4. Incompatibilidades dogmáticas da responsabilidade penal da pessoa jurídica frente à teoria do delito
A responsabilidade penal das pessoas jurídicas, do ponto de vista dogmático, apresenta, prima facie, inúmeros problemas, dentre os quais pode-se destacar, a falta de capacidade de ação no sentido estrito do Direito Penal, a incapacidade de culpabilidade e o princípio da personalidade da pena.
A seguir, analisaremos, neste limitado ensaio, alguns enfoques daquelas questões consideradas fundamentais no presente contexto.
4.1 A incapacidade de ação
O Direito penal contemporâneo estabelece que o único sujeito com capacidade de ação é o indivíduo. Pode-se dizer "que, no mundo social, só os seres humanos são capazes de ouvir e de entender as normas, portanto, só eles podem cometer crimes."(14)
A ação, como primeiro elemento estrutural do crime, é o comportamento voluntário conscientemente dirigido a um fim. Compõe-se de um comportamento exterior, de conteúdo psicológico, da representação ou antecipação mental do resultado pretendido, da escolha dos meios e a consideração dos efeitos concomitantes ou necessários e do movimento corporal dirigido a um fim proposto.
Cezar Roberto Bitencourt(15), em trabalho sobre o tema, lança a seguinte indagação: "Como sustentar-se que a pessoa jurídica, um ente abstrato, uma ficção normativa, destituída de sentidos e impulsos possa ter vontade e consciência? Como poderia uma abstração jurídica ter representação ou antecipação mental das conseqüências de sua ação?."
E arremata: "... a conduta (ação ou omissão) é produto exclusivo do homem. Juarez Tavares, seguindo essa linha, afirma que a vontade eleva-se, pois, à condição de espinha dorsal da ação. Sem vontade não há ação, pois o homem não é capaz de cogitar de seus objetivos, se não se lhe reconhece o poder concreto de prever os limites de sua atuação. René Ariel Dotti destaca, com muita propriedade, que o conceito de ação como atividade humana conscientemente dirigida a um fim vem sendo tranqüilamente aceito pela doutrina brasileira, o que implica no poder de decisão pessoal entre fazer ou não fazer alguma coisa, ou seja, num atributo inerente às pessoas naturais. Com efeito, a capacidade de ação e de culpabilidade exige a presença de uma vontade, entendida como faculdade psíquica da pessoa individual, que somente o ser humano pode ter."
Assim, ressalta a evidência de que a pessoa coletiva não possui consciência e vontade em sentido psicológico exclusivos da pessoa física. Isto vale dizer: não é capaz de ser sujeito ativo do delito, pois sem estes dois elementos consciência e vontade é impossível falar-se, tecnicamente, em ação, que é o primeiro elemento estrutural do crime, ao menos, que se pretenda destruir o Direito Penal e partir, assumidamente, para a responsabilidade objetiva.
4.2. A incapacidade de culpabilidade
Com a adoção da teoria normativa pura, operou-se a exclusão do dolo e da culpa da culpabilidade, sua posição original, para ingressar na tipicidade. O princípio da culpabilidade passou-se, desde então, a ser examinado em dois níveis: um na tipicidade e outro na culpabilidade.
Em nível de tipicidade, o princípio significa, nos dias atuais, que não existe conduta típica sem que se apresente o dolo, ou, ao menos, a culpa. Como vimos anteriormente, o resultado decorrente da conduta deve ingressar na vontade realizadora do agente para que seja penalmente relevante.
Tratando-se de culpabilidade, o princípio enuncia a impossibilidade de ser irrogada uma pena ao agente se não estão presentes seus três elementos constitutivos, quais sejam, imputabilidade, potencial consciência de ilicitude e exigibilidade de conduta diversa, posto que nullum crimen nulla poena sine culpabilidade.
A culpabilidade como fundamento e limite da pena é a reprovabilidade do fato antijurídico individual. Como juízo de censura pessoal pela realização do injusto típico, somente pode ser endereçada a uma pessoa humana (culpabilidade de vontade).
A imputabilidade um dos elementos da culpabilidade - é a aptidão para ser culpável, é a capacidade de culpabilidade. "Pode-se afirmar, de uma forma genérica, que estará presente a culpabilidade, segundo o Direito Penal brasileiro, toda vez que o agente apresentar condições de normalidade e maturidade psíquica. Maturidade e alterações psíquicas são atributos exclusivos da pessoa natural e, por conseqüência, impossível de serem transladados para a pessoa fictícia. Enfim, a pessoa jurídica carece de maturidade e higidez mental, logo, é inimputável."(16)
Quanto ao segundo elemento da culpabilidade, não se pode exigir, por óbvio, que um empresa possa formar a "consciência da ilicitude" da atividade desenvolvida através de seus diretores ou prepostos. Escapa a moderna teoria do delito, consequentemente, um juízo de reprovabilidade em razão da conduta da referida empresa que, por exemplo, contarie a ordem jurídica.
Por fim, o terceiro elemento da culpabilidade exigibilidade de conduta diversa ou de obediência ao direito - embora, em tese, possa ser exigido da pessoa jurídica, esbarra no caráter seqüencial desses elementos, posto que a exigibilidade de conduta diversa pressupõe tratar-se de agente imputável e de estar configurada a potencial consciência de ilicitude, impossível no caso do ente coletivo.
Demonstramos, portanto, a incapacidade de culpabilidade da pessoa jurídica, haja vista que a noção aceita é a da culpabilidade pelo fato individual, atribuída somente ao ser humano, importando num chamado Direito Penal do fato ou da culpa, evitando-se a chamada responsabilidade objetiva ou pelo evento.
4.3. Princípio da personalidade da pena
A Constituição de 1988, em seu artigo 5º, inciso XLX, dispõe que nenhuma pena passará da pessoa do condenado, consagrando o princípio da personalidade da pena e, como corolário lógico, o princípio da individualização da mesma. Os citados princípios determinam que a sanção penal recaia exclusivamente sobre os autores materiais do delito.
A condenação do ente coletivo pressupõe a penalização de todos os membros da corporação, autores materiais do delito e membros inocentes do grupo jurídico, representando, pois, uma flagrante violação aos princípios da personalidade e da individualização da pena.
Na verdade, o importante é a punição efetiva das pessoas naturais que se escondem através das pessoas coletivas e se utilizam de seu poder como instrumento para a prática delitiva. Já dizia Manoel Pedro Pimentel(17) que "raramente a pessoa jurídica tem um único responsável pela sua administração. E aquelas que se organizam para a prática do delito econômico obviamente nunca têm um só. Assim, a responsabilidade pela conduta da pessoa jurídica deve se projetar sobre as pessoas físicas que compões seus órgãos de administração."
Além do que, as idéias de retribuição, intimidação e reeducação referentes à pena não teriam sentido em relação às pessoas morais, bem como os fins de prevenção especial, por ser a empresa incapaz de sentir tais efeitos.
Como sabiamente afirmou Francisco Muñoz Conde(18), "a pena não pode ser dirigida, em sentido estrito, às pessoas jurídicas no lugar das pessoas físicas que atrás delas se encontram, porque conceitualmente implica uma ameaça psicológica de imposição de um mal para o caso de quem delinqüe e não se pode imaginar que a pessoa jurídica possa sentir o efeito de cominação psicológica alguma."
5. A (ir)responsabilidade penal da pessoa jurídica na Constituição Federal de 1988
Exista muita controvérsia na doutrina nacional sobre a questão no âmbito constitucional. Alguns entendem que continua em vigor o princípio societas delinquere non potest, não revogado, mas ratificado pela Carta de 1988. Outros, ao contrário, sustentam que efetivamente a mais recente Constituição brasileira desejou inovar e se adequar à tendência universal no sentido de responsabilizar penalmente a pessoa jurídica.
A Constituição de 1988, sobre o tema, declara:
"A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular" (art. 173, § 5º).
"As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados"(art. 225, § 3º).
Como adeptos da responsabilidade penal das pessoas jurídicas, podemos citar: Paulo Affonso Leme Machado, Gilberto Passos de Freitas, Ivette Senise Ferreira, Sérgio Salomão Shecaria, Antônio Evaristo de Morais Filho, Fausto Martin de Sanctis, Walter Claudis Rothenburg(19), dentre outros ilustres.
Fausto Martin de Sanctis(20), ao defender seu ponto de vista, expõe que: "O legislador constitucional, atento às novas e complexas formas de manifestações sociais, mormente no que toca à criminalidade praticada sob o escudo das pessoas jurídicas, foi ao encontro da tendência universal de responsabilização criminal. Previu, nos dispositivos citados, a responsabilidade penal dos entes coletivos nos delitos praticados contra ordem econômica e financeira e contra a economia popular, bem como contra o meio ambiente."
Gilberto Passos de Freitas, ao comentar o art. 225, § 3º, afirma: "Diante desse dispositivo, tem-se que não há mais o que se discutir a respeito da viabilidade de tal responsabilização. No dizer da Professora Ivette Senise Ferreira, designando como infratores ecológicos as pessoas físicas ou jurídicas o legislador,... abriu caminho para um novo posicionamento do direito penal do futuro, com a abolição do princípio ora vigente o qual societas delinquere non potest".(21)
Além dos penalistas, grande parte dos constitucionalistas, também, reconhece a responsabilidade da empresa na Carta Política de 1988.
José Afonso da Silva defende que o disposto no art. 173, § 3º, prevê a possibilidade de responsabilização das pessoas jurídicas, independentemente de seus dirigentes, sujeitando-os às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica, tendo como um dos seus princípios a defesa do meio ambiente.
Tanto para o citado autor, como para Shecaria(22), os dois dispositivos da Carta Magna invocados no início deste capítulo têm entre si uma articulação orgânica, que impedem possam ser examinados separadamente, por estarem no âmbito do mesmo contexto.
Diversa não é a opinião de Celso Ribeiro Bastos, Ives Gandra Martins e Pinto Ferreira(23).
De outro lado, como adeptos da irresponsabilidade penal das pessoas jurídicas, temos: René Ariel Dotti24(24), Luiz Vicente Cernicchiaro(25), Cezar Roberto Bitencourt(26), Antônio Claúdio Mariz de Oliveira [27], Luiz Regis Prado(28), José Carlos de Oliveira Robaldo(29), William Terra de Oliveira(30), dentre vários.
Para eles, a Constituição de forma alguma consagrou a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Os argumentos são vários, oscilando da interpretação literal do texto constitucional à de ordem teleológico-sistemática.
Luiz Regis Prado(31), ao analisar o art. 225, § 3º, da Constituição Federal, aduz que o dispositivo em tela refere-se, claramente, a conduta/atividade, e, em seqüência, a pessoas físicas ou jurídicas. Dessa forma, vislumbra-se que o próprio legislador procurou fazer a devida distinção, através da correlação significativa mencionada. E, continua, afirmando que "nada obstante, mesmo que ad argumentandum o dizer constitucional fosse em outro sentido numa interpretação gramatical (a menos recomendada) diversa -, não poderia ser aceito. Não há dúvida que a idéia deve prevalecer sobre o invólucro verbal."
Para José Carlos de Oliveira Robaldo(32), a responsabilidade penal das pessoas coletivas peca por dois motivos: primeiro porque fere o Direito Penal mínimo, posto que está se atribuindo ao Direito Penal uma tarefa que não é sua; segundo porque o Direito Penal se fundamenta na culpabilidade, cuja conduta, pedra angular da teoria geral do delito, somente é atribuível ao homem.
Luiz Vicente Cernicchiaro(33), por seu turno, entende que os arts. 173, § 5º e 225, § 3º, devem ser interpretados teleologicamente e considerados dentre de um contexto sistêmico maior, sob pena de se perder a congruência e visão de conjunto em relação a outros dispositivos constitucionais. Para ele, ao menos dois princípios básicos do direito penal, insertos na Constituição, seriam atingidos se houvesse a responsabilidade penal da empresa, quais sejam, o princípio da culpabilidade e o da responsabilidade pessoal; "haveria, pois, ofensa à idéia de que sem culpabilidade não existe pena, dogma de segurança individual, garantido pelo sistema penal brasileiro e haurido do Iluminismo; além disso, a pena passaria da pessoa do condenado, atingindo terceiros que não houvessem praticado qualquer conduta delituosa, ou que nem mesmo tivesse dado alguma contribuição nesse sentido."
Com efeito, pensamos que uma sociedade comercial e um homem são entes distintos em sua estrutura, haja vista que a conduta humana não tem seu equivalente no ato jurídico da pessoa jurídica, sendo a imputabilidade jurídico-penal uma qualidade inerente aos seres humanos.
Ora, a capacidade de ação, de culpabilidade e de pena, que analisamos en passant, exige a presença de uma vontade, entendida como faculdade psíquica da pessoa individual, inexistente na pessoa jurídica, mero ente ao qual o direito atribui capacidade para outros fins distintos dos penais. Além do mais, a pessoa jurídica não é intimidável pela certeza da aplicação de penas, e não pode ser ressocializada através da sanção.
Reforçando a tese que a Carta Magna de 1988 não adotou o princípio societas delinquere potest, encontramos nos Comentários à Constituição, na questão criminal dos grupamentos, a revelação de Antônio Evaristo Moraes Filho(34) que, ao proceder uma pesquisa sobre a origem do dispositivo 173, § 5º, na Comissão de Sistematização, descobriu que a sua redação original previa o seguinte: "lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos integrantes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade criminal desta."
Não resta dúvida, pois, que a mudança de texto do legislador significou a exclusão da responsabilidade criminal dos entes jurídicos.
Tendo em vista os entendimentos esposados, chegamos à conclusão que, no tocante a responsabilidade penal da pessoa jurídica à luz da Constituição Federal de 1988:
- a responsabilidade pessoal dos dirigentes não se confunde com a responsabilidade da pessoa coletiva;
- a Carta Magna não dotou o ente moral de responsabilidade penal; ao contrário, condicionou a sua responsabilidade à aplicação de sanções compatíveis com a sua natureza;
- a responsabilidade penal continua a ser pessoal (art. 5º, inciso XLX).