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O caso dos subsídios do algodão entre Brasil e EUA.

O uso efetivo da retaliação cruzada como prova final da eficácia do sistema de solução de controvérsias da OMC: redenção ou ruína?

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27/05/2010 às 00:00
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4. Realiação Cruzada no âmbito do Acordo TRIPS.

Relatado todo o caso do algodão entre Brasil e Estados Unidos e demonstrada a real intenção de se efetivar a retaliação cruzada em bens e no âmbito dos acordos TRIPS, tal como se vê nas Resoluções da CAMEX nº 74/2009 e nº 15 e nº 16 de 2010, e na Medida Provisória nº 482, de 10 de fevereiro de 2010, é necessário analisar quais as conseqüências práticas desta efetivação, ou seja, quais os benefícios e os prejuízos poderão advir na prática.

Infelizmente muito pouco se sabe sobre assunto, e quase não existem estudos sobre ele. A OMC agora com o caso do algodão somente autorizou a retaliação cruzada por três vezes na sua história, sendo que nas duas primeiras no caso das Bananas do Equador x Comunidade Européia, e no caso dos Jogos eletrônicos de azar de Antigua x EUA, a retaliação não foi efetivada. Pela primeira um país em desenvolvimento que possui uma grande economia pretende fazê-lo. Trata-se de um assunto na sua essência muito novo e sem qualquer parâmetro de comparação.

A retaliação cruzada sem dúvida possui seus méritos e a lógica sobre a qual foi construída é de inegável valor. Na ausência de uma autoridade internacional capaz de fazer cumprir a decisão da OMC, atingir dentro do país infrator outros setores suficientemente influentes para forçar a mudança das condutas ilegais, é atualmente a única medida coercitiva disponível dos países em desenvolvimento nas contendas com os países desenvolvidos, que são avessos a cumprir as decisões do Sistema por eles mesmo criado.

Todavia, esta efetivação tem um custo muito grave. Toda retaliação, invariavelmente, afeta a economia interna do próprio país retaliador na medida em que se encarecem os produtos importados, podendo gerar desabastecimento interno, além de todo o desgaste político e comercial envolvido, entre outras conseqüências.

Segundo Gregory Shaffer, muito embora o sistema judicial da OMC seja caracterizado pelo legalismo procedimental e pela aplicação da lei, ele permanece sendo orientado pelo poder econômico na sua essência. A retaliação é um mecanismo que depende do poder que o país exerce no mercado. "Assim, os países desenvolvidos podem pressionar os menos desenvolvidos a obedecer as regras e normas da OMC, posto que o acesso aos mercados dos maiores é essencial para a exportação dos menores. Os países pequenos já não exercem tal influência". (2007, p. 183). Daí que a indução ao cumprimento de uma retaliação depende muito mais do poderio econômico do que do aparto legal, situação esta que tende muito mais a favor dos países desenvolvidos. Esta lógica, infelizmente, ainda é inegável também e pode ser visa na própria jurisprudência da OMC.

O presente tópico, portanto, se dedica a analisar quais os méritos e quais as conseqüências da efetivação da retaliação cruzada no caso do algodão, caso o Brasil de fato resolva implementá-la no âmbito do acordo TRIPS. Começará descrevendo as vantagens da retaliação cruzada e depois os problemas de sua aplicação tal como obstáculos provenientes da legislação internacional e interna, ou da falta dela, quais os possíveis prejuízos econômicos e comerciais envolvidos, passará para a questão da dificuldade em se verificar a nacionalidade do detentor prejudicado da propriedade intelectual, e finalizará pela questão da dificuldade do cálculo monetário da retaliação neste âmbito. Não se dedicará, outrossim, a falar da retaliação entre setores e entre acordo de serviços (GATS), uma vez que as conseqüências são praticamente as mesmas, e sem dúvida a retaliação em TRIPS é a que causa a maior preocupação nos países desenvolvidos, detentores da maioria das marcas e patentes no mundo, e que é capaz de gerar os maiores benefícios ao Brasil. Ainda, vale ressaltar que o Brasil através da Resolução nº 16 da CAMEX e a MP 482/2010, se dedicou somente a retaliação em TRIPS, demonstrando a nítida escolha para a retaliação somente neste acordo.

4.1 – Vantagens da Retaliação Cruzada no âmbito do TRIPS.

Segundo Lucas Spadano, muitos países em desenvolvimento quando da rodada do Uruguai foram contrários ao acordo TRIPS. Eles consideravam que proteger a propriedade intelectual causaria prejuízos para suas economias, uma vez que os países pobres são mais imitadores do que inovadores da tecnologia. Todavia, é justamente por isto que a retaliação cruzada funcionaria tão bem contra os países desenvolvidos. A suspensão dos direitos à propriedade intelectual possibilitaria aos países em desenvolvimento desenvolver produtos a preços bem mais baixos, sem observância das regras de marcas e patentes e sem o pagamento de royalties, não afetando em nada a sua economia, o que por si só já é uma grande vantagem. (2008, p. 533)

A segunda e mais forte vantagem é que a retaliação cruzada no âmbito do TRIPS pode mirar setores muito influentes da economia do país demandado. E a razão principal disto é que certo detentores dos direitos de propriedade intelectual nos países desenvolvidos, tais como a indústria farmacêutica e de computação, são poderosos lobistas. Caso sejam retirados seus direitos inerentes à propriedade intelectual por causa de políticas adotadas em outro setor da economia, conta-se com a idéia de que estes setores fariam o seu melhor dentro do país retaliado para retirar as práticas que foram consideradas ilegais pela OMC.

A combinação destas duas vantagens pode levar a conclusão de que a suspensão das obrigações sobre o acordo TRIPS pode potencialmente, ser mais efetivo como um mecanismo de indução ao cumprimento das decisões da OMC pelos países desenvolvidos do que a retaliação em bens ou serviços (SPADANO, 2008, p. 534). Na teoria esta prática só iria atingir o país demandado nunca o demandante. Todavia, existem muitos outros problemas na aplicação da retaliação cruzada que quebram esta premissa.

4.2 – Problemas que envolvem a retaliação cruzada.

Apesar das vantagens aparentes e do sistema legal sólido que escora a retaliação cruzada, a sua aplicação efetiva não é uma tarefa que pode ser considerada fácil. Até mesmo a sua definição técnica se mostra difícil. Basta ver a quantidade de respostas e discussões que geraram as consultas públicas propostas pela CAMEX no caso do algodão e a dificuldade em se elaborar a lista de produtos que sofreriam a retaliação e neste momento a definição de quais medidas de restrição a propriedade intelectual serão tomadas.

Embora na teoria a retaliação sobre TRIPS seja vantajosa por não afetar o país demandado, a sua efetivação pode sim gerar prejuízos aos demandantes tais como o aumento da pirataria, a escassez de produtos importados essenciais no mercado consumidor, por exemplo, medicamentos e produtos de informática, pode interferir na propriedade privada de importadores brasileiros que verão seu negócio ruir, e que podem gerar uma séria de demandas judiciais internas por ser a retaliação incompatível com as leis internacionais e internas, podendo-se até mesmo argüir a inconstitucionalidade dessas. Ou seja, uma serie de conseqüências adversas podem ser aventadas hipoteticamente. Diga-se mais uma vez em hipótese, porque nunca a retaliação cruzada foi efetivada. Os problemas que serão apontados são apenas os que potencialmente podem ocorrer e somente com a efetivação se comprovará todas estas teses contrárias à retaliação.

4.2.1 – Aplicação da decisão na ordem jurídica interna.

O primeiro possível problema da efetivação da retaliação cruzada se encontra no próprio âmbito legal interno do país demandante, ou melhor, na ausência de uma lei que garanta a aplicação da decisão da OMC dentro do próprio país demandante. A retaliação, seja ela qual for, por sua própria natureza sempre gera prejuízos, é o que se pode chamar de injustiça inerente da retaliação. Por ser ela temporária na essência, mas indefinida no tempo, detentores de propriedade intelectual americanos podem tentar barrar sua aplicação na ordem jurídica Brasileira por considerar a suspensão das obrigações do TRIPS inconstitucionais e ilegais a luz da Constituição Federal Brasileira, uma vez que atentam contra o direito a propriedade privada.

Uma possível solução para este problema seria a previsão em âmbito interno de normas que consagrem as decisões da OMC e que as entendam totalmente aplicáveis no país. Com a iminência da efetivação da retaliação e diante da ausência de uma lei neste sentido, o Poder Executivo brasileiro, se valendo do art. 62 da Constituição Federal, publicou em 10 de fevereiro de 2010 a Medida Provisória nº 482, que "dispõe sobre medidas de suspensão de concessões ou outras obrigações do País relativas aos direitos de propriedade intelectual e outros, em casos de descumprimento de obrigações do Acordo Constitutivo da Organização Mundial do Comércio - OMC."

A MP no inciso IV do art. 2º define o que seriam direitos de propriedade intelectual sujeitas a retaliação: a) obras literárias, artísticas e científicas; b) artistas intérpretes ou executantes, produtores de fonogramas e organismos de radiodifusão; c) programas de computador; d) marcas; e) indicações geográficas; f) desenhos industriais; g) patentes de invenção e de modelos de utilidade; h) cultivares ou variedades vegetais; i) topografias de circuitos integrados; j) informações confidenciais ou não divulgadas; e k) demais direitos de propriedade intelectual estabelecidos pela legislação brasileira vigente. 

No seu artigo 3º estabelece quais são as possibilidades de medidas a serem aplicadas contra pessoas naturais nacionais ou domiciliadas em determinado Estado, ou pessoas jurídicas domiciliadas ou com estabelecimento efetivo neste, quando este deixar de implementar decisões do OSC em detrimento do Brasil, in verbis: "I - suspensão de direitos de propriedade intelectual; II - limitação de direitos de propriedade intelectual; III - alteração de medidas para a aplicação de normas de proteção de direitos de propriedade intelectual; IV - alteração de medidas para obtenção e manutenção de direitos de propriedade intelectual; V - bloqueio temporário de remessa de royalties ou remuneração relativa ao exercício de direitos de propriedade intelectual; e VI - aplicação de direitos de natureza comercial sobre a remuneração do titular de direitos de propriedade intelectual."

Por fim, o art. 6º determina os modos de implementação das contramedidas, que poderão ser aplicados isolada ou cumulativamente, e que foram adotadas na Resolução nº 16 da CAMEX, sempre em caráter temporário:

I - postergação do início da proteção a partir de data a ser definida pelo Poder Executivo, com a consequente redução do prazo de proteção, para pedidos em andamento de proteção de propriedade intelectual;

II - subtração do prazo de proteção, por prazo determinado, em qualquer momento de sua duração;

III - licenciamento ou uso público não comercial, sem autorização do titular;

IV - suspensão do direito exclusivo do titular de impedir a importação e comercialização no mercado interno de bens que incorporem direitos de patente, ainda que o bem importado não tenha sido colocado no mercado externo diretamente pelo titular dos direitos de propriedade intelectual ou com seu consentimento;

V - majoração ou instituição de adicional sobre os valores devidos aos órgãos ou entidades da administração pública para efetivação de registros de direitos de propriedade intelectual, inclusive sua obtenção e manutenção;

VI - bloqueio temporário de remessas de royalties ou remuneração relativa ao exercício de direitos de propriedade intelectual dos licenciados nacionais ou autorizados no território nacional;

VII - aplicação de direitos de natureza comercial sobre a remuneração a que fizer jus o titular de direitos de propriedade intelectual; ou

VIII - criação de obrigatoriedade de registro para obtenção e manutenção de direitos de propriedade intelectual. 

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Apesar de ter perdido força com a publicação da MP 482/2010, o projeto de Lei 1.893/2007 do Deputado Federal Paulo Teixeira (PT/SP), que "Dispõe sobre medidas de suspensão e diluição temporárias ou extinção da proteção de direitos de propriedade intelectual no Brasil em caso de descumprimento de obrigações multilaterais por Estado estrangeiro no âmbito da Organização Mundial do Comércio", corre em paralelo até que a MP 482/2010 seja convertida em lei. Segundo o deputado, o projeto de lei por si só já seria um forte mecanismo de indução ao cumprimento das decisões da OMC, uma vez que o Brasil teria de antemão um aparato legal pronto para aplicar imediatamente as retaliações autorizadas pelo OSC.

O Projeto de Lei prevê que (Art. 5º): "(...) o Presidente da República decretará a suspensão, diluição ou extinção da proteção de direitos de propriedade intelectual de que trata a presente Lei, objetivando, alternada ou cumulativamente" entre outras medidas: "a rejeição temporária de pedidos de registro de direitos de propriedade intelectual (...); interrupção temporária do procedimento de análise desses pedidos de registro (...); o bloqueio temporário de remessas de ‘royalties’ ao exterior (...); o licenciamento compulsório desses direitos (...); a não concessão de registro para explorar economicamente o objeto da proteção da propriedade intelectual; o estabelecimento de domínio público temporário desses direitos (...); a extinção de direitos de propriedade intelectual".

Com efeito, os detentores de propriedade intelectual estrangeiros prejudicados com a retaliação poderiam questionar nos tribunais brasileiros a constitucionalidade da MP 482/2010 por serem os direitos de propriedade intelectual garantias fundamentais previstas pelo art. 5º, XXVII, XXVIII e XXIX da Constituição Federal:

Art. 5º, XXVII - aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar;

Art. 5º, XXVIII - são assegurados, nos termos da lei:

a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas;

b) o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes.

Art. 5º, XXIX - a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País.

Contudo, os direitos fundamentais não são absolutos e muitos deles comportam hipóteses de limitação em vista do interesse público e da função social. O art. 5º, XXIX, por exemplo, comporta esta limitação. Se em uma demanda judicial se considerar que a observância das normas da OMC, principalmente das decisões do OSC, é de suma importância para o interesse social e o desenvolvimento econômico do País, não há que se falar em inconstitucionalidade. Numa disputa ferrenha de poder tal como é travada no comércio internacional, é de extremo interesse social e econômico para o Brasil que o seu sistema legal interno garanta a efetividade das retaliações que lhe forem autorizadas pela OMC. Depois de tanta luta para se conseguir a autorização do OSC para retaliar os EUA, como foi o caso do algodão, barrar a sua efetivação por falta de respaldo jurídico interno é jogar por terra todo o prestígio e todo o trabalho do Brasil perante a OMC, o que sem dúvida demonstrará em âmbito internacional a fraqueza do país e a insegurança do seu sistema jurídico. Os reflexos no comércio internacional, principalmente na negociação e nos investimento, serão imediatos. Daí que não há que se falar em inconstitucionalidade da MP 482/2010 e do projeto de Lei 1.893/2007. A plena aplicação das decisões da OMC no direito interno é de sumo interesse público, econômico e social.

Alguns especialistas sobre a matéria, como André Zonaro Giacchetta, Renê Guilherme S. Medrado, e Márcio Junqueira Leite criticam a pouca efetividade de algumas medidas do art. 6º [23],como a "postergação do início da proteção" ou a "redução do prazo de proteção" para pedidos em andamento, já que nem todos os direitos de propriedade intelectual dependem de registro, dispensável no caso dos direitos autorais. Além disto, os depositantes de marcas, patentes e desenhos industriais no Instituto Nacional da Propriedade Intelectual - INPI possuem mera expectativa de direito, não sendo intensamente afetados com a "postergação do prazo de proteção". No caso das patentes, há mais uma dificuldade, uma vez que a sua proteção retroage à data do depósito, independentemente da demora do exame pelo INPI.

Ainda sobre o Projeto de Lei 1.893/2007, os mesmo especialistas apontam inúmeras impropriedades técnicas. Segundo estes somente as três últimas contramedidas seriam efetivas: (i) o incremento na retribuição devida aos órgãos públicos que realizam registros de direitos de propriedade intelectual; (ii) o bloqueio temporário da remessa de "royalties" e pagamento de assistência técnica, resultantes da exploração dos direitos de propriedade intelectual; e (iii) o licenciamento compulsório de direitos, que, ao menos em relação às patentes, têm regras definidas nos artigos 68 e seguintes da Lei da Propriedade Industrial, autorizando a exploração apenas a determinadas pessoas, mediante justa remuneração. Todas as demais não passam de medidas já previstas na Lei de Propriedade Intelectual, ou são por si mesmos inócuas.

Estas críticas, por sua vez, de nada afetam a legitimidade das decisões da OMC no Ordenamento Jurídico interno, mas ao contrário são muito bem vindas e devem ser dirigidas às comissões do Congresso Nacional que são as responsáveis pela analise e aprovação do Projeto de Lei ou a Conversão em Lei da MP 482/2010. O debate é o mais importante neste momento para que o Brasil possa contar com uma lei de efetivação das retaliações clara, eficiente e tecnicamente adequada, para aí sim se tornar uma ameaça concreta para os países desenvolvidos no que diz respeitos a sua propriedade intelectual protegida pelo TRIPS. Somente assim esta lei seria capaz de produzir indução ao cumprimento das decisões da OMC. Portanto, a atual legislação sobre o assunto, por mais que ainda não se encontre perfeita, é válida e se torna uma importante ferramenta a disposição dos nossos diplomatas e negociadores do comércio internacional, quando estiverem a volta de questões envolvendo a fase de implementação das decisões da OMC.

4.2.2 – Conflito de leis e tratados internacionais.

Um ponto interessante sobre eventuais problemas de aplicação da retaliação cruzada em TRIPS apontado por Lucas Spadano (2008, p. 535-536) diz respeito ao aparente conflito de normas e tratados internacionais que protegem a propriedade intelectual e que podem ser alegados nos tribunais nacionais e até mesmo no âmbito da OSC.

O autor cita um interessante possível conflito entre nas normas da OMC e outras normas internacionais conforme foi questionado no caso das Bananas do Equador onde houve uma discordância entre as partes da contenda se o Acordo TRIPS permitiria a suspensão de direitos de propriedade intelectual que estariam protegidas e administradas pela Organização Mundial de Propriedade Intelectual (WIPO em inglês). O artigo 2.2 do Acordo TRIPS determina que "nada nas Partes I a IV deste Acordo derrogará as obrigações existentes que os Membros possam ter entre si, em virtude da Convenção de Paris, da Convenção de Berna, da Convenção de Roma e do Tratado sobre a Propriedade Intelectual em Matéria de Circuitos Integrados." [24] Assim, em uma disputa entre dois membros que também são partes das convenções da Organização Mundial de Propriedade Intelectual, uma suspensão de patentes por exemplo poderia violar a Convenção de Paris (artigo 2 º), a de direitos autorais poderia violar a Convenção de Berna (artigos 9, 13, 14, 16) ou o Convenção de Roma (artigos 2, 10, 13, 14).

Apesar dos árbitros declararem a sua incompetência para manifestar sobre a matéria, enfatizaram que o aludido artigo 2.2 não menciona a Parte V do Acordo TRIPS, que se refere à resolução de litígios e a aplicabilidades das normas do OSC. O artigo 22.3 do ESC, por sua vez, menciona explicitamente o TRIPS como um acordo que pode sofrer pedido de suspensão de suas obrigações. Assim, nada no ESC ou no acordo TRIPS sugere que uma suspensão de direitos de propriedade intelectual seria proibida pelas normas da OMC.

Esta questão, portanto, poderia ser levado a um tribunal nacional argüindo um aparente conflito de normas entre as leis da OMC e da WIPO. Todavia, de acordo com o entendimento do professor Spadano, do qual este estudo comunga, esta questão pode ser facilmente resolvida através da aplicação do artigo 30 da Convenção de Viena sobre as leis dos Tratados que consagra os princípios da lex specialis derogat generali e lex posteriori derogat priori, daí justamente a aparência do conflito. A autorização da suspensão dos direitos de propriedade intelectual do artigo 22.3 do ESC é uma norma muito mais especifica do que os seus Tratados de proteção geral. Ainda, além de serem as normas da OMC bem mais especificas são mais recentes, não restando qualquer dúvida sobre a sua prevalência.

Outro potencial conflito pode aparentemente acontecer caso exista entre o país demandante e o pais demandado um Tratado Bilateral de Investimentos (BITs sigla em inglês) que expressamente garanta a propriedade intelectual, um potencial conflito de leis pode ser alegado. A solução para este conflito também se daria pela aplicação do artigo 30 da Convenção de Viena sobre as leis dos Tratados (lex specialis derogat generali), prevalecendo as normas da OMC.

4.2.3 – Conseqüências econômicas adversas da Retaliação Cruzada em TRIPS.

Os aspectos econômicos da Retaliação Cruzada em TRIPS são os principais problemas que serão vistos e sentidos pela população tanto do país retaliador como do retaliado. Tanto é assim que o art. 22.3(d) do ESC é claro quando solicita seja considerado o impacto sobre o comércio no setor atingido pela violação, e o impacto econômico mais amplo sobre a economia, bem como as conseqüências graves da medida de suspensão e outras obrigações. A leitura do dispositivo aponta para a consideração do grau de violação e suas conseqüências não somente relacionadas com o comércio afetado, mas os efeitos mais amplos sobre a economia do país (PINHEIRO, 2007, p. 176).

Apesar disto, os árbitros no caso do algodão não consideram como conseqüências suficientemente graves para autorizar a retaliação cruzada, o impacto inflacionário na economia brasileira, a possibilidade de interrupção do desenvolvimento econômico brasileiro e o bem-estar do seu mercado consumidor. Somente levou em consideração o impacto dos subsídios no mercado mundial de algodão e os prejuízos que lhe foram causados. Todas estas circunstâncias econômicas dizem respeito unicamente aos prejuízos causados quando a retaliação somente em bens não é praticável ou efetiva. Pouco se sabe, contudo, quais seriam as conseqüências da efetivação em si da retaliação cruzada.

Subramanian e Watal (2000, p. 414) destacam que a primeira conseqüência econômica adversa da retaliação cruzada sobre o TRIPS seria desencorajar investimentos estrangeiros na área de propriedade intelectual e em outros setores. Estes autores concluíram que a quantidade e disponibilidade dos investimentos estariam ligados diretamente a como e com que freqüência a retaliação cruzada é aplicada. Uma aplicação temporária e bem desenhada da retaliação em alguns setores pré-determinados podem minimizar este efeito contrário aos investimentos. Todavia, mesmo sendo a proteção à propriedade intelectual um dos motivos determinantes para investidores estrangeiros decidirem investir em uma economia de um país em desenvolvimento, esta não parece ser uma preocupação destes, o que causa certa estranheza para estes autores, tendo em vista a importância que tais investimentos exercem sobre a sua economia.

Outra questão que tem grandes conseqüências econômicas diz respeito ao contraste entre a natureza temporária da suspensão das obrigações em TRIPS e os investidores domésticos que irão aproveitar desta suspensão. Nos termos do art. 22.8 do ESC, "a suspensão de concessões ou outras obrigações deverá ser temporária e vigorar até que a medida considerada incompatível com um acordo abrangido tenha sido suprimida, ou até que o Membro que deva implementar as recomendações e decisões forneça uma solução para a anulação ou prejuízo dos benefícios, ou até que uma solução mutuamente satisfatória seja encontrada."

Diante da natureza temporária da suspensão e da iminência de a qualquer momento esta se acabar, como convencer um empresário brasileiro a investir o seu dinheiro, por exemplo, na produção de um remédio onde foi temporariamente autorizada a quebra de patente do seu dono americano, sem oferecer a ele nenhuma garantia? Se o mercado doméstico ficar desabastecido do remédio importado e não se conseguir comprar de nenhum outro país, será que alguma empresa brasileira se prontificaria a investir recursos com base em uma medida que pode acabar a qualquer momento sem nenhuma garantia do seu investimento? E ainda, como ficaria o consumidor brasileiro em volta de tantos interesses econômicos?

A fim de minimizar esta insegurança o art. 10 da MP 482/2010, destaca o caráter temporário da retaliação vinculada ao tempo da autorização da OMC, e no seu parágrafo único garante que o restabelecimento das concessões e obrigações outrora suspensas: "I – não importa a restauração de direitos que tenham sido afetados pela aplicação das medidas; e II – não prejudicará os interesses legítimos de terceiros decorrentes de contratos firmados ou de usos autorizados pelo Poder Executivo, durante a aplicação de medidas adotadas com fundamento nesta Medida Provisória."

Este parágrafo único tem endereço certo. Serve para resguardar os direitos dos investidores domésticos e estrangeiros interessados em aproveitar a suspensão temporária dos direitos de Propriedade Intelectual. Apesar da excelente intenção do Poder Executivo em garantir os direitos de terceiros, na prática a Medida Provisória, por obvio não determinou como se dará esta proteção. Fica nítido que este investidor caso o próprio mercado o engula com o fim das suspensões terá que buscar a sua reparação no Poder Judiciário, sem qualquer garantia da Administração. Será que seria isto um bom negócio diante da "eficiência" e "celeridade" do Judiciário brasileiro? É muito provável que não. Daí apesar do resguardo legal, que pode até mesmo não vir a sê-lo caso a Medida Provisória não seja convertida em lei nos mesmos termos que foi publicada primeiramente, o investidor ainda assim ficará sem qualquer garantia ou proteção efetiva. Isto diminui em muito a possibilidade de se encontrar fontes alternativas, principalmente domésticas, dos produtos que terão as patentes quebradas, o que anulará todos os possíveis benéficos que as suspensões de obrigações e concessores poderiam gerar para o país demandante.

Segundo Vranes (2003, p. 128), este seria sem dúvida o problema prático mais grave que envolve o tema da retaliação cruzada em TRIPS. Uma solução parcial seria concentrar as retaliações nas remessas de pagamento de Royalties, que não afetaria o mercado consumidor do país demandante, mas isto não resolve o problema posto aqui.

Portanto, no que diz respeito aos efeitos econômicos que envolvem a retaliação cruzada, se esta não for adotada com ótimos parâmetros técnicos pode-se se tornar um tiro no pé, uma vez que significará aumento de preços para os consumidores e a redução do bem estar geral dos consumidores dos países retaliadores, além de trazer sérios prejuízos para o setor importador e para as relações comerciais entre os países demandantes e demandados. Para Hudec (2000, p. 387) a retaliação cruzada somente deve ser adotada quando tiver o objetivo de ajudar a remover a violação (indução de cumprimento da decisão), ou pelo menos para obter equivalentes propostas comerciais em compensação. De outra forma a retaliação cruzada significará sempre prejuízo para o demandante. É o que pode ocorrer com o Brasil no caso do algodão.

4.2.4 – Dificuldade em determinar as nacionalidades dos atingidos pela retaliação.

Em certas categorias de propriedade intelectual não é tão fácil determinar a nacionalidade de seus proprietários, o que pode ocasionar um problema na efetivação da retaliação. Por exemplo, no caso de marcas e patentes de empresas holding que podem ter múltiplas identidades, e produtores e artistas da indústria fonográfica que podem também não ter a mesma nacionalidade. Isto pode ser um grave problema na identificação da propriedade intelectual sobre certos produtos e marcas. (SPADANO, p. 537).

Outro eventual problema nesta identificação existe em relação a produtos que possuem processos de produção patenteados, cujas etapas deste processo pertença a mais de um dono de países diferentes. Como retaliar um produto, hipoteticamente, inglês, cujo processo de produção possui patentes americanas, francesa e alemãs? Uma possível solução para estes problemas seria não escolher um tipo de propriedade intelectual onde possa gerar tal dúvida de nacionalidade, contudo isto não resolve a questão da aplicabilidade prática da retaliação nestes casos.

4.2.5 – Cálculo monetário da suspensão em TRIPS.

Calcular em termos monetários o valor da propriedade intelectual é uma tarefa árdua. Diferentes métodos de cálculo podem levar a diferentes resultados. Se a suspensão em TRIPS for calculada para o futuro, controvérsias entre os demandantes podem aparecer caso o valor da suspensão ultrapasse o prejuízo sofrido. A adoção de um método transparente poderia minimizar o problema, mas o cálculo do valor dos prejuízos sofridos nestes casos são muito complicados, pois envolvem estimativas de perdas reais e potenciais oportunidades de comércio, com vários contra-pontos, e ainda a dificuldade dos árbitros em encontrar o método mais adequado para o caso concreto. (SPADANO, p. 538)

Os possíveis métodos de cálculo podem variar dependendo da categoria de propriedade intelectual envolvida. No caso do Equador, para os direitos autorais sobre a produção sonora consideraram que cada álbum reproduzido deveria corresponder em "valor de suspensão" ao valor equivalente ao de um álbum novo a ser comercializado (segundo estimativa da Federação Internacional da Indústria Fonográfica). Quanto às indicações geográficas, o critério para determinar o valor da suspensão seria diretamente proporcional à quantidade de substituição dos produtos protegidos pelos não protegidos. (SPADANO, p. 538)

Todavia, por mais que seja esta matéria problemática, não deve ser ela por si só capaz de barrar a sua adoção pelos países demandantes. Dependendo do volume de dinheiro a ser retaliado e do interesse envolvido, tem-se a certeza de que os agentes técnicos dos Poderes Executivos encarregados de aplicar a retaliação serão criativos o suficientes para encontrar o método mais adequado e eficiente para conciliar todos os aspectos da demanda. Pode-se de dizer, portanto, que este é um problema complexo do ponto de vista técnico, mas de menor importância política.

4.3 – Considerações Finais.

Diante de todas as dificuldades apontadas acima, o Brasil terá bastante trabalho em elaborar um sistema de retaliações em propriedades intelectuais que ao mesmo tempo alcance o seu objetivo maior, que é induzir o implemento da decisão do caso do algodão, sem prejudicar os investidores e consumidores brasileiros.

A concessão de licenças ou o licenciamento público não comercial sem autorização do titular, apesar de ser uma boa medida de retaliação ainda esbarra no problema da imprevisibilidade do investidor diante da possibilidade de revogação da suspensão da concessão a qualquer momento tão-logo seja implementada a decisão da OMC ou as partes cheguem a um acordo. O art. 10 da MP 482/2010 apesar de consagrar os direitos de terceiros, não garante qualquer indenização ao investidor, que deverá recorrer ao moroso e incerto judiciário brasileiro.

Uma possível solução para se angariar investidores que já foi até mesmo sinalizada pelo governo brasileiro e divulgada pela imprensa, seria a escolha por conceder licenciamentos que estão com prazo de proteção a ponto de expirar. Até que sejam autorizadas as suas renovações seria possível conceder ao investidor um tempo razoável para recuperar o seu investimento, mesmo após a revogação da suspensão. É claro que esta garantia não seria eterna, mas escolher licenças com prazo de validade a expirar seria mais acertado do que o contrário.

Lucas Spadano, ainda, defende que na concessão de licenças em certas categorias de propriedades intelectuais, tais como direitos autorais e marcas registradas, esta incerteza pode ser menos importante, porque os investimentos iniciais são mais baixos que a concessão para produção de produtos patenteados, que demandam muito mais tempo entre o inicio e o fim do seu processo de produção. Direitos referentes a gravações e reproduções de som, por exemplo, são mais baratas e fáceis. Mesmo com relação a quebra de patentes, pode-se escolher produtos com tempo de produção menor em que há a possibilidade dos concorrentes voltarem rapidamente ao mercado. (2008, p. 540)

Contudo, a principio, as opções mais viáveis que não gerariam prejuízos reflexos, são as medidas dos incisos, V, VI, e VII do art. 6º da MP 482/2010: "V - majoração ou instituição de adicional sobre os valores devidos aos órgãos ou entidades da administração pública para efetivação de registros de direitos de propriedade intelectual, inclusive sua obtenção e manutenção;VI - bloqueio temporário de remessas de royalties ou remuneração relativa ao exercício de direitos de propriedade intelectual dos licenciados nacionais ou autorizados no território nacional; VII - aplicação de direitos de natureza comercial sobre a remuneração a que fizer jus o titular de direitos de propriedade intelectual;", destacando entre estas a suspensão das remessas de royalties. Estas medidas evitariam o problema da identificação da nacionalidade do detentor da propriedade intelectual, da incerteza dos investidores nacionais, além de facilitar o cálculo do valor da suspensão. Tratam na verdade, de medidas de natureza fiscal e cambial, que não demandam grande dificuldade técnica para sua aplicação.

Finalizadas as consultas públicas previstas pela Resolução nº 16, e o prazo previsto na Resolução nº 19 e na Resolução nº 20 [25], todas da CAMEX de 2010, o governo brasileiro provavelmente adotará uma destas três medidas, ou mais de uma. O que não se pode cogitar seria a não efetivação da retaliação cruzada em TRIPS por não se vislumbrar uma solução técnica adequada para tanto. Tal conduta poderá gerar ainda maiores prejuízos para Brasil. Confia-se que o Poder Executivo Brasileiro através de seus agentes, conseguirá de forma criativa e inovadora adequar o interesse público e os interesses privados para que autorização concedida ao Brasil, após tão custoso processo na OMC, seja aplicada em sua plenitude.

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Sobre o autor
Edgard Marcelo Rocha Torres

Procurador da Fazenda Nacional, especialista em direito Público pelo CAD/UGF, pós graduando em direito internacional pelo CEDIN/FMC

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TORRES, Edgard Marcelo Rocha. O caso dos subsídios do algodão entre Brasil e EUA.: O uso efetivo da retaliação cruzada como prova final da eficácia do sistema de solução de controvérsias da OMC: redenção ou ruína?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2521, 27 mai. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14927. Acesso em: 7 nov. 2024.

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