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De Nuremberg a Haia: uma análise histórica sobre o desenvolvimento dos Tribunais Internacionais Penais

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06/09/2010 às 17:36
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5. Processos ulteriores a Nuremberg

O processo de Nuremberg foi o último ato da impactante da Segunda Grande Guerra, passando, com o tempo, a servir como precedente e referência para os processos ulteriores. Jankov informa:

Com o objetivo de positivar as premissas para o estabelecimento do IMT e do IMTFE e para evitar a associação desses tribunais com a ideia de ‘justiça dos vencedores’, o sistema das nações unidas, no final da década de 1940, iniciou um trabalho visando estabelecer mecanismos permanentes e imparciais para a justiça internacional penal. Nesse contexto, a Convenção para a Prevenção e a Repressão ao Crime de Genocídio (1948), em seu art. 6°, faz a alusão a um tribunal penal internacional.

Nesse sentido, os esforços das Nações Unidas para estabelecer um tribunal penal manifestaram-se basicamente em dois âmbitos: a codificação dos crimes internacionais e a elaboração de um projeto de estatuto para o estabelecimento de um tribunal internacional.

Conforme a solicitação da Assembléia Geral das Nações Unidas de 21 de novembro de 1947, a Comissão de Direito Internacional (Internacional Law Comission) iniciou a formulação dos princípios reconhecidos pelo Estatuto do tribunal de Nuremberg (Princípios de Nuremberg – Nuremberg Principles,1950), objetivando elaborar um projeto de código dos crimes contra a paz e a segurança da humanidade (Code of Crimes against the Peace and Security of Mankind) [21].

Tratava-se do inicio do processo de arregimentação de mecanismos normativos que redundariam no Tribunal Internacional Penal.

Paralelamente ao trabalho da Comissão de Direito Internacional, a Assembléia Geral estabeleceu também um comitê, encarregado de elaborar o estatuto de um tribunal penal internacional, o qual foi submetido a aprovação em 1952. Posteriormente, um novo comitê foi criado pela Assembléia Geral com a finalidade de rever o projeto do estatuto, com base nos comentários realizados pelos estados-Membros, relatado à Assembléia geral em 1954.

Uma versão substancialmente modificada do Projeto de Código de 1954 foi provisoriamente aprovado pela Comissão em 1991 e enviada aos Estados Membros para análise. Entretanto, este código não previa necessariamente uma jurisdição internacional. Este tema seria apenas tratado em 1989, ano da queda do muro de Berlin.

Em meados de 1993, a Comissão preparou um projeto sob a direção do Special Rapporteur James Crawford, o qual em 1994 teve sua versão final do Estatuto para um Tribunal Penal Internacional submetida à Assembléia Geral [22].

O Longo quase recesso entre Nuremberg e a aprovação do Estatuto é justificado pela tensão gerada por uma ordem mundial bipolarizada, impedindo maiores conjecturas e pretensões do porte de um Tribunal como o TPI.

Enquanto o Projeto de um Tribunal Internacional Penal se desenvolvia, o mundo viu a criação de uma corte com base ad hoc, endereçada às atrocidades cometidas na antiga Iugoslávia.

Em 08 de maio de 1993, o Conselho de Segurança aprovou a Resolução 827 estabelecendo o Tribunal para a Antiga Iugoslávia. O Estatuto define a autoridade do Tribunal para processar quatro categorias de crimes: graves violações às Convenções de Genebra de 1949; violações às leis e costumes da guerra; crimes contra a humanidade e genocídio. A jurisdição estava limitada às violações ocorridas no território da antiga Iugoslávia a partir de 1991.

Logo depois, o Tribunal ad hoc para a extinta Iugoslávia deu azo à criação de outro Tribunal:

Em novembro de 1994, atendendo a uma solicitação da Ruanda o Conselho de Segurança deliberou a criação de um segundo tribunal ad hoc, encarregado de processar e julgar as graves violações do direito humanitário cometidas na Ruanda e nos países vizinhos durante o ano de 1994. Seu Estatuto assemelha-se ao do TPII, entretanto, os dispositivos relativos aos crimes de guerra por refletirem o contexto de um conflito armado eminentemente interno, afastam as graves violações das Convenções de Genebra [23].

Cabe ressaltar a grande inovação trazida pelo Tribunal no sentido de uma visão inovativa e progressiva do direito aplicado aos crimes de guerra, estendendo os precedentes de Nuremberg ao declarar que os crimes contra a humanidade poderiam ser cometidos em tempos de paz e estabelecendo a punibilidade dos crimes de guerra durante conflitos armados internos.


6. O Tribunal Penal Internacional

Em julho de 1998, em Roma, foi aprovado, por 120 votos a favor, 07 votos contrários – China, Estados Unidos da América, Filipinas, Índia, Israel, Sri Lanka e Turquia – e 21 abstenções, na Conferência Diplomática de Plenipotenciários das Nações Unidas, o Estatuto de Roma [24] do Tribunal Penal Internacional, cujo principal objetivo era instituir uma instância penal internacional de caráter permanente, sediado na Haia.

De fato o TPI é o ápice do desenvolvimento de uma instância de caráter internacional antes vislumbrada com o advento dos Tribunais Militares de Nuremberg e do Extremo Oriente.

A jurisdição do Tribunal Penal Internacional possui caráter complementar ao ordenamento jurídico dos Estados, ou seja, o Tribunal somente poderá exercer a sua jurisdição se o Estado competente para conhecer o fato não o fizer ou encontrar-se impossibilitado de fazê-lo.

O Estatuto entrou finalmente em vigor em 1° de julho de 2002, na forma do seu artigo 126 [25]:

Artigo 126 [Entrada em vigor]

1. O presente Estatuto entrará em vigor no primeiro dia do mês seguinte ao sexagésimo dia após a data de depósito do sexagésimo instrumento de ratificação, aceitação, aprovação ou adesão junto ao Secretário-Geral das Nações Unidas.

Para cada Estado que ratificar, aceitar ou aprovar o Estatuto, ou a ele aderir após o depósito do sexagésimo instrumento de ratificação, aceitação, aprovação ou adesão, o Estatuto entrará em vigor no primeiro dia do mês seguinte ao sexagésimo dia após a data em que cada um desses Estados tiver depositado seu instrumento de ratificação, aceitação, aprovação ou adesão.

O texto aprovado encontra-se aberto à assinatura e ratificação por parte dos Estados. Tendo alcançado a ratificação de 89 Estados, até abril de 2003, ultrapassando, assim, o consenso mínimo necessário para a sua entrada em vigor. O Brasil assinou o Tratado em 2000.

O Estatuto do TPI estabelece a competência para os crimes previstos em seu artigo 5°, a saber: genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão, descritos como "crimes mais graves, que afetam a comunidade internacional no seu conjunto" [26]. O Estatuto ainda os descreve como "atrocidades inimagináveis que chocam profundamente a consciência da humanidade" [27] e "crimes de maior gravidade com alcance internacional" [28].

Originalmente a ideia de crimes internacionais estava relacionada à jurisdição do Estado, em cujo território o acusado se encontrava. Assim, o fato deste ser ou não julgado e condenado, dependia exclusivamente da legislação e das autoridades do país em questão.

Na hipótese de não atuação do Estado, o Estado de nacionalidade da vítima poderia solicitar ao Estado do suposto autor, a punição do acusado ou pagamento de indenização. Enfim, seria uma questão de responsabilidade do Estado, em razão da ausência de julgamento e punição do acusado. No entanto, duas categorias de crimes eram consideradas exceções a este princípio, a saber: a pirataria e os crimes de guerra.

A pirataria era uma prática muito conhecida nos séculos XVII e XVIII. O artigo 101 da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (1982) a define. Os piratas eram considerados inimigos da humanidade (hostes humani generis) e portanto, todos os Estados, poderiam processá-los, julgá-los e puni-los, independentemente da sua nacionalidade [29].

Os crimes de guerra foram positivados na segunda metade do século XIX impulsionados por dois fatores: "A codificação do direito costumeiro consuetudinário da guerra (codification of the customary law of warfare) e Codificação da Haia (1899-1907) (Hague Codification)" [30].

Ao final da Primeira Guerra Mundial surgiu o "Princípio da Territorialidade", bastando, portanto, que o crime fosse cometido no território do Estado para estar sujeito à sua jurisdição [31].

Mas as grandes mudanças no cenário dos crimes internacionais e o refinamento de tais mecanismos punitivos surgiram após a Segunda Grande Guerra. Se quanto aos crimes de guerra, o Tribunal Militar Internacional de Nuremberg apenas fez um aproveitamento do que já havia no ordenamento jurídico internacional, fez surgir duas novas categorias: crimes contra a paz e crimes contra a humanidade.

Outra novidade encontra-se no fato de que, até 1945 (exceção feita ao dispositivo constante do Tratado de Versalhes, em relação ao Império Alemão, que permaneceu como letra morta), Oficiais Estatais "senior" nunca haviam sido responsabilizados pessoalmente por suas faltas.

Sendo assim, os acusados deixavam de estar protegidos pela soberania do Estado, sendo quebrada sua imunidade, a qual não poderia mais ser alegada. Pela primeira vez o princípio básico era proclamado: diante da alternativa entre obedecer ao comando da lei interna ou ao padrão internacional de conduta, o Oficial ou indivíduo deveria optar pelo segundo.

Principes du droit international consacrés par le statut du tribunal de nuremberg et dans le jugement de ce tribunal, 1950.

PRINCIPE 1

Tout auteur d’un acte qui constitue un crime de droit international est responsable de ce chef et passible de châtiment.

(...)

PRINCIPE 4

Le fait d’avoir agir sur l’ordre de son gouvernement ou celui d’un supérieur hiérarchique ne dégage pas la responsabilité de l’auteur en droit international, s’il a eu moralement la faculté de choisir [32].

Posteriormente, a Convenção sobre o Genocídio (1948) e as Convenções de Genebra (1949) fazem surgir novas categorias de crimes de guerra, denominados: "graves violações às Convenções de Genebra", considerando ainda seus dois Protocolos Adicionais (1977), a Convenção contra a Tortura (1984), e uma cadeia de tratados contra o terrorismo desde 1970. Já no âmbito do direito processual, é estabelecido o "Princípio da Universalidade da Jurisdição, de acordo com o qual um Estado contratante poderia levar a julgamento o acusado de "grave violação", independentemente de sua nacionalidade ou local de ocorrência do crime [33].

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Os crimes de guerra constituem a mais antiga das quatro categorias de crimes de competência do Tribunal Penal Internacional e o que mais elenca hipóteses de incidência no Estatuto.

Por sua vez, os crimes de agressão, oriundos dos antigos crimes contra a paz ainda encontram-se carentes de uma definição formal pela ausência de acordo entre os Estados sobre sua definição.

Muita expectativa se criou sobre a recente Conferência de Revisão do Estatuto de Roma, ocorrida em Kampala e que durou duas semanas, encerrando-se no dia 11 de junho de 2010.

Aproximadamente 4600 representantes de Estados, organizações intergovernamentais e não governamentais participaram do evento.

A Conferência visando estabeleceu uma definição para o crime de Agressão, adotou uma resolução que na prática estabelece que a decisão deverá ser tomada após o dia 01 de janeiro de 2017 pela maioria dos Estados-Partes adotando-se uma emenda ao Estatuto.

Com base na resolução 3314 da Assembleia Geral das Nações Unidas de 14 de dezembro de 1974, convencionou-se qualificar "Agressão" como um crime cometido por um dirigente político ou militar, que em razão de sua natureza, gravidade ou repercussão constitui-se como uma violação manifesta à Carta da ONU.

No mesmo turno, a Conferência adotou uma resolução ao fito de emendar o artigo 8º do Estatuto de Roma, alargando a competência da Corte em relação ao crime de guerra, contudo esquivou-se de emendar o art. 124 que possibilita que um Estado que se torne Parte no Estatuto declare que, durante um período de sete anos a contar da data da entrada em vigor do Estatuto no seu território, não aceitará a competência do Tribunal relativamente à categoria de crimes de guerra. A declaração formulada ao abrigo deste artigo poderá ser retirada a qualquer momento.

A Conferência concluiu o balanço da justiça penal internacional adotando duas resoluções, uma declaração e reduzindo a termo os debates.

Quanto ao crime de genocídio, a palavra "genocídio" foi cunhada por Raphael Lemkin em seu livro que trata sobre os crimes cometidos pelos nazistas na Europa ocupada. O artigo 6° do Estatuto de Roma define o genocídio copiando o dispositivo inserto no artigo II da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime do Genocídio (1948). Nesse sentido é salutar a lição de Fernanda Jankov:

Ao adotar o texto de uma convenção de 1948, o Estatuto de Roma claramente constitui uma codificação de norma consuetudinária internacional. Segundo esta norma, o genocídio é definido com base em cinco atos cometidos com o intuito de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional étnico, racial ou religioso [34].

São estes os cinco atos: homicídio de membros do grupo; ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo; sujeição intencional do grupo a condições de vida com o objetivo de provocar a sua destruição física, total ou parcial; imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo; transferência, à força, de crianças do grupo para outro grupo [35].

O crime de genocídio possui um intuito específico que o distingue dos demais crimes, a saber: o fato do ato, seja o homicídio ou qualquer outro dos quatro atos definidos pelo artigo 6°, ser cometido na intenção de destruir no todo ou em parte, um grupo determinado, sem haver restrição no que cerne à quantidade de pessoas vitimadas pelo ação.

O genocídio ou o crime sem nome encontra antecedentes de sua prática desde as mais remotas civilizações, todavia, a articulação de sua prática compreendida a partir de seu conceito é um fenômeno próprio do século XX, como explica Bruneteau:

En 1944, à propos des horreus générées par le nazisme, Wiston Churchill parlait d’ « un crime sans nom ». Lui répondant en quelque sorte, un professeur de droit international, Juif américain d’origine polonaise, Raphael Lemkin, forge la même année le mot de « génocide » à partir du mot grec genos (race, peuple) e du suffixe latin – cide (de caedere, tuer). Il l’introduisait notamment dans un livre, Axis Rule in Occupied Europe, que répertoriat toutes les mesures planifiées par les nazis pour annihiler des peuples, juif et polonais au premier chef, dans leurs composantes nationales, religieuses et ethniques [36].   

Cumpre considerar que, a perseguição a grupos sociais e políticos, não se inclui na definição de genocídio, o que é passível de muitas criticas que, apesar de terem surgido, não conseguiram ampliar a definição tradicional de genocídio. Assim, tais perseguições serão tratadas como crimes contra a humanidade, conforme o artigo 7 (1) (h) do Estatuto.

Por sua vez, para a definição dos crimes contra a humanidade, o Artigo 7° do Estatuto contém quatro requisitos para que seja definida a competência do Tribunal sob a alegação de crimes contra a humanidade:

Ab initio, o Estatuto requer que o crime seja cometido como parte de um "ataque, generalizado ou sistemático", devendo este ser cometido contra uma "população civil", o que claramente os distingue dos crimes de guerra, os quais podem ter como objeto combatentes ou civis, podendo ainda ser um ataque não-militar.

E ainda o Art. 7° (2) (a) estabelece:

(...) Artigo 7° [Crimes contra a Humanidade] (2) (a)

2. Para os efeitos do parágrafo 1°:

a) Por "ataque contra uma população civil’ entende-se qualquer conduta que envolva a prática múltipla de atos referidos no parágrafo 1° contra uma população civil, de acordo com a política de um Estado ou de uma organização de praticar esses atos ou tendo em vista a prossecução dessa política. [37]

Os crimes contra a humanidade podem, portanto, também ser praticados por entes não-estatais, com objetivos políticos.

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Sobre o autor
Juan Pablo Ferreira Gomes

Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Amazonas com Habilitação em Direito Internacional. Tribuno do Ano de 2009 no VII Júri Simulado do MPE/AM congratulado com a medalha Flávio Queiroz de Paula.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Juan Pablo Ferreira. De Nuremberg a Haia: uma análise histórica sobre o desenvolvimento dos Tribunais Internacionais Penais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2623, 6 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17311. Acesso em: 26 abr. 2024.

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