Disposições Constitucionais Transitórias. Está dividida em nove títulos, a saber: 1º) Dos Princípios Fundamentais; 2º) Dos Direitos e Garantias Fundamentais; 3º) Da Organização do Estado; 4º) Da Organização dos Poderes; 5º) Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas; 6º) Da Tributação e do Orçamento; 7º) Da Ordem Econômica e Financeira; 8º) Da Ordem Social; 9º) Das Disposições Constitucionais Gerais.
A Constituição manteve as vigas mestras da forma republicana de governo, do regime presidencialista e do modelo federativo, já presentes na primeira Constituição republicana. Mas deu um passo mais à frente no que tange aos direitos e garantias fundamentais, tendo instituído o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana como um de seus fundamentos. Jorge Miranda, em referência à Constituição da República Federativa do Brasil, ressalta que "diversamente de todas as anteriores Constituições, a de 1988 ocupa-se dos direitos fundamentais com prioridade em relação as demais matérias". 30 O professor Leonardo Greco expõe que a partir da Constituição de 1988 mudou-se a concepção: "antes os direitos fundamentais só valiam no âmbito das leis; hoje as leis só valem no âmbito dos direitos fundamentais". 31
Essa prevalência dos direitos fundamentais da pessoa humana pode ser observada desde a "geografia" da Constituição de 1988. Já no preâmbulo, não obstante a ausência de força normativa, expressa do texto constitucional que a Assembléia Nacional Constituinte reuniu-se "para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais". No art. 1º coloca como fundamentos a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho, dentre outros. No art. 2º garante a harmonia e independência entre os três poderes constituídos. No art. 3º traça como objetivos fundamentais: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; o desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza, da marginalização e das desigualdades sociais e regionais; e a promoção do bem de todos, refutando qualquer tipo de preconceito ou discriminação. No art. 4º traça como princípios regentes das relações internacionais a prevalência dos direitos humanos, dentre outros. No art. 5º traz um extenso rol de Direitos e Garantias Fundamentais da pessoa humana, seguindo com o rol dos direitos sociais (arts. 6º a 11) e dos direitos políticos (art. 17). Só então é que começar a tratar da organização do estado e das demais matérias constitucionais. Ao final traz ainda uma série de dispositivos voltados para a ordem social (seguridade social, educação, cultura etc.). Em toda sua extensão verificamos a preocupação constitucional com os direitos da pessoa humana, em todas as suas dimensões (civis, políticos e sociais).
Há clara valorização dos direitos sociais (direitos trabalhistas, previdenciários, assistenciais, saúde, educação, lazer etc.), assinalando o primado da sociedade sobre o Estado e os indivíduos como destinatários da norma social. Paulo Bonavides expõe que "a Constituição de 1988 é basicamente em muitas de suas dimensões essenciais uma Constituição do Estado social [...] de valores refratários ao individualismo no Direito e ao absolutismo no poder". 32
O coletivo se sobressai no texto constitucional, com previsão de direitos e instrumentos de defesa dos interesses coletivos, difusos e individuais homogêneos (os denominados direitos de terceira dimensão). A guisa de exemplos, citemos a preocupação com a preservação ambiental (art. 225), o mandado de segurança coletivo (art. 5º, LXX), a ação popular (art. 5º, LXXIII), a preocupação com a defesa do consumidor (art. 5º, XXXII), a função social da propriedade (art. 186), dentre outros.
Diferente da maior parte de nossas históricas constituições, a de 1988 revela-se como verdadeiro instrumento do cidadão e da sociedade contra o Estado, que se vê por ela juridicamente limitado em sua autonomia e obrigado a uma série de prestações. Muitas das normas não são auto-aplicáveis, dependendo de regulamentação por leis infraconstitucionais, mas o próprio texto constitucional trouxe instrumentos para exigência dessas regulamentações, como o mandado de injunção (art. 5º, LXXI) e a ação direita de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, §2º).
A Constituição expressamente declara ter as pessoas jurídicas de direito público responsabilidade [objetiva] pelos danos que seus agentes causarem (art. 37, §6º).
Estabelece regras claras de descentralização do poder, com a autonomia dos estados-membros (art. 25) e dos municípios (art. 29), com regras claras de distribuição de competências legislativas (arts. 22, 23 e 24) e de distribuição tributária (arts. 153, 155 e 156).
Essas são apenas algumas das inúmeras previsões normativas da atual Constituição da República Federativa do Brasil.
Conclusão
Todos os Estados precisam de uma Constituição, mesmo os ditatoriais. Já existiram textos constitucionais de índole absolutista e outros de índole democrática.
No atual desenvolvimento do Direito Constitucional, em especial nos países democráticos, não há como cogitar de uma Constituição que não seja um escudo de proteção do povo contra o Estado, devendo prever direitos e garantias próprios da pessoa humana, além da organização e estruturação do Poder.
Não existe tradição democrática na história política e constitucional do Brasil. Nos poucos momentos em que houve vigência de um texto constitucional de índole democrática, o seu descumprimento provocou problemas, acarretando em diversas revoltas, capazes de impedir governos voltados para o povo.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, não obstante sua imperfeição (o que ela própria confessa), nasceu de um movimento democrático, teve participação ativa da sociedade, trazendo em seu bojo os mais legítimos postulados constitucionais, representando um documento político e normativo "divisor de águas" na história brasileira.
A Constituição de 1988 por si só, é bem verdade, não é capaz de mudar a história, mas nem por isso podemos reduzi-la à condição de simples "folha de papel". Representa um legítimo documento de conquistas de direitos e garantias da sociedade brasileira, e as mudanças já começaram a acontecer, basta ver que hoje até mesmo os movimentos contestatórios atuam sob os signos da constituição, e não contra ela. As pessoas têm consciência de seus direitos e os reivindica, basta ver o grande crescimento das demandas judiciais. Os operadores do Direito hoje analisam as diversas leis sob os postulados constitucionais. As autoridades públicas a todo momento precisam de justificar suas condutas sob a égide da Constituição.
Chegamos a um avançado momento em que não precisamos mais de lutar pela construção de uma nova Constituição, mas pela implementação da já existente. A mudança da realidade não depende apenas da Constituição, mas antes de tudo da sociedade, mas é inegável a importância que a Constituição de 1988 tem trazido para a renovação da sociedade brasileira.
Pedimos vênia para encerrar o presente artigo mais uma vez parafraseando o Jornalista Alexandre Garcia: "ela [a Constituição de 1988] pretende ser a primavera de um Brasil novo, se com ela vai vir um novo Brasil, depende de nós!".
Referências
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Notas
BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 17.
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 49.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Versão condensada pelo próprio autor. Tradução de J. Cretella Junior e Agnes Cretella. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 103.
BARCELLOS, 2002, p. 13.
LASSALE, Ferdinand. O que é uma Constituição?. Tradução: Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: Russell, 2005, p. 35.
Citemos como exemplo a Revolução de 1848 (França): As barricadas erguidas pela Guarda Nacional no centro de Paris contra os revoltosos que almejavam a queda do Rei Luís Felipe, e a fuzilaria dessa Guarda que matou aproximadamente quinhentas pessoas (com exposição dos cadáveres em carros iluminados), não foi suficiente para conter a força da população, que levou o rei a abdicar do trono, nascendo a Segunda República. (Fonte: Wikipédia)
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Hitler, por exemplo, se utilizou do art. 48. da Constituição de Weimar para suspender indefinidamente os direitos e liberdades pessoais, inclusive a liberdade de expressão, de associação e de imprensa, sendo esse um esteio crucial para a consolidação de seu poder. (KERSHAW, Ian. Hitler: Um Perfil do Poder. Jorge Zahr Editor. P. 72/73. Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=q500d4WqUdoC&pg=PA72&lpg=PA72&dq=Hitler+teve+uma+constitui%C3%A7%C3%A3o&source=bl&ots=McRo5BRno6&sig=UvA6h_4qL3G7JIYbYFji5xUi_tk&hl=pt-BR&ei=Np-pScymM9Kgtwen8YjgDw&sa=X&oi=book_result&resnum=4&ct=result#PPP1,M1)
CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, p. 141.
Ibidem, p. 143.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2002, p. 36.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 52.
BARCELLOS, 2002, p. 14/15.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 69/90.
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