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Atipicidade conglobante no estrito cumprimento do dever legal e exercício regular de direito

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05/05/2010 às 00:00
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4. Fato Atípico

Atípico é o fato no qual não está presente um ou mais dos elementos, ou subelementos do Fato Típico, ou quando a conduta em questão não é prevista em lei como crime, por exemplo, a prostituição, ou alguém que comete uma lesão corporal durante o sono ou em estado de sonambulismo.


5. Estrito Cumprimento do Dever Legal

Estrito cumprimento do dever legal é a pratica de condutas dentro dos limites impostos pelo ordenamento jurídico. Siqueira (apud MAGALHÃES, 1969, p. 47-48) define: "cumprimento estrito de dever legal, se compreendem as ações que a lei diretamente determina e que o sujeito diretamente cumpre".

Como enfatiza Motta (2000, p.45) Estrito Cumprimento do Dever legal são: "apenas os deveres inerentes ao cargo ou à função pública, aqui denominados deveres que se revestem de caráter público", ou seja, as condutas abarcadas pelo estrito cumprimento do dever legal são apenas aquelas realizadas com rigorosa determinação do ordenamento jurídico.


6. Exercício Regular de Direito

O Exercício regular de direito se trata da realização de ações incentivadas nos termos da lei. É um direito concedido a determinadas pessoas, ou seja, é estimulada a sua realização. Ainda Siqueira (apud MAGALHÃES, 1969, p. 48), explica: "no exercício regular de direito, se compreendem ações que a lei não proíbe".

Em relação ao Exercício Regular de Direito, aduz Motta (2000, p. 60) que: "deve-se observar que o exercício de direitos deve ser efetivado dentro da condicionante expressa pelo adjetivo regular, ou seja, de forma não abusiva e rigorosamente dentro da autorização dada."


7. Atipicidade Conglobante

Tipicidade Conglobante é a efetiva lesão, ou perigo de lesão a bens jurídicos tutelados, violação de uma norma, e a inexistência de lei que imponha ou autorize essa conduta lesiva. Para Greco:

A tipicidade conglobante surge quando comprovado, no caso concreto, que a conduta praticada pelo agente é considerada antinormativa, isto é, contraria à norma penal, e não imposta ou fomentada por ela, bem como ofensiva a bens de relevo para o Direito Penal (tipicidade material). (2007, p. 157)

A Tipicidade Material é a relevante lesão a bens jurídicos penalmente tutelados. Greco (2007, p.65) ensina que: "O bem juridicamente protegido pelo Direito Penal deve, portanto, ser relevante, ficando afastados aqueles considerados inexpressivos". Portanto a lesão ao bem jurídico só é relevante se o mesmo for tutelado e a ofensa efetiva.

Ainda sobre a Tipicidade Material assevera Assis Toledo (Apud MOTTA, p. 19): "para que se possa enquadrar uma determinada conduta como típica é necessário que, além do juízo formal de subsunção, a mesma seja material mente lesiva a bens jurídicos...".

Finalmente, afirmam Zaffaroni e Pierangeli que:

...as afetações de bens jurídicos exigidas pela tipicidade penal requeriam sempre alguma entidade isto é, alguma gravidade, posto que nem toda afetação mínima do bem jurídico era capaz de configurar a afetação requerida... (1999, p. 562)

A Tipicidade Conglobante, como mencionado acima, é a inexistência de uma conduta fomentada ou autorizada por lei, efetiva lesão a um bem jurídico e violação de uma norma penal. Segundo a lição de Mirabete (2008, p.103): "A atipicidade é a ausência de tipicidade". Incorrendo nessa assertiva, podemos concluir que a Atipicidade Conglobante surge na verificação do caso concreto quando a conduta do agente está acobertada, como nas palavras de Zaffaroni e Pierangeli (1999, p. 551), por uma "norma preceptiva (uma ordem)", e é antinormativa – violação de uma norma penal.

Zaffaroni e Pierangeli, esclarecendo a diferença entre a Teoria da Tipicidade Conglobante e a existência de Tipos Permissivos ensinam que:

É precisamente esta a mais importante diferença entre a tipicidade conglobante e a justificação: a tipicidade conglobante não surge em função de permissões que a ordem jurídica resignadamente concede, e sim em razão de mandatos ou fomentos normativos ou de indiferença (por insignificância) da lei penal. (1999, p. 461)

Assim, é possível citar a lição de Motta que aduz:

...o exercício regular de um direito incentivado ou fomentado pela ordem jurídica, cujo desempenho necessariamente implique lesão a um bem jurídico, será causa de atipicidade. No caso de o direito incentivado ou fomentado "não acarretar forçosamente ofensa ao interesse protegido", o seu regular exercício será excludente da antijuridicidade. Se o direito for meramente autorizado, também terá natureza de excludente da ilicitude, pois, nesse caso, não ocasiona obrigatoriamente uma ofensa ao bem jurídico e, se esta ocorrer, a conduta do agente sempre será típica, porém lícita. (Apud ISOLDI FILHO, 2008, p. 62)

No mesmo prisma da lição supracitada, Zaffaroni e Pierangeli exemplificam que:

...o direito, eventualmente, obriga o cirurgião a praticar certas intervenções, não há dúvida de que as intervenções cirúrgicas com finalidade terapêutica são altamente fomentadas pela ordem jurídica [...] Entretanto, nem todas as intervenções cirúrgicas têm fim terapêutico, como ocorre em certas intervenções de cirurgia plástica ou na extração de órgãos (rins, por exemplo) ou de tecidos (sangue) para serem transplantados em outra pessoa (o fim terapêutico diz respeito ao outro, mas não ao doador). Nesses casos de intervenção sem fim terapêutico, as lesões não são atípicas, mas estão justificadas dentro de certos limites, implicados no legítimo exercício de uma profissão lícita, isto é, sempre que o médico exerça sua profissão conforme as disposições que regulamentam. (1999, p. 557- 558)

É possível afirmar, contrariando o entendimento de Zaffaroni e Pierangeli, que mesmos nos casos de exercício regular de direito serão causas de exclusão da tipicidade, pois o Estado incentiva essas condutas, dando a seus titulares a prerrogativa de exercício desse direito. Por exemplo, na extração de tecidos ou de órgãos é ilógico dizer que o médico ou qualquer outra pessoa que esteja praticando a conduta, realiza uma lesão corporal justificada. Tendo em vista a natureza da intervenção, que é a de salvar outras vidas, é menos antinormativa que uma simples cirurgia para retirada das amígdalas – que possui fim terapêutico.

Entende-se que o exercício regular de direito e o estrito cumprimento do dever legal sempre incidirão na existência de conduta imposta ou incentivada e, por conseguinte acarretarão a Atipicidade Conglobante do fato. Nesse ponto de vista, concordamos com a lição de Isoldi Filho: "tanto o estrito cumprimento de dever legal quanto o exercício regular do direito sempre possuem natureza jurídica de causa de exclusão da tipicidade, em razão da aplicação do critério da atipicidade conglobante", e finaliza seu raciocínio dizendo:

Pouco importa se o dever legal é genérico ou específico, pois, em ambos os casos, há imposição da lei e seu cumprimento nunca pode ser considerado fato típico. O exercício regular de direito, seja ele autorizado, fomentado ou incentivado, também sempre será causa de exclusão da tipicidade do fato. Em nenhum desses casos há lesão a bem jurídico penalmente tutelado. (2008, p. 62-63)

Podemos citar como exemplo o caso de médico anestesista que, por já estar cuidando de um paciente anestesiado, se nega a anestesiar outro paciente, que necessita imediatamente ser operado, e vem a óbito. Existe neste caso uma conduta omissiva, resultado naturalístico (morte), nexo de causalidade entre a conduta e o resultado, tipicidade formal (art. 135 do Código Penal: Omissão de Socorro), tipicidade material, pois há efetiva lesão a bem jurídico (vida). Porém, não há tipicidade conglobante, por existir uma norma que proíbe o médico anestesista de cuidar, simultaneamente, de dois pacientes anestesiados, conforme o inciso IV, Art. 1º da Resolução nº 1802/2006 do Conselho Federal de Medicina que dispõe: "IV – É ato atentatório à ética médica a realização simultânea de anestesias em pacientes distintos, pelo mesmo profissional.". O fato não será típico, porém lícito, mas sim conglobadamente atípico pela existência de uma norma extra penal que proíba a conduta do médico, mesmo que o possível resultado seja a morte do paciente necessitado.

Defende-se que a interpretação de cada fato deve ser feita com relação a todo o ordenamento jurídico, pois como ensinam Zaffaroni e Pierangeli:

não podemos admitir que na ordem normativa uma norma ordene o que a outra proíbe. Uma ordem normativa, na qual uma norma possa ordenar o que a outra pode proibir, deixa de ser ordem e de ser normativa e torna-se uma "desordem" arbitrária. (1999, p. 458)

Ao interpretarmos as normas penais e todo o ordenamento jurídico, devemos fazê-lo de modo lógico-sistemático, vislumbrando o ordenamento como um sistema normativo indivisível e perfeito, como o é, no qual não é possível encontrar antinomias.


8. Conclusão

Para ser possível dizer que uma pessoa cometeu um crime é imprescindível que sua ação ou omissão seja previamente descrita em lei, lese ou ameace de lesão algum bem jurídico, vá de encontro com o ordenamento jurídico e o agente possa responder pelos seus atos.

Logo, levando em consideração o exposto acima é possível afirmar que: Crime é a conduta, que lesa ou coloca em perigo bens juridicamente tutelados, previamente descrita em lei penal incriminadora e que estejam presentes todos os elementos constitutivos essenciais (Fato Típico, Antijuridicidade e Culpabilidade).

Fato Típico é o primeiro, em uma perspectiva didática, dos elementos constitutivos de crime e se trata da conduta que o legislador ordinário considera nociva para a sociedade, e decide punir aqueles que a pratiquem. O Fato Típico pode ser seccionado em quatro componentes: Conduta, que é a ação ou omissão, humana, dolosa ou culposa dirigida a um fim; Resultado, podendo ser Jurídica – lesão ou ameaça de lesão a um bem jurídico tutelado –, Naturalístico – modificação do mundo real, produzida pela conduta humana; Nexo Causal, refere-se a linha tênue que une a conduta do agente ao resultado; Tipicidade Penal é a conjugação da Tipicidade Formal e da Tipicidade Conglobante, ou seja, o resultado da união do aspecto legal e do fático.

Antijuridicidade ou Ilicitude é a existência de uma conduta, previamente subsumida ao tipo legal, e não abarcada por um tipo permissivo, constituindo lesão ou ameaça de lesão a um bem jurídico. Para dizer que uma conduta é ilícita não basta verificar a contradição entre conduta e o ordenamento jurídico, é necessário também aferir se no caso concreto a conduta não está abarcada por nenhuma causa justificadora, como por exemplo: Legítima defesa e Estado de Necessidade, situações estas em que a conduta será Típica, porém Lícita.

Culpabilidade é o elemento mais abstrato do crime, devendo ser analisado de agente por agente. As perspectivas a serem analisados na culpabilidade são: Imputabilidade trata-se da verificação se o agente é capaz de entender a antijuridicidade do fato, e se auto-determinar diante dessa situação; Potencial Consciência da Ilicitude do Fato é o conhecimento de que o ato praticado pelo agente é crime; Inexigibilidade de Conduta Diversa é a conjuntura na qual a conduta praticada pelo agente não seria socialmente condenável por nenhuma outra pessoa.

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Entende-se por Estrito Cumprimento do Dever Legal a situação em que a norma jurídica impõe uma conduta a determinada pessoa, e esta a cumpre rigorosamente da forma descrita em lei, deve-se atentar que a conduta descrita em lei é obrigatória, e não uma simples faculdade da pessoa em cumpri-la ou não.

Exercício Regular de Direito é a situação em que o ordenamento jurídico estimula determinada pessoa a agir regularmente conforme seu incentivo. Não sendo esta vinculada ao cumprimento, é decisão da própria pessoa fazer ou deixar de fazer o que a lei incita. Partindo de uma interpretação teleológica, combinado com o inciso II, do artigo 5ª da Constituição Federal, é correto afirmar que aquele que realiza uma conduta não proibida por lei, também está salvaguardado pelo Exercício Regular de Direito, pois o que a lei fomenta e a pessoa cumpre ou não, é permitido (Exercício Regular de Direito Positivo), logo, o que a lei não proíbe e alguém faz, também é permitido (Exercício Regular de Direito Negativo).

Tipicidade Conglobante é a efetiva ofensa ou perigo de lesão a bens jurídicos tutelados, transgressão de uma norma, e inexistência de lei que imponha ou incite essa conduta lesiva. Porém, para esse estudo mereceu mais foco a inexistência de lei que imponha ou autorize determinada conduta lesiva, pois o ordenamento jurídico é uno, e se porventura existir uma norma que fomente ou obrigue uma conduta e uma norma que incrimine essa mesma conduta, esse fato não será crime.

Atipicidade Conglobante consiste na teoria que para se aferir a tipicidade de um fato deve se vislumbrá-lo conglobadamente, ou seja, com todo ordenamento jurídico, e não apenas em leis penais incriminadoras.

Ao interpretarmos as normas penais e todo o ordenamento, devemos fazê-lo de modo lógico-sistemático, vislumbrando o ordenamento como um sistema normativo indivisível e perfeito, no qual não é possível encontrar antinomias. Não é de se admitir que em um sistema fechado uma norma tipifique uma conduta, e ao mesmo tempo, outra norma ordene ou fomente essa mesma conduta.

Ao cumprir uma ordem ou faculdade legal, não é correto dizer que uma pessoa cometeu um fato típico, posto que o próprio Estado incentivou ou impôs essa conduta, então o fato será Atípico. Portanto, se a conduta é fomentada ou determinada por lei, não há necessidade de lançar mão de uma causa de justificação, tendo em vista que o próprio ordenamento jurídico obrigou ou estimulou essa conduta.


Referências Bibliográficas

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NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

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TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

ZAFFARONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

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Sobre o autor
Daniel de Souza Exner Godoy

Acadêmico do curso de Direito da Unisal de Lorena-SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GODOY, Daniel Souza Exner. Atipicidade conglobante no estrito cumprimento do dever legal e exercício regular de direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2499, 5 mai. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14801. Acesso em: 18 abr. 2024.

Mais informações

Trabalho elaborado sob a orientação do Prof. Eduardo Luiz Santos Cabette.

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