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Eficácia privada dos direitos fundamentais

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01/08/2010 às 09:43
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3.A vinculação dos particulares na ordem jurídica brasileira

Novelino (2008, p.234), é enfático ao declarar que

"No direito pátrio não há qualquer justificativa plausível para se negar a eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Este modelo não é coadunável com a triste realidade brasileira na qual as desigualdades sociais estão entre as piores do mundo, impondo a necessidade de uma preocupação ainda maior com a proteção dos direitos fundamentais, sobretudo em relação aos hipossuficientes. As doutrinas jurídicas não podem ser simplesmente reproduzidas ou elaboradas isoladamente da realidade social, política, econômica e cultural na qual se inserem" [07].

Entre nós, ao ser atribuída aos direitos fundamentais a condição de cláusula pétrea (art. 60, §4º, CFRB/1988), pretendeu o constituinte explicitar o especial significado objetivo dos direitos fundamentais, como elementos da ordem jurídica objetiva.

Os direitos fundamentais são essenciais não só ao Estado Democrático – liberdade opinião, de reunião, etc. – como também para o Estado de Direito – vinculação dos poderes públicos aos direitos fundamentais (Savazzoni, 2009, p. 3).

O problema da eficácia inter privatos dos direitos fundamentais não se mostra relevante nos poucos países em que a matéria foi alvo de previsão no texto constitucional, como Portugal, Suíça e África do Sul. Porém, naqueles em que isto não ocorreu, caso do Brasil, é questão das mais relevantes definir se a Constituição oferece, ou não, fundamento para tal dimensão de eficácia jusfundamental.

Ao estabelecer que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata (art. 5º, § 1º, CFRB/1988), a Constituição consagrou o princípio da máxima efetividade, impondo que na interpretação dos direitos fundamentais se atribua o sentido capaz de conferir a maior efetividade possível para que tais direitos realmente cumpram sua função social. Em outras palavras, este princípio impõe a preferência por opções que favoreçam a efetiva atuação dos direitos fundamentais, corroborando a adoção do modelo que sustenta a aplicabilidade direta às relações particulares. Não há necessidade de utilização de artifícios jurídicos para lhes garantir efetividade (Novelino, 2008, p. 235.).

De outra banda, Virgílio Afonso da Silva não se mostra seguro quanto à serventia do art. 5º, § 1º da CF/88 para o propósito de fundamentar a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas. Segundo ele, no trato do assunto

"há uma confusão entre a eficácia dos direitos fundamentais, sua forma de produção de efeitos e seu âmbito de aplicação. O texto constitucional, que dispõe que os direitos fundamentais terão aplicação imediata, faz menção a uma potencialidade, à capacidade de produzir efeitos desde já. Mas a simples prescrição constitucional de que as normas definidoras de direitos fundamentais terão ‘aplicação imediata’ não diz absolutamente nada sobre quais relações jurídicas sofrerão seus efeitos, ou seja, não traz indícios sobre o tipo de relação que deverá ser disciplinada pelos direitos fundamentais. Somente se se pressupõe que direitos fundamentais devem produzir efeitos – diretos – em todas as relações jurídicas possíveis é que se poderá interpretar o § 1º do art. 5º como aplicável – de imediato – às relações entre particulares" [08].

Para Ingo Sarlet (apud Costa, 2007, pp. 109/110), o que pretendeu o Constituinte, com a previsão no sentido de que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata, foi evitar um esvaziamento dos direitos fundamentais, impedindo que permaneçam letra morta no texto da Constituição. A par de tal premissa, opina que ao dispositivo em exame é possível atribuir, sem sombra de dúvidas, o mesmo sentido outorgado ao art. 18.1 da Constituição da República Portuguesa – o qual estabelece, precisamente, que os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.

Portanto, embora não se refira de modo expresso à vinculação dos particulares, parece esposar o pensamento de que essa dimensão de eficácia jusfundamental encontra guarida no preceito constitucional em estudo.

Todavia, cumpre esclarecer que alguns direitos fundamentais são oponíveis exclusivamente ao Estado e que a produção direta de efeitos nem sempre ocorrerá. A aplicação será direta apenas se o enunciado sua natureza o permitirem e quando o direito fundamental for aplicável a esta espécie de relação.

Os modelos que admitem os efeitos diretos ou indiretos dos direitos fundamentais nas relações entre particulares não são necessariamente inconciliáveis ou incompatíveis entre si. Novelino (2008, p. 235) defende que

"A partir do momento em que se admite aplicabilidade direta dos direitos fundamentais às relações entre particulares, torna-se possível uma harmonização dos dois modelos. O ideal é que nesta espécie de relação ocorra a irradiação dos efeitos dos direitos fundamentais por meio de lei. Todavia, não existindo a mediação por parte do legislador no sentido de determinar o alcance dos direitos fundamentais na vinculação dos particulares, tais direitos podem (e devem) ser aplicados diretamente [09]."

Importa ainda observar que os defensores da eficácia horizontal direta não sustentam a sobreposição das ponderações judiciais em relação às legislativas. Havendo regulação específica, desde que compatível com a Constituição e os direitos fundamentais, deve prevalecer aplicação da norma infraconstitucional. Somente na hipótese de serem deficitárias ou manifestamente inconstitucionais é que deverão ser afastadas as concretizações legislativas.

Também não se defende a prevalência absoluta dos direitos fundamentais sobre a autonomia da vontade. Ao contrário, esta constitui um fundamento da dignidade humana e toda natureza racional. Deve, portanto, receber proteção constitucionalmente adequada, e deve ser maior na medida em que a vontade seja autêntica e efetivamente livre (Novelino, 2008, p. 236).

3.1 A vinculação dos particulares na jurisprudência do STF

Existe uma uniformidade na doutrina brasileira, contudo, quando se trata de apontar os arestos em que o Supremo Tribunal Federal enfrentou de modo mais direto a questão da eficácia entre particulares dos direitos fundamentais: trata-se de duas paradigmáticas decisões da década de 90, que estão em praticamente todas as obras jurídicas nacionais sobre o tema (Costa, 2007, p. 149).

Na primeira delas, tomada no Recurso Extraordinário nº 158.215/RS, também relatado pelo Min. Marco Aurélio, o Pretório Excelso decidiu que ato de exclusão praticado no âmbito de entidade privada não se furta à observância do direito fundamental ao devido processo legal, a fim de assegurar a ampla defesa. A ementa é transcrita:

DEFESA - DEVIDO PROCESSO LEGAL - INCISO LV DO ROL DAS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS - EXAME - LEGISLAÇÃO COMUM. A intangibilidade do preceito constitucional assegurador do devido processo legal direciona ao exame da legislação comum. Daí a insubsistência da óptica segundo a qual a violência à Carta Política da República, suficiente a ensejar o conhecimento de extraordinário, há de ser direta e frontal. Caso a caso, compete ao Supremo Tribunal Federal exercer crivo sobre a matéria, distinguindo os recursos protelatórios daqueles em que versada, com procedência, a transgressão a texto constitucional, muito embora torne-se necessário, até mesmo, partir-se do que previsto na legislação comum. Entendimento diverso implica relegar à inocuidade dois princípios básicos em um Estado Democrático de Direito - o da legalidade e do devido processo legal, com a garantia da ampla defesa, sempre a pressuporem a consideração de normas estritamente legais. COOPERATIVA - EXCLUSÃO DE ASSOCIADO - CARÁTER PUNITIVO - DEVIDO PROCESSO LEGAL. Na hipótese de exclusão de associado decorrente de conduta contrária aos estatutos, impõe-se a observância ao devido processo legal, viabilizado o exercício amplo da defesa. Simples desafio do associado à assembléia geral, no que toca à exclusão, não é de molde a atrair adoção de processo sumário. Observância obrigatória do próprio estatuto da cooperativa [10].

No ano seguinte, um dissídio individual configurado entre funcionário brasileiro e a empresa aérea Air France, no qual o recorrente pleiteava o direito à isonomia salarial em relação aos empregados de origem francesa, levou o STF a declarar a eficácia do direito fundamental à igualdade naquela relação entre particulares:

CONSTITUCIONAL. TRABALHO. PRINCÍPIO DA IGUALDADE. TRABALHADOR BRASILEIRO EMPREGADO DE EMPRESA ESTRANGEIRA: ESTATUTOS DO PESSOAL DESTA: APLICABILIDADE AO TRABALHADOR ESTRANGEIRO E AO TRABALHADOR BRASILEIRO. C.F., 1967, art. 153, § 1º; C.F., 1988, art. 5º, caput. I. - Ao recorrente, por não ser francês, não obstante trabalhar para a empresa francesa, no Brasil, não foi aplicado o Estatuto do Pessoal da Empresa, que concede vantagens aos empregados, cuja aplicabilidade seria restrita ao empregado de nacionalidade francesa. Ofensa ao princípio da igualdade: C.F., 1967, art. 153, § 1º; C.F., 1988, art. 5º, caput). II. - A discriminação que se baseia em atributo, qualidade, nota intrínseca ou extrínseca do indivíduo, como o sexo, a raça, a nacionalidade, o credo religioso, etc., é inconstitucional. Precedente do STF: Ag 110.846(AgRg)-PR, Célio Borja, RTJ 119/465. III. - Fatores que autorizariam a desigualização não ocorrentes no caso. IV. - R.E. conhecido e provido. [11]

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Uma década se passou sem que o assunto fosse retomado pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal. O silêncio hermenêutico somente veio a ser quebrado em 2005, quando novamente o tema da exclusão de sócio de associação privada veio à tona. Veja-se a ementa:

SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO. I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados. II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais. III. SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. ENTIDADE QUE INTEGRA ESPAÇO PÚBLICO, AINDA QUE NÃO-ESTATAL. ATIVIDADE DE CARÁTER PÚBLICO. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL.APLICAÇÃO DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À AMPLA DEFESA E AO CONTRADITÓRIO. As associações privadas que exercem função predominante em determinado âmbito econômico e/ou social, mantendo seus associados em relações de dependência econômica e/ou social, integram o que se pode denominar de espaço público, ainda que não-estatal. A União Brasileira de Compositores - UBC, sociedade civil sem fins lucrativos, integra a estrutura do ECAD e, portanto, assume posição privilegiada para determinar a extensão do gozo e fruição dos direitos autorais de seus associados. A exclusão de sócio do quadro social da UBC, sem qualquer garantia de ampla defesa, do contraditório, ou do devido processo constitucional, onera consideravelmente o recorrido, o qual fica impossibilitado de perceber os direitos autorais relativos à execução de suas obras. A vedação das garantias constitucionais do devido processo legal acaba por restringir a própria liberdade de exercício profissional do sócio. O caráter público da atividade exercida pela sociedade e a dependência do vínculo associativo para o exercício profissional de seus sócios legitimam, no caso concreto, a aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, CF/88). IV. Recurso extraordinário desprovido [12].

A União Brasileira de Compositores (UBC) desligara, por motivos irrelevantes, um de seus sócios sem que lhe fosse oportunizada apresentação de defesa. O ato foi anulado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em decisão que ensejou a interposição do recurso extraordinário pela associação privada.

A relatora do processo, Minª Ellen Gracie [13], posicionou-se em favor do provimento do recurso, argumentando que "as associações privadas têm liberdade para se organizar e estabelecer normas de funcionamento e de relacionamento entre os sócios, desde que respeitem a legislação em vigor". Além disso, segundo ela, como "cada indivíduo, ao ingressar numa sociedade, conhece suas regras e seus objetivos", então "a controvérsia envolvendo a exclusão de um sócio de entidade privada resolve-se a partir das regras do estatuto social e da legislação civil em vigor", concluindo que é "totalmente descabida a invocação do disposto no art. 5º, LV da Constituição para agasalhar a pretensão do recorrido de reingressar nos quadros da UBC".

O Min. Gilmar Ferreira Mendes [14] – não coincidentemente, expoente no conhecimento do jusconstitucionalismo alemão –, após pedir vista dos autos, proferiu aquele que seria o voto vencedor, no qual teceu minuciosas considerações acerca do tema da eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas. Dentre as passagens mais significativas, salientou que não era sua intenção "discutir no atual momento qual a forma geral de aplicabilidade dos direitos fundamentais que a jurisprudência desta Corte professa para regular as relações entre particulares"; importava-lhe, isto sim, "ressaltar que o Supremo Tribunal Federal já possui histórico identificável de uma jurisdição constitucional voltada para a aplicação desses direitos às relações privadas".

Finalmente, vale aqui repisar a constatação do Min. Gilmar Ferreira Mendes, no sentido de que não mais se discute que o Supremo Tribunal Federal acolhe a idéia de que os direitos fundamentais aplicam-se às relações privadas; falta ainda esclarecer o modo através do qual esta eficácia se manifesta. Resta aguardar que nos anos vindouros, a corte possa estabelecer os contornos definitivos sobre o assunto com a precisão dogmática que se deseja.

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Sobre a autora
Luciana de Sousa Lima

Servidora pública Federal. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Tocatins. Pós-graduação "lato sensu" em direito público pela Universidade Anhanguera - UNIDERP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Luciana Sousa. Eficácia privada dos direitos fundamentais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2587, 1 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17094. Acesso em: 24 abr. 2024.

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