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Harmonização legislativa no Mercosul

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01/07/1999 às 00:00
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VI - A BARREIRA CONSTITUCIONAL

Toda e qualquer integração, para se efetivar de maneira sólida e segura, deve partir de um ponto essencial, por ser este ponto o elo de ligação com o mundo jurídico exterior, o direito interno. É de suma importância o tratamento que o modelo institucional de cada Estado dispensa em relação aos tratados internacionais assumidos por este, quer na ordem externa (relação com os outros Estados), quer na ordem interna, no contato das normas vindas destes com seus cidadãos e pessoas jurídicas nacionais.

Pela sua condição de soberano, o Estado enquanto sujeito de direito internacional, pode contrair direitos e obrigações ficando vinculados, ao menos formalmente, a garantir sua validade e eficácia. A soberania do Estado no entanto tem seus limites, quer seja no próprio tratado ratificado por este, quer seja pelas normas internacionais gerais, o jus cogens, regulado pela Convenção de Viena e seu artigo 53 enquanto uma norma aceita e reconhecida por todos os Estados. A condição soberana do Estado não pode ser então invocada contra legem.

Ao serem assinados e ratificados o Tratado de Assunção e o Protocolo de Ouro Preto pelos países membros, esses foram inseridos em seus direitos internos (9), "a partir da ratificação e consequente inserção dos tratados nas ordens jurídicas internas, resta assegurar a coerência do ordenamento jurídico e a compatibilidade das obrigações resultantes" dos tratados e protocolos, "com os direitos nacionais, especialmente quanto as normas de natureza constitucional." (10) Deveríamos esperar tal coerência, o problema é que esta nem sempre ocorre, e isto não pode acontecer, a dimensão constitucional é um dado fundamental para a integração.

Esta divergência entre normas constitucionais de um lado e normas do Mercosul de outro deve ser resolvida de qualquer modo, quer seja por uma revisão constitucional, que ao meu ver seria o mais coerente, mediante renegociação das obrigações resultantes do Tratado ou com a denúncia destes caso não sejam eliminadas tais distorções até a adoção de uma estrutura mais coesa, este último, num caso extremo.

Para termos uma cosmovisão das constituições abordarei a partir de agora cada uma isoladamente.

6.1 A Constituição Argentina.

O Artigo 67 de Carta Magna argentina havia sido modificado na reforma de 1860 e continha em relação ao tema:

"Capítulo Cuarto
Atribuciones del Congreso

Artículo 67 - Corresponde al Congreso: (...)

19. Aprobar o desechar los tratados concluidos con las demás naciones, y los concordatos con la Silla Apostolica; y arreglar el ejercicio del patronato en toda la Nación"

A revisão feita em 1994 na Constituição argentina trouxe boas e interessantes perspectivas em matéria de uma integração supranacional. O dispositivo citado foi substituído pelo artigo 75, em que se incluíram os seguintes incisos:

"Artículo 75 - Corresponde al Congreso: (...)

22. Aprobar o desechar tratados concluídos con las demás naciones y con las organizaciones internacionales y con los concordatos con la Santa Sede. Los tratados y concordatos tienen jerarquía superior a las leyes. (...)".

"24. Aprobar tratados de integración que deleguen competencias y jurisdicción a organizaciones supraestatales en condiciones de reciprocidad e igualdad, y que respeten el orden democrático y los derechos humanos. Las normas dictadas en su consecuensia tienen jerarquía superior a las leyes" [sem grifo no original].

A preocupação dos legisladores argentinos é muito clara em possibilitar que a regra comunitária entre no ordenamento nacional; primeiro porque se fala em uma supraestatalidad, claramente se referindo a um direito supranacional; segundo porque notamos uma nítida hierarquia de regras deixando superiores as que tratarem de uma integração. O artigo 24 aprova tratados que deleguem competências e jurisdição a organizações supraestatais, em condições de reciprocidade e igualdade, respeitando os direitos humanos. Ao lado da Constituição paraguaia esta é a mais avançada no Mercosul.

6.2 A Constituição Paraguaia

Promulgada em 20 de junho de 1992 esta é a única Constituição do Mercosul que admite literalmente uma ordem jurídica supranacional, sendo também a que dedica o maior número de artigos às relações internacionais, portanto citaremos apenas os de maior relevância:

"Artículo 137.
De la supremacia de la Constitucion.

La ley suprema de la República es la Constitución. Esta, los tratados, convenios y acuerdos internacionales aprobados e ratificados, las leyes dictadas por el Congreso y otras disposiciones jurídicas de inferior jerarquía, sancionadas en consecuencia, integran el derecho positivo nacional en el orden de prelación enunciado."

"Artículo 154.
Del orden jurídico supranacional.

La republica del Paraguay, en condiciones de igualdad con otros Estados, admite un orden jurídico supranacional que garantice la vigencia de los derechos humanos, de la paz, de la justicia, de la cooperación y del desarrolo, en lo político, económico, social y cultural."

A posição hierárquica dos tratados nesta Constituição fica entre esta e as leis ordinárias. Não há diferença positivada também entre os acordos firmados com os países latino-americanos e demais países.

6.3 A Constituição Uruguaia

Assim como a Constituição brasileira, a paraguaia não tem nenhuma menção à supranacionalidade, notamos exatamente o contrário de acordo com o disposto no seguinte artigo:

"Seccion I (...)

Capítulo II

Artículo 4. La soberanía en toda su plenitud existe radicalmente en la Nación, a la que compete el derecho exclusivo de estabelecer su leyes, del modo que más adelante se expresará"

Vemos que esta impõe exclusividade nacional para estabelecer suas leis vigentes. Em outro dispositivo define-se a integração latina como algo que deve ser procurado, bem longe isto de um Mercado Comum, por exemplo.

6.4 A Constituição Brasileira

Ao contrário da maioria das Constituições mundiais, a brasileira constantemente deixa de lado a regulamentação entre o direito interno e o direito internacional. É este ponto que vários renomados autores consideram a grande omissão tratando-se de questões internacionais. O artigo 4, no seu parágrafo único deixa certo que existe a permissão constitucional para uma negociação visando uma integração latino-americana; contudo o texto constitucional não esclarece de maneira expressa se esta pode se dar através de um organismo supranacional, ou se deve-se respeitar o conceito clássico de soberania. Pedro Dallari diz que "não se cogita constitucionalmente da transferência de soberania para organizações supranacionais", logo não podemos falar em primazia do direito comunitário. Queremos sucesso no Mercosul? Então necessitamos urgentemente de uma revisão constitucional, e para isto basta vontade política. Para esta análise deixo em anexo uma tabela com a opinião das elites dos nossos vizinhos e nossa ao fim deste trabalho.


CONCLUSÃO

Ainda estamos longe de alcançar os objetivos aos quais propuseram-se os Estados-membro quando do começo do Mercosul. Uma integração efetiva e realmente vantajosa só irá ocorrer se os integrantes deste mercado transferirem poderes a órgãos supraestatais que dêem suporte a este desafio.

Após o presente trabalho, podemos notar então que, principalmente no caso brasileiro e uruguaio, faltam princípios que norteiem esta integração, quanto aos meios e direções que este deve assumir. A necessidade de uma revisão constitucional é latente. Para que possamos aplicar os mesmos métodos de integração que hoje são aplicáveis na Comunidade Européia com tanto sucesso, devemos primeiramente adaptar nossas leis internas a essa nova realidade que é a integração, dando de certa forma mais valor aos compromissos assumidos internacionalmente.

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NOTAS

(1) Juan Algotar Plá. O Mercosul e a Comunidade Européia.(Poa, UFRGS, p.64)

(2) Proc. N°9/70, Grad c. Finanzamt Traunstein, CJTCE (1970), pp. 825 a 837.

(3) Juan Algotar Pla. Idem. p.72

(4) P.S.F.R.Mathijsen, Introdução ao Direito Comunitário. (Coimbra, Coimbra Ed., p.168)

(5) Paulo Borba Cassela. Comunidade Européia e seu Ordenamento Jurídico. (São Paulo, LRT Editora, p. 138)

(6) De la conception du rapprochement des législations dans la Communauté économique européenne, Rev. Trim. Droit europ., 1967-1, p. 258.

(7) Artigo 38 Os Estados Partes comprometem-se a adotar todas as medidas necessárias para assegurar, em seus respectivos territórios, o cumprimento das normas emanadas dos órgãos do Mercosul previstos no artigo 2 deste Protocolo. Parágrafo único - Os Estados Partes informarão à Secretaria Administrativa do Mercosul as medidas adotadas para esse fim.

Artigo 42. As normas emanadas dos órgãos do Mercosul previstos no Artigo 2 deste Protocolo terão caráter obrigatório e deverão, quando necessário, ser incorporadas aos ordenamentos jurídicos nacionais mediante os procedimentos previstos pela legislação de cada país.

(8) Werter R. Faria in Mercosul: seus efeitos jurídicos, econômicos e políticos nos estados membros. (Porto Alegre, Livraria do Advogado, p.88)

(9) Tratado de Assunção, de 26 de março de 1991, assinado e ratificado pelos Estados Partes, promulgados pelas seguintes leis internas: na Argentina, Lei n. 23981 de 4 de setembro de 1991; no Brasil, Dec. Leg. n. 197 de 25 de setembro de 1991, promulgado pelo Dec. n. 350 de 21 de novembro de 1991; no Paraguai sem informação disponível; no Uruguai, Lei n. 16196, de 22 de julho de 1991.

(10) Paulo Borba Cassela. Mercosul: exigências e perspectivas. (São Paulo, LRT, p.52)


BIBLIOGRAFIA

BASSO, Maristela. Mercosul: seus efeitos jurídicos, econômicos e políticos nos estados-membros Porto Alegre, Livraria do Advogado Editora, 1995.

BASSO, Maristela. A Estrutura institucional definitiva do Mercosul Revista de Estudos Jurídicos. v. 27, n. 69, 1994. P.53 - 61

BRUM, Argemiro J. Integração do Conesul: Mercosul. 2. ed. Ijuí: Unijuí, 1995.

CASELLA, Paulo Barbosa. Mercosul: exigências e perspectiva. Integração, e consolidação de espaço econômico (1995-2001-2006) São Paulo: LRt Editora, 1996.

CASSELA, Paulo Barbosa. Comunidade Européia e seu Ordenamento Jurídico São Paulo, LRt Editora, 1994.

VENTURA, Deyse de Freitas L. A Ordem jurídica do Mercosul Porto Alegre: LTr, 1996.

PLÁ, Juan Algorta. (org). O Mercosul e a comunidade Européia uma abordagem comparativa. Porto Alegre: Editora Universitária.

LIPOVETZKY, Jaime César. Mercosul: estratégia para a integração. São Paulo: LTr, 1994.

MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público . 6. Ed Rio de Janeiro: Ed. Freita Bastos, 1979.

P.S.F.R. Mathijsen. Introdução ao Direito Comunitário 6. Ed. Coimbra, Coimbra Editora LTDA.

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Sobre o autor
Alexandre G. Krammes

acadêmico de Direito na Universidade Federal de Santa Catarina

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KRAMMES, Alexandre G.. Harmonização legislativa no Mercosul. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 33, 1 jul. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1625. Acesso em: 26 abr. 2024.

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