7 CESSÃO DE DIREITOS HEREDITÁRIOS SOBRE BEM INDIVIDUALIZADO
Com o advento do CC de 2002, surgiu enorme discussão entre os doutrinadores acerca da aplicação do artigo 1.793 e seus §§ 2º e 3º. Prescreve o § 2º: "É ineficaz a cessão, pelo co-herdeiro, de seu direito hereditário sobre qualquer bem da herança considerado singularmente"; e o § 3º: "Ineficaz é a disposição, sem prévia autorização do juiz da sucessão, por qualquer herdeiro, de bem componente do acervo hereditário, pendente a indivisibilidade".
7.1 Cessão de direitos hereditários realizada por um dos co-herdeiros
Na interpretação restritiva do artigo, entende-se que, caso o herdeiro queira fazer cessão de direitos hereditários, só poderia fazê-la sobre a quota-parte que possui na universalidade do acervo hereditário, mas nunca sobre um bem determinado, tendo em vista a incerteza que decorre da quota-parte ser preenchida com aquele bem cedido no momento da efetivação da partilha.
Porém, mesmo sabendo de tal restrição, o herdeiro que ainda queira realizar cessão sobre bem especifico sem a anuência dos demais, poderá fazê-la, mas tal negócio não obrigará os demais herdeiros, que poderão ou não concordarem com aquela cessão.
Neste sentido:
Nada obsta a que o cedente especifique um bem como integrante de sua quota-parte, mas tal especificação não obriga aos co-herdeiros. Se estes concordarem com a cláusula aposta no instrumento de cessão, podem acordar que o bem especificado faça parte da quota que caberia ao cessionário, mas não estão obrigados a fazê-lo, exceto por cortesia [19].
Na prática, são formalizados inúmeros instrumentos de cessão de direitos hereditários especificando bem no acervo hereditário, ficando a mercê dos demais co-herdeiros concordarem ou não com o negócio realizado. O cessionário corre o risco, quando da partilha, de sua cessão não ser efetivada, ou seja, não ser contemplada com aquele bem especifico, respondendo o cedente pelas perdas e danos causados. O CC não proíbe a cessão nestas circunstancias, mas apenas estabelece a sua ineficácia e relação aos co-herdeiros.
Neste sentido:
Inclui o legislador o negócio como válido, conquanto ineficaz. Assim, desde que suprido o elemento que impedia a produção de efeito jurídico ao ato, passa ela a vigorar. Isto é, com a partilha o bem é reservado ao herdeiro cedente, nesse instante, a cessão produz seus regulares efeitos. [20]
E ainda, o seguinte julgado:
ANULATÓRIA DE CONTRATO DE CESSÃO DE DIREITOS HEREDITÁRIOS - INOBSERVÂNCIA DA FORMA PÚBLICA - CESSIONÁRIO INADIMPLENTE - IMPOSSIBILIDADE - ALEGAÇÃO DA PRÓPRIA TORPEZA - RESCISÃO DO CONTRATO - INADIMPLÊNCIA INEQUÍVOCA - DEVOLUÇÃO DAS PARCELAS PAGAS - DESCONTO DA CLÁUSULA PENAL - BENFEITORIAS - INEXISTÊNCIA DE PROVAS DA SUA REALIZAÇÃO. Apelação Cível n. 1.0145.04.128707-2/001, 21 ago. 2007. [...] A cessão dos direitos hereditários pode ser feita por um ou por todos os herdeiros maiores e capazes, de forma conjunta ou individual, não existindo óbice a tal ato. Trata-se apenas de uma promessa submetida a posterior adjudicação da parte cedida ao cedente, para que possa transmiti-la ao cessionário. É um ato-condição, que se transforma em perdas e danos, se não cumprido, responsabilizando apenas o cedente. [...] Ela é um ato translativo submetido à condição de que o cedente venha a receber no inventário aquele bem ou aquela cota do bem, declarando ali que tem direito ao mesmo, ato, todavia, que somente o obriga e a mais ninguém, tratando-se de obrigação de fazer, qual seja a de transferi-lo ao cessionário, quando receber o bem na partilha. (Grifou-se).
Ressalta-se, porém, que não haverá segurança absoluta para o cessionário, pois o imóvel especificado pode, inclusive, não ser transmitido para o herdeiro-cedente, posto a incerteza de alcance das forças da herança.
7.2 Cessão de direitos hereditários realizada por todos os herdeiros
Nota-se que há uma aparente lacuna nos §§ 2º e 3º do artigo 1.793 do CC, uma vez que eles retratam somente a hipótese de um único herdeiro ceder seus direitos hereditários, o qual só poderia fazê-lo sobre a quota-parte que possui na universalidade do acervo hereditário, mas nunca sobre um bem determinado, contudo não mencionou a hipótese de todos os herdeiros realizarem tal cessão.
Sendo assim, se todos os herdeiros comparecerem ao cartório e manifestarem seus interesses em ceder seus direitos hereditários sobre um bem determinado da herança, poderão fazê-lo sem nenhuma restrição, uma vez que eles podem, conjuntamente, acordar sobre o que bem entenderem no acervo hereditário, desde que maiores e capazes, decidindo, conforme sua conveniência, quem ficará com o que.
Desta forma tal acordo "significa uma espécie de pré-partilha amigável" [21], formalizada através de escritura pública de cessão de direitos hereditários, sendo esta levada ao juízo da sucessão para que, encerrado o arrolamento ou inventário, seja expedido o formal de partilha incluindo o cessionário no pagamento daquele bem especifico cedido.
Silvio Rodrigues apud Carlos Roberto Gonçalves, afirma que são aplicáveis à cessão de herança as regras concernentes ao condomínio, estabelecendo que:
Na hipótese de todos os co-proprietários desejarem fazer a venda de um bem, é a comunidade que procede à alienação, e o preço recebido, até ser dividido entre os interessados, sub-roga-se no lugar da coisa vendida, pelo principio da sub-rogação real [22].
Ora, quando se aceita dizer que são aplicadas à cessão as regras concernentes ao condomínio, deve se fazer analogia no sentido de que, se neste a comunidade pode proceder, conjuntamente, a alienação de determinado bem, naquela deve ocorrer da mesma forma, alienando seus direitos hereditários sem nenhuma restrição, desde que, como dito, sejam todos maiores e capazes.
Reafirmando a possibilidade de cessão realizada por todos os herdeiros sobre bem específico do acervo hereditário, tem-se os seguintes julgados no tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais:
CESSÃO DE DIREITOS HEREDITÁRIOS - SINGULARIZAÇÃO DE BEM - DECLARAÇÃO DE NULIDADE DO ATO PELO JUIZ MONOCRÁTICO - INTERPOSIÇÃO DE AGRAVO PELA CESSIONÁRIA - CESSÃO BENS DO ESPÓLIO, INDIVIDUALIZADOS, POR TODOS OS CO-HERDEIROS - CONCORDÂNCIA DOS CÔNJUGES - POSSIBILIDADE E VALIDADE DA CESSÃO - AUSÊNCIA DE PREJUÍZO A QUALQUER HERDEIRO. Apelação Cível n. 1.0251.07.021397-9/001, 08 jul. 2009. [...] pode-se concluir que, se os herdeiros são proprietários de todo o acervo e se, conjuntamente, cederam seus direitos sobre bem individualizado da herança, a cessão é válida porque não houve prejuízo a nenhum deles. [...] Se todos os herdeiros cedem bem individualizado, não há razão para pedir autorização judicial para ceder, se inexistem menores ou incapazes dentre os co-herdeiros. O direito à sucessão aberta é considerado bem imóvel e pode ser cedido livremente. (Grifou-se).
INVENTÁRIO - CESSÃO DE DIREITO HEREDITÁRIO - IMÓVEL ÚNICO - ANUÊNCIA DE TODOS OS HERDEIROS - POSSIBILIDADE. Apelação Cível n. 1.0024.04.192769-0/001, 26 set. 2006. O § 3º do artigo 1.793 do Código Civil, ao dispor que 'Ineficaz é a disposição, sem prévia autorização do juiz da sucessão, por qualquer herdeiro, de bem componente do acervo hereditário, pendente a indivisibilidade' se refere apenas à disposição do bem, enquanto componente do acervo hereditário, não proibindo a cessão do direito hereditário por herdeiros maiores e capazes, que constitui direito pessoal, mormente se todos anuem com a cessão. [...] a herança, mesmo sendo constituída de uma universalidade, [...] onde os herdeiros detém condomínio à sua posse e propriedade e sendo estes maiores, capazes, tendo anuindo em conjunto na sua cessão a terceiro, não há que se falar em ilicitude do ato por afronta ao ditame versado no parágrafo 3º do artigo 1793 do Código Civil, pois as regras devem ser interpretadas segundo a sua finalidade, e neste caso não tendo sido afronta ao direito de herdeiro, co-herdeiro ou interesse de menor, não há razão plausível para o magistrado fulminar o ato, em respeito ao princípio da operacionalidade do direito. (Grifou-se).
Portanto, comparecendo todos os herdeiros ao ato de alienação, não haveria interessados em reclamar eventuais prejuízos sofridos por este ato jurídico, sendo assim não será afetada pela ineficácia estabelecidas nos §§ 2º e 3º do artigo 1.793 do CC.
CONCLUSÃO
Como demonstrado, com o evento morte, todos os bens e haveres, bem como as dividas e obrigações do de cujus, transferem-se aos seus herdeiros, legítimos ou testamentários. Com isso, surge a possibilidade de, antes ou depois de iniciado o inventário, cederem os seus direitos sobre esses bens, denominado cessão de direitos hereditários.
Com o advento do CC de 2002, foram introduzidas, no sistema normativo brasileiro, as regras concernentes à cessão de direitos hereditários (artigos 1.793 e ss.), tema não abordado pelo antigo Código (1916), deixando, no entanto, lacunas a serem preenchidas por entendimentos jurisprudenciais e doutrinários, principalmente no tocante à cessão de bens individualizados da herança.
Diante de todo o exposto, conclui-se no sentido de que, embora os dispositivos concernentes à cessão de herança tratem como ineficaz a cessão realizada por um único co-herdeiro sobre bem individualizado, não se vê restrição em assim proceder, caso o cessionário seja alertado dos riscos, uma vez que os tribunais vem considerando o ato existente e válido, embora sua eficácia fique sujeita a aprovação futura, ou seja, que o bem cedido se reserve ao herdeiro cedente, e, por conseqüência, ao cessionário, no momento da efetivação da partilha.
Conclui-se ainda que, diante da deficiência de redação dos §§ 2º e 3º do artigo 1.793 do CC, surgiu uma lacuna que vem sendo preenchida por entendimentos doutrinários e jurisprudenciais, ficando clara a possibilidade de que, se todos os herdeiros desejarem ceder seus direitos hereditários sobre um bem específico da herança poderão fazê-lo, sem nenhum óbice, uma vez que os referidos dispositivos trataram somente da ineficácia caso um único co-herdeiro assim o fizer.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, José Luiz Gavião de. Código civil comentado. São Paulo: Atlas, 2003. v. 18.
BRASIL. Código Civil. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2002.
______. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 2007.
COSTA MACHADO, Antônio Cláudio da. Código civil interpretado: artigo por artigo, parágrafo por parágrafo. 3 ed. Barueri-SP: Manole, 2010.
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das sucessões. 19 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005. v.6.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: direito das sucessões.2. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. v.7.
GUIMARÃES, Deocleciano Torrieri. Dicionário técnico jurídico. 9 ed. São Paulo: Rideel, 2007.
MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Anulatória de contrato de cessão de direitos hereditários - inobservância da forma pública - cessionário inadimplente - impossibilidade - alegação da própria torpeza - rescisão do contrato - inadimplência inequívoca - devolução das parcelas pagas - desconto da cláusula penal - benfeitorias - inexistência de provas da sua realização. Apelação Cível n. 1.0145.04.128707-2/001. Relator Des. Antônio de Pádua. TJMG. Belo Horizonte, MG. DJ. 21 ago. 2007. Disponível em: <http://www.tjmg.jus.br/juridico/jt_/inteiro_teor.jsp?tipoTribunal=1&comrCodigo=145&ano=4&txt_processo=128707&complemento=1&sequencial=0&palavrasConsulta=Cess%E3o%20de%20direitos%20heredit%E1rios&todas=&expressao=&qualquer=&sem=&radical=>. Acesso em: 17 maio 2010.
MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Cessão de direitos hereditários - singularização de bem - declaração de nulidade do ato pelo juiz monocrático - interposição de agravo pela cessionária - cessão bens do espólio, individualizados, por todos os co-herdeiros - concordância dos cônjuges - possibilidade e validade da cessão - ausência de prejuízo a qualquer herdeiro. Apelação Cível n. 1.0251.07.021397-9/001. Relator Des. Fernando Caldeira Brant. TJMG. Belo Horizonte, MG. DJ. 08 jul. 2009. Disponível em: <http://www.tjmg.jus.br/juridico/jt_/inteiro_teor.jsp?tipoTribunal= 1&comrCodigo=251&ano=7&txt_processo=21397&complemento=1&sequencial=0&palavrasConsulta=cessão de direitos hereditários por todos os herdeiros&todas &expressao=&qualquer=&sem=&radical=>. Acesso em: 12 abr. 2010.
MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Inventário - cessão de direito hereditário - imóvel único - anuência de todos os herdeiros - possibilidade. Apelação Cível n. 1.0024.04.192769-0/001. Relatora Desª. Vanessa Verdolim Hudson Andrade. TJMG. Belo Horizonte, MG. DJ. 26 set. 2006. Disponível em: <http://www.tjmg.jus.br/juridico/jt_/ inteiro_teor.jsp?tipoTribunal=1&comrCodigo=24&ano=4&txt_processo=192769&complemento=1&sequencial=0&palavrasConsulta=INVENTÁRIO CESSÃO DE DIREITO HEREDITÁRIO IMÓVEL ÚNICO ANUÊNCIA DE TODOS OS HERDEIROS POSSIBILIDADE&todas=&expressao=&qualquer=&sem=&radical=>. Acesso em: 12 abr. 2010.
NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado. 4. ed. rev. atual. e ampl.. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. 17º Câmara Cível. Aquisição de direitos hereditários sobre imóvel - pretensão de adjudicação pelo cessionário - negócio efetivado sem qualquer formalidade ausência de instrumento público - indeferimento do pleito pelo juízo do inventário - convolação de julgamento em diligência - reconhecimento do direito pelo cedente, mediante afirmação por termo nos autos do inventário - regularização formal da cessão - adjudicação do bem em favor do cessionário. Apelação Civil n. 0000008-34.1985.8.19.0022. Des. Edson Vasconcelos. TJRJ. Rio de Janeiro. DJ 28 fev. 2007. Disponível em: <http://www.tjrj.jus.br/scripts/weblink.mgw>. Acesso em: 12 abr. 2010.
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: direito das sucessões. 5.ed. São Paulo: Atlas, 2005. v. 7.
Notas
- DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das sucessões. 19 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005. v.6, p. 39.
- COSTA MACHADO, Antônio Cláudio da. Código civil interpretado: artigo por artigo, parágrafo por parágrafo. 3 ed. Barueri-SP: Manole, 2010. p. 1.451.
- GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: direito das sucessões.2. ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. v.7, p. 38.
- DIINIZ, 2005, v.6, p. 81.
- GUIMARÃES, Deocleciano Torrieri. Dicionário técnico jurídico. 9 ed. São Paulo: Rideel, 2007, p. 515.
- Ibidem, p 47.
- LEITE apud GONÇALVES, 2007, v. 7, p. 40.
- VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: direito das sucessões. 5.ed. São Paulo: Atlas, 2005. v. 7. p. 44.
- GONÇALVES, 2007, v. 7, p. 32.
- NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado. 4. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 970.
- VENOSA, 2005. v. 7. p. 46.
- NERY JÚNIOR; NERY, op. cit., p. 970.
- GONÇALVES, 2007, v. 7, p. 39
- NERY JÚNIOR; NERY, 2006, p. 972
- NERY JÚNIOR; NERY, 2006, p. 972.
- Ibidem, loc. cit.
- GONÇALVES, 2007, v. 7, p. 41
- GONÇALVES, 2007, v. 7, p. 37.
- GONÇALVES, 2007, v. 7, p. 39.
- ALMEIDA, José Luiz Gavião de. Código civil comentado. São Paulo: Atlas, 2003. v. 18, p. 48.
- NERY JÚNIOR; NERY, 2006, p. 971.
- RODRIGUES apud GONÇALVES, 2007, v. 7, p. 34.