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Pobreza e direitos humanos.

O papel da Defensoria Pública na luta para a erradicação da pobreza

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01/06/2010 às 00:00
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4. A luta pela erradicação da pobreza e o papel da Defensoria Pública

É chegado, enfim, o momento de desenvolver algumas reflexões sobre a segunda hipótese de análise das interseções e vinculações entre os temas da pobreza, do acesso à justiça e dos direitos humanos, buscando agora um possível nexo com o papel institucional das Defensorias Públicas em nosso continente latino-americano.

Como afirmado anteriormente, a pobreza está muitas vezes diretamente associada a inúmeras modalidades de violações e privação de direitos humanos básicos. E, na luta pela erradicação da pobreza, um possível caminho a ser trilhado consiste exatamente na utilização das vias judiciais, em particular, e de mudanças na ordem jurídica, como um todo. Para tanto, não se pode prescindir da colaboração dos órgãos estatais integrantes do sistema de administração da justiça, sendo que as Defensorias Públicas podem prestar colaboração decisiva.

Parece cabível indagar, de início, acerca da viabilidade de tal empreitada: seria, realmente, possível a erradicação da pobreza? Tivemos oportunidade de discorrer acima a respeito das diversas acepções da noção de pobreza. Ante as limitações da condição humana, é difícil não admitir que, em alguma medida, a pobreza sempre existirá! É utópico pensar que a pobreza será totalmente eliminada. Esse foi, aliás, o projeto que inspirou muitos dos idealistas que pugnaram pela universalização dos regimes comunistas, cujos postulados – ao serem aplicados em sociedades reais - acabaram fazendo nascer outros problemas e distorções tão graves quanto a própria pobreza, sem conseguir erradicá-la totalmente, embora tenham sido feitos consideráveis progressos nesse sentido.

Na atual conjuntura que se revela hegemônica na comunidade internacional, o que se busca fazer é lutar, ao menos, para diminuir as desigualdades e torná-las compatíveis com a dignidade humana. O que se pretende erradicar são, pelo menos, as situações que costumam ser designadas como de "pobreza extrema" ou "pobreza absoluta". Tal como já consignado anteriormente, é preciso ter claro que o conceito de pobre é relativo: depende de circunstâncias culturais e se sujeita a modulações que variam de acordo com o estágio de desenvolvimento econômico-social de cada sociedade. A noção de quem é pobre na Finlândia difere significativamente do que se caracteriza como pobreza na Nigéria, apenas para indicar situações bem extremas.

Estabelecida tal premissa, de que nas sociedades humanas sempre se fará presente a possibilidade de estabelecimento de linha divisória entre os considerados ricos e os pobres, mas admitindo-se também que o estágio civilizatório atual da humanidade é capaz de suscitar uma conscientização acerca das possibilidades de eliminação de situações mais dramáticas de pessoas sobrevivendo em condições incompatíveis com a dignidade humana, surgem as seguintes indagações: a quem cabe a luta pela erradicação da pobreza e quais os meios devem ser empregados para alcance desse objetivo?

É pacífico o reconhecimento de que a erradicação da pobreza está ligada ao alcance de estágios mais avançados de desenvolvimento econômico e social, paralelamente à distribuição mais equitativa das riquezas. Há, também, uma dimensão moral e ética que não pode ser negligenciada, na busca de soluções para essa problemática.

Mas, focando apenas na dimensão pragmática, tradicionalmente as ações que se revelam mais aptas ao combate à pobreza consistem na implementação de direitos sociais, sobretudo relativamente à alimentação, saúde, educação e moradia. Essa é uma tarefa que cabe, primordialmente, aos que exercem funções governamentais em cada Estado, notadamente nos Poderes Legislativo e Executivo, mediante formulação e execução de políticas públicas e programas sociais compatíveis com o nível de desenvolvimento das respectivas sociedades. Tais ações variam de acordo com as concepções ideológicas, especialmente no que se refere aos meios para atingir os fins projetados. Alguns optam por políticas intervencionistas e assistencialistas de redistribuição. Outros acreditam que o fortalecimento dos fundamentos de um sistema econômico regido pelas leis de mercado seria mais eficiente. Nos países ocidentais que hoje são considerados mais desenvolvidos um passo decisivo para a superação das profundas desigualdades sociais foi a expansão do direito à educação, ainda no século XIX.

Estatísticas recentes demonstram que, felizmente, o percentual da população vivendo em estado de pobreza está se reduzindo em vários países latino-americanos. Tal fato resulta de políticas públicas voltadas para a melhoria das condições de vida que têm se revelado bem sucedidas, aliadas à estabilidade econômica, social e política alcançada nos últimos tempos, com iniciativas eficazes de distribuição de renda. Entretanto, o ritmo desses possíveis avanços ainda se mostra bastante lento.

Diante do quadro de urgência no enfrentamento de questões conjunturais de escandalosa desigualdade social e econômica que ainda se fazem presentes em nosso continente, e considerando a notória omissão de muitos dos agentes governamentais que deveriam tomar iniciativas concretas e adequadas para superação desse quadro, a busca de soluções através do acesso á justiça se revela como um possível caminho a ser necessariamente trilhado.

Nesse sentido, é importante lembrar a relevante experiência vivenciada nos Estados Unidos da América em meados da década dos anos sessenta, do século XX, em que o governo federal lançou um ambicioso programa de ações denominado de "War on Poverty" (Guerra contra a Pobreza) que incluía, dentre os diversos programas de ações destinados à lutar contra a pobreza, exatamente a implantação de serviços de assistência jurídica gratuita em questões de natureza cível para as pessoas pobres, subsidiados com recursos financeiros do tesouro nacional [14].

É certo que inúmeros problemas que afetam o cotidiano das pessoas que se encontram em estado de pobreza podem ser resolvidos – ou pelo menos minimizados – através da facilitação no acesso à justiça. Alguns exemplos podem ser indicados: a defesa da moradia em litígios envolvendo questões possessórias ou locatícias; a revisão de cláusulas contratuais abusivas prejudiciais ao consumidor endividado; a investigação de paternidade e cobrança de alimentos contra pais biológicos que se recusam a contribuir para a criação de seus filhos privando-os dos alimentos necessários a sua sobrevivência, etc. Isto sem falar nas ações judiciais que podem ser propostas contra órgãos governamentais, com o objetivo de compelir os poderes públicos a prestarem serviços e benefícios assegurados por lei, sobretudo na área da saúde e da educação. Enfim, faz-se necessário um conjunto estrategicamente planejado de ações e medidas direcionadas à promoção dos direitos de cidadania, que não se reduz às políticas de caráter assistencialista ou filantrópico [15]. E, nessa linha de ação, as Defensorias Públicas cumprem um papel indispensável. Mas cremos que não se pode esperar que esse tipo de iniciativa seja suficiente para alcançar o objetivo de erradicação da pobreza.

A judicialização dos conflitos e das relações sociais não pode, todavia, ser vista como panaceia para todos os males. É preciso evitar o "excesso de acesso" à justiça, como advertiu o ilustre Presidente da Suprema Corte de Justiça da Nação da República Argentina, Dr. Ricardo Lorenzetti, em sua palestra proferida em março de 2008, no encontro preparatório para o Congresso da AIDEF - Associação Interamericana de Defensorias Públicas, realizado na Argentina [16]. O acesso à justiça não pode se converter em frustração. Não se pode perder de vista que o Judiciário é um poder estatal que tem por missão exercer a função jurisdicional destinada à aplicação da lei no caso concreto, primordialmente na perspectiva individual, materializando os direitos e garantias fundamentais do cidadão. Embora nos tempos recentes cada vez mais o Judiciário seja chamado a dirimir conflitos de âmbito meta-individual, voltando-se para a proteção dos interesses coletivos e difusos, a dinâmica de funcionamento os órgãos jurisdicionais, muitas vezes, carece de elementos para sopesar os desdobramentos de suas decisões num cenário mais amplo. Além disso, embora não se possa negar sua dimensão de caráter político, por se tratar de atividade primordialmente de ordem técnica, a atuação jurisdicional não possui o grau de legitimidade democrática que, em tese, no regime representativo democrático, se faz presente na atuação dos demais poderes estatais. Assim, muitos estudiosos afirmam que o Judiciário não estaria plenamente capacitado para tomada de decisões que configurem a realização de escolhas e opções fundamentais no que tange às políticas públicas de âmbito coletivo. Isto porque a implementação de tais decisões, por repercutir em imposição de ônus para os cofres públicos, considerando-se que as fontes de custeio são limitadas, ante o princípio fundamental da legalidade que rege a cobrança dos tributos, podem acabar inviabilizando a execução de outros projetos democraticamente considerados prioritários pelas instâncias encarregadas de definir a gestão dos recursos públicos. Daí que a facilitação do acesso ao direito e à justiça, através do Judiciário, por intermédio das Defensorias Públicas, não pode ser visto como a via exclusiva e nem principal para se alcançar a erradicação da pobreza.

Sem perder de vista essas limitações da via do acesso à justiça na luta pela erradicação da pobreza, o fato é que no regime democrático as tensões e enfrentamentos são legítimos e podem contribuir para o aprimoramento das instituições. Por tal motivo, assim como o fazem os profissionais da advocacia privada, em prol dos interesses setorizados de grupos econômicos e sociais mais privilegiados, é plenamente legítima e necessária a atuação das Defensorias Públicas na luta pela melhoria das condições de vida dos destinatários de seus serviços, ou seja, da população menos favorecida, notadamente na luta pela efetivação de direitos sociais que contribuam para a superação das desigualdades e redução da pobreza. Em resumo, embora a judicialização efetivamente não possa ser considerada o melhor caminho para o alcance de tais objetivos, em nossos países latino-americanos isso tem sido inevitável.


5. Considerações Finais

Tendo presentes as ponderações acima indicadas, parece que a contribuição da Defensoria Pública na luta para superação da pobreza se revela mais expressiva, sobretudo, mediante a utilização de instrumentos processuais de caráter coletivo. Para maior êxito nessa empreitada, é de grande importância uma atuação estrategicamente ordenada, buscando identificar casos paradigmáticos (os chamados "leading cases" na consagrada expressão em inglês) que possam produzir impacto significativo não só na dimensão concreta mas também na perspectiva simbólica de mudança de mentalidades.

Para concluir estas nossas reflexões, queremos enfatizar, como nos ensina o eminente jurista Antônio Celso Alves Pereira [17], que o acesso à justiça constitui uma das formas mais eficientes de materializar os direitos humanos. E, no caso das populações integrantes dos estratos sociais e econômicos menos favorecidos, é indispensável contar com a assistência jurídica integral e gratuita a ser prestada pelo Estado através da Defensoria Pública, sob pena de afronta ao princípio da não discriminação, que é parte integrante essencial da ideia de direitos humanos.


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Sobre o autor
Cleber Francisco Alves

Defensor Público no Estado do Rio de Janeiro, Professor Universitário, Doutor em Direito pela PUC-RJ

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES, Cleber Francisco. Pobreza e direitos humanos.: O papel da Defensoria Pública na luta para a erradicação da pobreza. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2526, 1 jun. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14957. Acesso em: 23 dez. 2024.

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