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De Nuremberg a Haia: uma análise histórica sobre o desenvolvimento dos Tribunais Internacionais Penais

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06/09/2010 às 17:36
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7. Conclusão

No dia 24 de março de 1999, a Câmara dos Lordes Britânicos rechaçou a imunidade do general Pinochet, dois meses depois, pela primeira vez na história, um chefe de Estado, no exercício de suas funções – Slobodan Milosevic – era notificado da acusação movida contra si por uma jurisdição internacional. Em 11 de abril de 2002 nasce o Tribunal Penal Internacional.

Tais acontecimentos recentes decorrem de um longo processo histórico com raízes remotas e desdobramentos distintos, mas que passam a se efetivar e ter uma amplitude significativa no século XX.

É indubitável que os Tribunais de Nuremberg configuraram uma justiça dos vencedores e sua utilidade foi muito mais ideológica que na aplicação da justiça.

Os tribunais ad hoc, por sua vez, possuem uma natureza muito particular de atuação, o que ocasiona inúmeros questionamentos quanto à legitimidade (filosófica, histórica, sociológica e jurídica) dos mesmos.

É inegável que o projeto de uma justiça universal sustenta uma utopia, que em parte alcance ares até de totalitarismo considerando as conseqüências da inafastabilidade de uma jurisdição de tamanha proporção.

Do mesmo modo, o horizonte para o qual aponta tal projeto universal se esvaece ante a realidade dos fatos e em face da dinâmica histórica.

A competência universal, na forma dos Tribunais e na atuação dos Estados em julgamentos de crimes dignos desta competência, aponta para a cada vez mais evidente aldeia global em que vivemos.

Os apologistas da justiça internacional apresentam a história que leva à criação do TPI como uma evolução, como o caminho que conduz à vitória do direito contra a barbárie. Como se a barbárie pudesse ser extinta, varrida do mapa e do tempo.

Não há de se negar o caráter realista que devemos ter ao analisar a justiça, ela não vai nos libertar do mal, e o mal não pode ser identificado com o político. A justiça é, inevitavelmente, em inúmeras ocasiões, a continuação da guerra por outros meios.

A justiça penal universal rompe com os paradigmas westfalianos que consagraram as noções essenciais que possuíamos de Estado, soberania, autodeterminação e legitimidade para punir.

Todavia, o ideal da justiça penal universal nunca será concretizado plenamente, estará sempre lançado no devir dos acontecimentos. Deste modo, devemos analisar criticamente os riscos atinentes à empreitada proposta constantemente por este direito internacional penal de julgar a História.

Todos os crimes de competência do Tribunal Penal Internacional são imprescritíveis. O destino de um povo e a ação de certos homens submetem-se a uma instância que se pretende capaz de parar o tempo e tornar inoperante qualquer justificativa histórica.

Os acontecimentos históricos jamais serão julgados fora da História, sempre na História eles serão abordados, assim sabiamente leciona Garapon:

Não é a acção política que adquire o seu sentido com o julgamento a posteriori, mas sim, pelo contrário, o julgamento que só revela o seu verdadeiro significado face à acção política.

(...)

A História não para nunca, a condição histórica não nos dá tréguas. A História não termina, não pode suspender-se. Julgar a História é ainda estar na História. Declarar a abstracção da História é tão insensato como pretender libertar-se da condição humana [38].

Além do mais, uma utopia que se pretende tão somente acertar as contas da História, jamais cumprirá sua meta de punir todas as infrações e reparar todos os prejuízos.

O homem permanece com as rédeas da história em suas mãos. O homem como animal político ainda precisa agir se pretende reparar injustiças, evitá-las. Permanece imprescindível a responsabilidade natural dos povos de serem donos de sua história e assim construí-la, alterá-la, modificá-la.

O considerado fim da utopia socialista bem como as práticas cada vez mais predatórias do capitalismo lançam o homem contemporâneo em um impasse sem precedentes.

Ainda no século XX, os horrores transmitidos em cadeia internacional das hostilidades ocorridas pelo mundo contrastam gritantemente com o eloquente discurso dos direitos humanos de ares transnacionais.

Os defensores de uma justiça penal universal a apoiam sem maiores considerações, ora como projeto de salvação do homem, ora como mínimo possível a se fazer sem maiores pretensões.

Se na primeira hipótese se peca pelo excesso, pelo vão ideal da reforma do homem através do judiciário, que se mostrou tão impotente no âmbito de todas as legislações nacionais, na segunda hipótese se erra pela falta.

Confiar aos juizes, às leis e aos tribunais a justiça, a busca por reparações e transformações históricas é abdicar de agir no mundo, e agir no mundo é agir politicamente.

São incontáveis as vítimas de práticas políticas atrozes perpetradas por genocidas, criminosos de guerra e por aqueles que negligenciaram o mínimo de dignidade ao ser humano, isso tão somente no último século.

Contudo, outros milhares de vítimas perecem e estão a perecer neste exato momento em razão das condutas de uma política econômica genocida, fria e desumana.

Quantos são os mortos, vítimas da pobreza e da desigualdade social, decorrentes originariamente de uma colonização exploratória perpetrada pelos mesmos países que se dizem democráticos?

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Quantos mais irão morrer de fome e de outras causas decorrentes da ausência de condições mínimas de sobrevivência após sofrer outras mortes tão cruéis quanto a fisiológica: a morte histórica, a morte política, a morte da autonomia?

O direito não tem condições de responder a tais questionamentos. A utopia jurídica só será real se decorrer de uma utopia social e política, se for fruto da ação política e histórica dos homens; caso contrário, sempre será uma mera arregimentadora de práticas policialescas e punitivas que nada compreendem do mundo que julgam e que condenam.


9. Referências

BRUNETEAU, Bernard. Le Siècle des Génocides. Paris: Armand Colin. 2005.

GARAPON, Antoine. Crimes que Não se Podem Punir nem Perdoar – Para uma Justiça Internacional. Lisboa: Editora Piaget. 2002.

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. v. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2007.

JANKOV, Fernanda F.F. Direito Internacional Penal – Mecanismos de Implementação do Tribunal Penal Internacional. São Paulo: Editora Saraiva. 2009.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.

MASCARO, Alysson Leandro. Utopia e Direito: Ernst Bloch e a Ontologia Jurídica da Utopia. São Paulo: Quartier Latin, 2008.

_________________________. Lições de Sociologia do Direito. São Paulo: Quartier Latin. 2009.

MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (organizador). Coletânea de Direito Internacional, 7a edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

NAVES, Márcio Bilharinho. Marx, Ciência e Revolução. São Paulo: Moderna/Unicamp, 2000.


Notas

  1. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. v. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2007.p. 235.
  2. MASCARO, Alysson L. Lições de Sociologia do Direito. São Paulo: Quartier Latin. 2009. p.107.
  3. NAVES, Márcio Bilharinho. Marx, Ciência e Revolução. São Paulo: Moderna/Unicamp, 2000. p. 79.
  4. MASCARO, Alysson Leandro. Lições de Sociologia do Direito. São Paulo: Quartier Latin, 2009. p.112.
  5. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007. p. 317-318.
  6. MASCARO, Alysson Leandro. Utopia e Direito: Ernst Bloch e a Ontologia Jurídica da Utopia. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 11.
  7. GARAPON, Antoine. Crimes que Não se Podem Punir nem Perdoar – Para uma Justiça Internacional. Lisboa: Editora Piaget. 2002. p.76
  8. Ibidem., p.89
  9. Ibidem., p.91
  10. DOTTI, René Ariel. Prefácio ao livro de JANKOV, Fernanda F.F. Direito Internacional Penal – Mecanismos de Implementação do Tribunal Penal Internacional. São Paulo: Editora Saraiva. p. XXII.
  11. JANKOV, Fernanda F.F. Direito Internacional Penal – Mecanismos de Implementação do Tribunal Penal Internacional. São Paulo: Editora Saraiva. 2009. p. 22.
  12. GARAPON, Antoine. Crimes que Não se Podem Punir nem Perdoar – Para uma Justiça Internacional. Lisboa: Editora Piaget. 2002. p. 23.
  13. Ibidem., p. 24.
  14. "Accord concernant la poursuite et le châtiment des grands criminels de guerre des Puissances européennes de l’Axe et statut du tribunal international militaire. Londres, 8 août 1945 » - disponivel em « http://www.icrc.org/dih.nsf/
  15. Ibidem.
  16. Artigo 6°, a) dos princípios de Nuremberg.
  17. Artigo 6°, c) dos princípios de Nuremberg.
  18. GARAPON, Antoine. Crimes que Não se Podem Punir nem Perdoar – Para uma Justiça Internacional. Lisboa: Editora Piaget. 2002. p. 25.
  19. JANKOV, Fernanda F.F. Direito Internacional Penal – Mecanismos de Implementação do Tribunal Penal Internacional. São Paulo: Editora Saraiva. 29. p. 24.
  20. GARAPON, Antoine. Crimes que Não se Podem Punir nem Perdoar – Para uma Justiça Internacional. Lisboa: Editora Piaget. 2002. pág. 26.
  21. JANKOV, Fernanda F.F. Direito Internacional Penal – Mecanismos de Implementação do Tribunal Penal Internacional. São Paulo: Editora Saraiva. 29. pág. 26.
  22. Ibidem., p. 26-27.
  23. Ibidem. p. 28.
  24. Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, assinado em Roma, em 17.07.1998, aprovado no Brasil pelo Decreto Legislativo 112, de 06.06.2002, e promulgado pelo Decreto 4.388, de 25.09.2002, depósito da Carta de Ratificação em 20.06.2002. Entrada em vigor internacional em 01.07.2002, reproduzido em MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (organizador). Coletânea de Direito Internacional, 7a edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, 1187-1243.
  25. Estatuto do TPI, artigo 126, reproduzido em MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (organizador). Coletânea de Direito Internacional, 7a edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
  26. Preâmbulo e artigo 5° do Estatuto do TPI.
  27. Preâmbulo do Estatuto do TPI.
  28. Artigo 1° do Estatuto do TPI.
  29. JANKOV, Fernanda F.F. Direito Internacional Penal – Mecanismos de Implementação do Tribunal Penal Internacional. São Paulo: Editora Saraiva. 2009. p. 54.
  30. Les Lois de la Guerre sur Terre, Manuel publié par l’Institut de Droit Internacional – Brussels and Liepzig: C. Muquardt, 1880. In: CASSESE, Antonio. International Criminal Law...p. 39. apud JANKOV, Fernanda F.F. Direito Internacional Penal – Mecanismos de Implementação do Tribunal Penal Internacional. São Paulo: Editora Saraiva. 2009. p. 54-55.
  31. Ibidem.
  32. Principes du Droit International Consacrés par le Statut du Tribunal de Nuremberg et dans le Jugement de ce Tribunal -Texte adopté par la Commission à sa deuxième session, en 1950, et soumis à l’Assemblée générale dans le cadre de son rapport sur les travaux de ladite session. Le rapport, qui contient également des commentaires sur les principes, est reproduit dans l’Annuaire de la Commission du droit international, 1950, vol. II.
  33. JANKOV, Fernanda F.F. Direito Internacional Penal – Mecanismos de Implementação do Tribunal Penal Internacional . São Paulo: Editora Saraiva. 2009. p. 57.
  34. Ibidem., p. 60.
  35. Ibidem.
  36. BRUNETEAU, Bernard. Le Siècle des Génocides. Paris: Armand Colin. 2005. p. 8.
  37. Ibidem., p. 1189.
  38. Ibidem., p.62
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Sobre o autor
Juan Pablo Ferreira Gomes

Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Amazonas com Habilitação em Direito Internacional. Tribuno do Ano de 2009 no VII Júri Simulado do MPE/AM congratulado com a medalha Flávio Queiroz de Paula.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Juan Pablo Ferreira. De Nuremberg a Haia: uma análise histórica sobre o desenvolvimento dos Tribunais Internacionais Penais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2623, 6 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17311. Acesso em: 28 mar. 2024.

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