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A lei divina e a lei humana na política e no direito medieval

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02/07/2010 às 04:00
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3. A distinção entre a Lei divina e a Lei humana

A posição de Marsílio em relação ao poderes do papa pode ser resumida nos seguintes pontos. 1) todos os apóstolos receberam os mesmos poderes. 2) Paulo não recebeu os seus poderes de Pedro e agiu como se fosse igual a ele. 3) a hierocracia contradiz a ordem de Jesus que proíbe os seus apóstolos de exercer qualquer autoridade. 4) tal autoridade poderia ser atribuída a Pedro somente por meio da eleição imperial [17].

Esses postulados do paduano estão claramente baseados em uma distinção fundamental, a distinção entre lei divina e lei humana. A lei divina vem diretamente de Deus e não tem a participação humana em sua promulgação. Mas apesar de não participar de tal elaboração, são os homens que a estabelecem no mundo. Ferir a lei de Deus resulta em punições na vida eterna, castigos espirituais. Já a lei humana é preceito estabelecido pelo conjunto dos cidadãos ou por sua melhor parte. Esta tem valor coercitivo e se for desobedecida levará a sanções e punições por parte da autoridade competente para tal. Ela vale para todos sejam fiéis ou não.

Ao subordinar a lei divina diante da lei humana, Marsílio não escrevia para defender o Império, mas para destruir o sistema de imperialismo papal vigente. Para ele "qualquer regime é melhor que a anarquia, ele preocupa-se mais com a simples lei do que com a lei boa ou a lei melhor, e com o simples governo do que com o governo melhor" [18]. Seu objetivo era limitar ao máximo as pretensões do papa à plenitude de poder, como já apontamos no início. Nenhuma lei divina tem nesse mundo o poder de coação, a menos que uma lei humana estabeleça que a lei divina deva ser cumprida. Nesse caso ainda terá prevalência a lei humana, pois não haverá coação em sua ausência.

Segundo Marsílio, a Bíblia não apenas deixa de permitir, mas proíbe o governo dos sacerdotes sobre as questões seculares. O modo de vida dos sacerdotes é totalmente incompatível com o governo, pois requer um total desprezo ao mundo e a maior humildade. O próprio Cristo excluiu a si mesmo e aos apóstolos de qualquer tipo de governo aqui na terra. Paulo proibiu aos sacerdotes interferência em questões seculares. O Novo Testamento ordena que se obedeça ao governo humano e condena a ação dos que desobedecem aos governos considerados como maus. Eis alguns argumentos dos quais o paduano lança mão para fundamentar sua teoria.

Analisemos mais detidamente o pensamento de Marsílio em algumas passagens do seu Defensor da paz, e veremos como são colocados os argumentos e justificativas para o seu posicionamento.

Marcos Costa refere que "diante do conflito entre Igreja e Império, Marsílio se coloca ao lado do Império; examina de onde vem o poder, o que é e quem o detém; defende a necessidade de uma autoridade para a conservação da paz, um único poder (não no sentido de uma única pessoa) que não contrarie as leis divinas e humanas; e que o Estado surgiu primeiro que a Igreja, logo, tem supremacia sobre ela" [19].

Na sua argumentação Marsílio usa o método que era muito comum em sua época o qual consiste de mostrar o argumento a favor da tese que se deseja refutar e em seguida passa a mostrar por que ele discorda de tal tese e levanta sua refutação. A argumentação de Marsílio contra o poder papal baseia-se em várias autoridades da bíblia e da Igreja, tais como S. Paulo, S. Agostinho, S. Ambrosio, S. João, Crisóstomo, etc.

A idéia da plenitude do poder que os papas querem exercer, se baseia, para o paduano principalmente em certas afirmações de Jesus: 1) ele disse que daria a Pedro as chaves do reino dos Céus; 2) ele disse que todo o poder foi-lhe (a ele, o Cristo) dado assim na terra como no céu; 3) Jesus mandou que Pedro apascentasse suas ovelhas; 4) ele disse que "o que ligares na terra será ligado nos céus". É com base nessas afirmações que os papas querem exercer o poder temporal. Para refutar essas teses, Marsílio se baseia nos doutores da Igreja e principalmente nas Escrituras: 1) Jesus disse que o seu reino não é desse mundo. 2) Também disse que seus discípulos deviam dar a César o que lhe pertence e a Deus o que lhe pertence. 3) Paulo afirmou em varias passagens que os servos de Cristo devem prestar obediência às autoridades seculares porque essas são também instituídas por Deus.

Esses são os argumentos centrais pelos quais Marsílio mostra que os papas não podem exercer o poder temporal, bem como não podem dominar sobre os bens terrenos e que: "não está incluso no ofício do presbítero ou bispo proferir julgamento coercivos a respeito dos atos contenciosos humanos ou temporais, antes, pelo contrario, quando eles se envolvem com tais afazeres, invadem os limites dos outros, quer dizer, interferem na competência de outro e metem a foice em seara alheia". [20]


4. Conclusão

Na terceira parte do Defensor da paz, encontra-se uma série de conclusões a que chegou Marsílio. A disposição das idéias faz mesmo lembrar uma espécie de Código de leis. E somos tentados a imaginar que esta era mesmo a idéia do jurista paduano, criar um novo modelo político a ser adotado por todos os reinos e cidades.

No "artigo" primeiro, o paduano diz que apenas a Bíblia e a interpretação que dela é feita pelo Concílio geral devem ser consideradas como verdadeiras, e que acreditar nisso é uma condição para a salvação [21]. E ele argumenta que de nada adiantaria se Cristo nos tivesse dado sua lei sem uma interpretação; e visto que o legislador humano é o único que não tem superior na terra, apenas ele pode dar tal interpretação. Por essa razão cabe somente ao Concílio geral resolver as controvérsias da lei divina. Mostra-se assim mais uma vez a aura espiritual na qual Marsílio envolve o Concílio Geral.

No artigo terceiro é exposto que a lei divina não age de modo coercitivo, não pressiona o homem para que cumpra os seus preceitos. "A lei evangélica não ordena que ninguém, pressionado por castigos ou suplício temporal, observe os preceitos da lei divina. Só os preceitos da lei evangélica e os que dela necessariamente decorrem e tudo o mais que, de acordo com a reta razão, convém fazer e evitar, devem ser observados com o fito de se alcançar a salvação eterna". [22]

E por esse motivo os papas não podem exercer o poder. E ele argumenta que quando Jesus falou aos discípulos que, por amor da verdade eles seriam conduzidos à presença dos reis, não estava o Cristo falando que eles iam governar; pois o próprio Jesus não governou e ainda disse a seus discípulos que estes de modo nenhum podem ser maiores que o seu mestre. Portanto, se Cristo não governou, os apóstolos também não podem governar.

No artigo sexto se faz referência ao legislador humano. Este não pode ser uma minoria, mas deve necessariamente ser a totalidade dos cidadãos ou a sua melhor parte. O paduano argumenta que para a obtenção do bem comum as leis devem estar de acordo com a vontade de todos ou devem servir para que todos sejam beneficiados. Visto como é dificílimo que todas as pessoas concordem sobre algo, então é preciso que o Concílio seja composto pelas pessoas mais qualificadas da sociedade, pois os maus não podem fazer leis boas para o povo. Por isso, não havendo concordância em determinado ponto, é prudente que o acordo seja feito entre os melhores, que não podem ser uma minoria, pois toda autoridade exercida por um só ou a minoria esconde interesses pessoais que não correspondem aos anseios da justiça.

No artigo sétimo: os decretos dos pontífices romanos e de quaisquer outros pontífices estatuídos sem a permissão do legislador humano não obrigam a ninguém em observá-los sob a pena de sofrer um castigo ou punição temporal [23]. Marsílio argumenta que, "embora textos desse tipo, e quaisquer outros escritos e palavras semelhantes, possam conter muitos conselhos e ensinamentos úteis, tanto para a vida presente como para a vida futura; contudo, na medida em que são apenas frutos do labor do bispo de Roma, ou dele com o seu colégio de clérigos, sem ter a aprovação do legislador humano ou do príncipe, não obrigam ninguém a observá-los, sob pena de incorrerem em uma falta"; porque estabelecendo esses costumes tais pessoas se comportam a semelhança dos escribas e fariseus, prestando a Deus um culto vão [24].

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No artigo oito ele coloca que a eleição de todo o governante ou a designação de alguém para outro ofício a ser efetuada por seu intermédio, especialmente para quem detém a força coercitiva, dependem unicamente da vontade do legislador humano. E na cidade ou reino deve haver apenas um governo, supremo, que coloque cada coisa em seu devido lugar, em vista da necessária organização que o povo precisa para poder gozar da paz almejada por todos.

No artigo doze está escrito: "compete somente à autoridade do governante cristão, de acordo com as leis e os costumes aprovados, decidir a respeito do número, de sua qualidade, bem como acerca de todos os assuntos civis" [25]. Este postulado deixa completamente vedada qualquer aspiração que o papado tenha com relação a assumir o poder temporal. Não é da competência do papa realizar o que é dito no artigo acima.

Segundo o paduano Deus não reservou os seus sacerdotes para tal serviço. Mas para uma função que, como já apontamos anteriormente está em conexão com os ideais evangélicos de culto, de adoração, de arrependimento necessário para que o homem possa alcançar a vida eterna. Os sacerdotes estão no mundo com essa tarefa: ensinar as pessoas o caminho dos céus. Não podem governar.

Do que acima foi dito resulta o artigo treze que afirma que nenhum governante, nem uma corporação particular ou uma pessoa podem ter a plenitude do poder sobre a cidade. E resulta também disso que nenhum papa pode exercer um poder ou uma jurisdição coercitiva sobre qualquer pessoa, seja clérigo ou leigo, e ainda que seja um herege. "Somente o governante, através da autoridade do legislador humano, possui jurisdição coercitiva, real e pessoal, sobre cada pessoa, e sobre todas as corporações de clérigos e leigos".

O paduano coloca ainda ser ilícito a qualquer papa ou à sua corporação excomungar alguém sem a autorização do legislador humano. Todos os bispos ou papas possuem igual autoridade dada imediatamente por Cristo. E não se encontra qualquer justificativa na Bíblia para se poder sustentar a afirmação de que haja entre eles poderes delegados que os tornem uns superiores aos outros como querem os idealizadores da teoria chamada hierocrática.

Marsílio afirma que por força da autoridade de Deus e com a autorização do legislador humano os demais bispos podem reunidos excomungar o papa. Essa é a marca de um dos grandes passos que deu o paduano contra a pretensão à plenitude do poder por parte dos papas. Esses postulados compreendem os artigos dezesseis a dezoito. No artigo vinte e sete o paduano escreve sobre a necessária autoridade que tem o príncipe sobre os bens da Igreja. E afirma que "desde que sejam atendidas as necessidades materiais dos padres e do que é imprescindível para a celebração do culto, o legislador pode licitamente utilizar total ou parcialmente os bens eclesiásticos para os interesses públicos" [26].

Sobre a necessária pobreza evangélica o paduano afirma que "quem estiver obrigado a observar a perfeição evangélica relativa à pobreza suprema não pode conservar em seu poder nenhum bem imóvel sem ter a firme intenção de vendê-lo, para entregar o dinheiro obtido aos pobres" [27]. Percebesse que esses postulados vão de encontro às riquezas da Igreja. Marsílio argumenta que assim como Cristo não possuiu bens no mundo também a Igreja não pode possuir bens materiais. Assim como Jesus foi pobre, a Igreja deve renunciar os bens terrenos. E não fazendo isso incorre em grave erro.

Do exposto, podemos assim resumir as idéias do Paduano. A Bíblia e a interpretação que dela é feita pelo Concílio geral devem ser consideradas como verdadeiras; cabe somente ao Concílio geral resolver as controvérsias da lei divina; a lei divina não age e não pode agir de modo coercitivo; e por esse motivo os papas não podem exercer o poder; o Concílio geral deve necessariamente ser a totalidade dos cidadãos ou a sua melhor parte; os decretos dos pontífices romanos estatuídos sem a permissão do legislador humano não obrigam a ninguém; fica vedada qualquer aspiração que o papado tenha com relação a assumir o poder temporal.

E ainda, o papa não pode excomungar alguém sem a autorização do legislador humano; todos os bispos ou papas possuem igual autoridade dada imediatamente por Cristo, não havendo hierarquia na Igreja; o príncipe pode usar os bens que estão em poder da Igreja, pois eles não são de direito Dela, mas da sociedade; e devem os clérigos ser pobres como Cristo o foi. Todas as decisões que dizem respeito aos clérigos devem ser levadas em primeiro lugar ao Concílio geral, que tem o poder para solucionar tais questões.


Referências:

CHEVALLIER, Jean-Jacques. História do pensamento político. V. I. trad. Roberto C. Lacerda. Rio de Janeiro: EDITORA GUANABARA, 1985.

COSTA, Marcos R. N.; PATRIOTA, Raimundo A. M. Origens medievais do Estado moderno: contribuições da filosofia política medieval para construção do conceito de soberania popular na modernidade. Recife: PRINTER/INSAF, 2004.

GILSON, Etienne. A filosofia na Idade Media. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

PÁDUA, Marsílio de. O defensor da paz. Trad. Antonio C. R. Souza. Petrópolis: Vozes, 1995.

STRAUSS, L.; CROPSEY, J. (org.). Historia de la filosofia política. Trad. Letícia G.; Diana L.; Juan J. México: Fondo de cultura econômica, 2000.


Notas

  1. COSTA, Marcos R. N.; PATRIOTA, Raimundo A. M. Origens medievais do Estado moderno: contribuições da filosofia política medieval para construção do conceito de soberania popular na modernidade. Recife: PRINTER/INSAF, 2004 p 22.
  2. Ibid. p.30.
  3. GILSON, Etienne. A filosofia na Idade Media. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 308
  4. . GILSON, Etienne. A filosofia na Idade Media. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 713.
  5. Ibid. 198.
  6. Ibid. p. 710.
  7. COSTA, Marcos R. N.; PATRIOTA, Raimundo A. M. Origens medievais do Estado moderno: contribuições da filosofia política medieval para construção do conceito de soberania popular na modernidade. Recife: PRINTER/INSAF, 2004 p 50.
  8. Ibid. p.50.
  9. Ibid p. 70.
  10. Ibid. p. 51.
  11. COSTA, Marcos R. N.; PATRIOTA, Raimundo A. M. Origens medievais do Estado moderno: contribuições da filosofia política medieval para construção do conceito de soberania popular na modernidade. Recife: PRINTER/INSAF, 2004 p. 73.
  12. CHEVALLIER, Jean-Jacques. História do pensamento político. V. I. trad. Roberto C. Lacerda. Rio de Janeiro: EDITORA GUANABARA, 1985. p. 244.
  13. PÁDUA, Marsílio de. O defensor da paz. Trad. Antonio C. R. Souza. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 158.
  14. CHEVALLIER, Jean-Jacques. História do pensamento político. V. I. trad. Roberto C. Lacerda. Rio de Janeiro: EDITORA GUANABARA, 1985. p. 246.
  15. COSTA, Marcos R. N.; PATRIOTA, Raimundo A. M. Origens medievais do Estado moderno: contribuições da filosofia política medieval para construção do conceito de soberania popular na modernidade. Recife: PRINTER/INSAF, 2004 p.78.
  16. STRAUSS, L.; CROPSEY, J. (org.). Historia de la filosofia política. Trad. Letícia G.; Diana L.; Juan J. México: Fondo de cultura econômica, 2000. p. 268.
  17. SOUZA, Jose Antonio C. R. de. A argumentação política de Guilherme de Ockham a favor do primado de Pedro contrária a tese de Marsílio de Padua in:COSTA, Marcos R. N.; PATRIOTA, Raimundo A. M. Origens medievais do Estado moderno: contribuições da filosofia política medieval para construção do conceito de soberania popular na modernidade. Recife: PRINTER/INSAF, 2004. p. 85.
  18. STRAUSS, L.; CROPSEY, J. (org.). Historia de la filosofia política. Trad. Letícia G.; Diana L.; Juan J. México: Fondo de cultura econômica, 2000. p.271.
  19. COSTA, Marcos R. N.; PATRIOTA, Raimundo A. M. Origens medievais do Estado moderno: contribuições da filosofia política medieval para construção do conceito de soberania popular na modernidade. Recife: PRINTER/INSAF, 2004 p.101.
  20. PÁDUA, Marsílio de. O defensor da paz. Trad. Antonio C. R. Souza. Petrópolis: Vozes, 1995. p.253.
  21. Ibidem. p.691.
  22. Ibidem. p. 692.
  23. PÁDUA, Marsílio de. O defensor da paz. Trad. Antonio C. R. Souza. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 692.
  24. Ibidem.p. 658.
  25. . Ibidem p.693.
  26. Ibidem p. 696
  27. Ibidem.p 698.
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Sobre o autor
Jair Lima dos Santos

Acadêmico do curso de Direito da UNICAP - Universidade Católica de Pernambuco; Bolsista do PIBIC-CNPq; Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia Antiga e Medieval -GEPFAM/CNPq

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Jair Lima. A lei divina e a lei humana na política e no direito medieval. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2557, 2 jul. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/15116. Acesso em: 27 abr. 2024.

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