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A harmonização das legislações tributárias no Mercosul

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03/03/1997 às 00:00
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4 - HARMONIZAÇÃO DOS IMPOSTOS DIRETOS

O tratado constitutivo da Comunidade Econômica Européia dispôs de forma exaustiva sobre os impostos indiretos, não tratando senão vaga e implicitamente da necessidade de harmonização da imposição sobre a renda e o patrimônio (cf. art. 52, que institui a liberdade de estabelecimento de empresas; art. 58, que apregoa o tratamento não-discriminatório em relação à participação no capital de companhias e empresas; art. 67, que prevê a remoção das restrições ao livre movimento de capital; art. 100, que determina a harmonização das legislações que afetem direta ou indiretamente o funcionamento do mercado comum; art. 101, que faz a mesma previsão em relação àquelas que criem distorções nas condições de livre concorrência; e art. 220, que trata da dupla tributação internacional (29) ).

A coordenação dos tributos diretos é, como se disse, providência que apenas interessa no âmbito de um mercado comum ou de forma mais sofisticada de integração. A esta altura, cabe indagar do grau de integração pretendido pelo tratado constitutivo do Mercosul (tratado de Assunção, de 26.03.91). A resposta única a que se pode chegar é: união aduaneira. Nada mais do que isso está previsto no tratado, que não refere nenhum instrumento de garantia da livre circulação de fatores de produção (30).

No domínio dos fatos, o que se pode perceber é que a união aduaneira até agora atingida (a alíquota externa comum foi adotada em 01.01.95) é um tanto imperfeita, uma vez que:

a) a alíquota zero intra-regional sujeita-se a uma série de exceções, que contemplam os chamados produtos sensíveis;

b) as aduanas entre os países-membros permanecem existindo;

c) subsistem barreiras não-alfandegárias ao comércio interno; e

d) a tarifa externa comum apenas cobre 85% das importações do bloco, sendo certo que, até o ano 2001, cada país pode opor-lhe 300 exceções; para os produtos de informática, o direito de exceção estende-se até o ano 2006 (31).

Considerando que o sucesso nesta fase de integração conduzirá inexoravelmente ao aperfeiçoamento de um mercado comum propriamente dito, apropositam-se desde já algumas rápidas reflexões sobre a tributação direta na região.

Em matéria de impostos sobre a renda e o patrimônio, o panorama regional é multifacetado. Basta considerar que apenas a Argentina e o Uruguai mantêm impostos gerais sobre o patrimônio líquido de pessoas físicas e jurídicas, e que apenas a Argentina e o Brasil tributam a renda da pessoa física (32) e mantêm tratado bilateral para evitar a dupla tributação internacional (33).

A dupla tributação internacional decorre da aplicação, pelos diversos países, de critérios distintos de submissão ao imposto de renda que instituem. Segundo o princípio da fonte, a competência para tributar os rendimentos pertence ao país em cujo território se situa a fonte de que promanam. Pelo princípio da renda mundial, cabe ao Estado de residência de uma pessoa o poder de tributar todas as rendas por ela recebidas, independentemente da localização geográfica de suas fontes.

O imposto de renda das pessoas jurídicas, em todos os países do Mercosul, obedece ao princípio da territorialidade da fonte. Quanto às pessoas físicas, o IR submete-se, na Argentina e, relativamente aos não-residentes, também no Brasil, ao mesmo critério. No que tange aos residentes, o IRPF brasileiro sujeita-se ao princípio da renda mundial, que se fundamenta nos seguintes argumentos:

a) igualdade e progressividade - o país que tratasse diferentemente os seus residentes que obtêm rendimentos apenas em seu território, tributando-os, e aqueles que os obtêm no exterior, exonerando-os, comprometeria definitivamente a progressividade e a igualdade na tributação;

b) dupla proteção - o país de residência, tanto quanto o da fonte, que a protege, faz gastos públicos em favor do recebedor, garantindo o seu bem-estar e a sua segurança;

c) anulação de vantagens alocativas de investimentos - a não-tributação de rendimentos auferidos no exterior representaria incentivo à fuga de capitais em direção a países que concedem incentivos aos investimentos estrangeiros, com prejuízo econômicos e fiscais ao país exportador (34).

Em que pese o alerta sobre a necessidade de desdramatizar as análises da urgência da harmonização da imposição direta, que chama a atenção para diversos outros fatores determinantes na localização e no deslocamento dos investimentos de capital (taxas de juros e de câmbio, investimentos em infra-estrutura), os quais permanecem sob o controle dos Estados nacionais mesmo em presença da coordenação das políticas fiscais (35), não se deve subestimar, em uma fase posterior e mais avançada de integração no Mercosul, a necessidade de tal harmonização, sobretudo como forma de eliminar a competição entre os Estados-membros pelos investimentos intra e extra-regionais.


5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo deste trabalho é realçar, nos estreitos limites do Direito Tributário, seguramente apenas um dos vários aspectos a ser considerados, o pouco que ainda se fez e o longo caminho que se precisa ainda percorrer na árdua e alentadora tarefa da integração latino-americana.

Neste sentido, ressalte-se a influência positiva que o êxito da incipiente integração do Mercosul tem exercido sobre as relações internacionais de âmbito regional. Diversos países da ALADI interessam-se hoje em negociar com o bloco a recuperação das antigas e esquecidas preferências alfandegárias de que gozavam perante cada um de seus membros (36). Demonstrativos desta tendência são os recentes acordos 4+1, para a constituição de zonas de livre comércio, celebrados com o Chile e a Bolívia.

No âmbito mundial, expressiva é a celebração, na cidade de Madri, do Acordo-Marco Inter-Regional de Cooperação entre a União Européia e seus Estados-membros e o Mercosul e seus Estados-membros, de 15.12.95, prenúncio de uma frutuosa cooperação política, científico-tecnológica e cultural, bem como de uma ampla abertura comercial entre os dois blocos, a ser efetivada depois do ano 2001 (37).

Tudo que se espera é que a integração, forjada através da tributação e de tantos outros meios, seja uma forma de promoção do desenvolvimento das atividades econômicas, da estabilidade econômica e política do nosso sub-continente, que tanto sofrimento já testemunhou, e sobretudo de resgate da enorme dívida social de que é credor o povo latino-americano desde os tempos da colonização.



NOTAS

(1) Cf. LEÓN E. BIEBER, Paralelos e Diferenças na Conformação de Blocos de Integração Econômica, in O Mercosul e a Comunidade Européia: Uma Abordagem Comparativa, Diálogos Brasil-Alemanha nas Ciências Humanas, Porto Alegre, Editora da UFRGS, 1ª ed. 1994, pp. 24 a 36, esp. pp. 24-25

(2) Cf. ISABELLA SOARES MICALI, Le Marché Commun du Cône Sud MERCOSUR et les autres mécanismes d’intégration et de coopération sur le continent américiain - un panorama comparatif, in MERCOSUL: Seus Efeitos Jurídicos, Econômicos e Políticos nos Estados-Membros, Organização de Maristela Basso, Porto Alegre, Livraria do Advogado Editora, 1ª ed., 1995, pp. 401-444

(3) Cf. KLAUS BODEMER, Los Cambios en el Sistema Internacional y sus Efectos sobre América Latina, in O Mercosul e a Comunidade Européia, cit., pp. 37-51

(4) Cf. MARCOS SUPERVIELLE, Ciencias Sociales e Integración, in O Mercosul e a Comunidade Européia, cit., pp. 58-61

(5) Cf. LEONELLO GABRICI, A Integração Européia, in O Mercosul e a Comunidade Européia, cit., pp. 14 a 23, esp. pág. 15.

(6) Cf. MICHAEL R. WILL, Mercado Comum e Harmonização do Direito Privado, in O Mercosul e a Comunidade Européia, cit., pp. 64-79, esp. pp. 67-68, e JORGE LAPOVA, Organización Institucional y Derecho Comunitario en el Mercosur, idem, pp. 80-88, esp. pág. 86.

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(7) Cf. JORGE PÉREZ OTERMIN, Princípios Esenciales de un Ordenamiento Jurídico Comunitario, in Boletim de Integração Latino-Americana, Ministério das Relações Exteriores, Secretaria-Geral de Política Exterior, Departamento de Integração Latino-Americana, Núcleo de Assessoramento Técnico, vol. 8, pp. 01-07, e JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional, Coimbra, Livraria Almedina, 1992, 5ª ed., 2ª reimpressão, pp. 913-917.

(8) Cf. LEÓN E. BIEBER, op. cit., pág. 26.

(9) Cf. GERT ROSENTHAL, El Regionalismo Abierto de la CEPAL, in Boletim de Integração Latino-Americana, cit., vol. 14, pp. 26-32.

(10) Cf. LUÍS OLAVO BAPTISTA, O Impacto do Mercosul sobre o Sistema Legislativo Brasileiro, in Boletim de Integração Latino-Americana, cit., vol. 5, pp. 05 a 08, esp. pág. 05.

(11) Cf. HUGO N. GONZÁLEZ CANO, Analisis de los Sistemas Tributários en el Mercosur, Informe presentado en el seminario de la Associazione Italiana per il Diritto Tributario Latino-Americano, Génova, 29 junio al 6 julio 1992, pág. 19.

(12) Cf. HUGO N. GONZÁLEZ CANO, op. cit., pág. 15.

(13) Cf. GERHARD LAULE, Basic Problems of Harmonizing Tax Law in the European Communities, Vorträge, Reden und Berichte aus dem Europa-Institut der Universität des Saarlandes, nº 276 (1992), pág. 02; JUAN MARTÍNEZ ARRIETA DE PISÓN, La Imposición Directa en el Marco de la Comunidad Europea: el Impuesto sobre la Renta de las Personas Físicas, texto apresentado em Seminário de Direito Tributário realizado em 1993 na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, pág. 04; e JEAN-JACQUES PHILIPE, La TVA à l’Heure Européenne, Paris, Litec, 1993, pp. 47-48.

(14) Cf. SACHA CALMON NAVARRO COÊLHO, Validade e Extensão dos Tratados Internacionais em Matéria Tributária, Perante a Constituição Federal do Brasil de 1988, in Imposto de Renda: Estudos, São Paulo, ed. Resenha Tributária, vol. 31, novembro/92, pp. 32-62.

(15) Cf. as atualizações ainda inéditas de MISABEL DE ABREU MACHADO DERZI às clássicas Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar, de ALIOMAR BALEEIRO.

(16) Proposta de Emenda à Constituição nº 175, de 1995.

(17) Cf. Voto do relator da Comissão Especial da Câmara dos Deputados sobre o projeto de reforma constitucional nº 175/95, pág. 03.

(18) Cf. GUSTAVO BECKER, La Nueva Constitución Paraguaya en la Perspectiva de la Integración Latinoamericana, in O Mercosul e a Comunidade Européia, cit., pp. 89-99, esp. pp. 90-91.

(19) Cf. JUAN MARTÍNEZ ARRIETA DE PISÓN, Los Impuestos sobre la Circulación y el Consumo em la Comunidad Europea. Armonización Legislativa y Competencia de los Estados Miembros, texto apresentado em Seminário de Direito Tributário realizado em 1993 na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, pág. 02, nota 02.

(20) Indirect Taxation in Developing Economies, apud JUAN C. GÓMEZ SABAINI, Coordinación de la Imposición General a Los Consumos entre Nación y Provincias (Argentina), Serie Política Fiscal, nº 47, Santiago de Chile, CEPAL - GTZ, pp. 24-26.

(22) O regime transitório do IVA foi regulado pela Diretiva nº 91/680, de 16 de dezembro de 1991; o dos excises, pela Diretiva nº 12/92, de 25.02.92 (Cf. JEAN-JACQUES PHILIPE, op. cit., pág. 67).

(23) Cf. JUAN C. GÓMEZ SABAINI, op. cit., pp. 40-41; JEAN-JACQUES PHILIPE, op. cit., pp. 69-73.

(24) Cf. JEAN-JACQUES PHILIPE, op. cit., pág. 50.

(25) Cf. JUAN C. GÓMEZ SABAINI, op. cit., pp. 41-42; JEAN-JACQUES PHILIPE, op. cit., pág. 55.

(26) Cf. HUGO N. GONZÁLEZ CANO, Experiencias Americanas de Armonización Tributária en Procesos de Integración Economica, Buenos Aires, 21 de febrero de 1994.

(27) Cf. SACHA CALMON NAVARRO COÊLHO, Reforma Tributária - o Dedo Paulista, in jornal Estado de Minas.

(28) Cf. Voto do relator da Comissão Especial da Câmara dos Deputados sobre o projeto de reforma constitucional nº 175/95, pág. 09.

(29) Cf. MISABEL DE ABREU MACHADO DERZI, atualizações às Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar, de ALIOMAR BALEEIRO, cit.

(30) Cf. GERHARD LAULE, Basic Problems of Harmonizing Tax Law in the European Communities, cit., pág. 08.

(31) Cf. ISABELLA SOARES MICALI, Le Marché Commun du Cône Sud MERCOSUR et les autres mécanismes d’intégration et de coopération sur le continent américiain - un panorama comparatif, cit., pág. 430.

(32) Cf. MARCELO MONTENEGRO, Mercosul - União Européia: Um inédito Acordo Inter-Regional, in Revista do Mercosul, Revista Bilíngüe de Integração Latino-Americana, nº 36, janeiro/fevereiro 1996, pp. 08-15.

(33) Cf. HUGO N. GONZÁLEZ CANO, Analisis de los Sistemas Tributários en el Mercosur, cit., pp. 06 a 12.

(34) Cf. MISABEL DE ABREU MACHADO DERZI, atualizações às Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar, de ALIOMAR BALEEIRO, cit.

(35) Cf. SACHA CALMON NAVARRO COÊLHO, A Etapa Atual da Harmonização Tributária no Mercosul (1996-1997), inédito.

(36) Cf. JUAN MARTÍNEZ ARRIETA DE PISÓN, La Imposición Directa en el Marco de la Comunidad Europea: el Impuesto sobre la Renta de las Personas Físicas, cit., pp. 04-06.

(37) Cf. MARCELO MONTENEGRO, op. cit., pág. 9.

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Sobre o autor
Igor Mauler Santiago

Advogado em São Paulo (SP), sócio do Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados. Doutor, Mestre e Especialista em Direito Tributário pela UFMG.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTIAGO, Igor Mauler. A harmonização das legislações tributárias no Mercosul. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 2, n. 8, 3 mar. 1997. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1629. Acesso em: 4 mai. 2024.

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Versão atualizada do trabalho apresentado no V Encontro de Estudantes de Direito do Mercosul (Santiago do Chile)

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