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O Direito Agrário e o princípio democrático

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Júlio da Silveira Moreira
Júlio da Silveira Moreira
26/09/2010 às 20:32
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5. O papel do Direito Agrário na transformação democrática

Já ficou demonstrado que, para alcançar seus princípios, o Direito Agrário não pode ser concebido nos limites da legalidade estatal, e que a Política Agrária do Estado brasileiro, fundada na monocultura para exportação, é um entrave lógico a uma reforma agrária no sentido próprio desta expressão. Portanto, não haverá transformação democrática na questão agrária senão pela luta dos movimentos populares pela terra independentemente da legalidade estatal.

O sociólogo Alberto Passos GUIMARÃES (1989, p. 38), que deixou contribuição inestimável ao pensamento social brasileiro, já pugnava que

A redistribuição da terra, a divisão da propriedade latifundiária não é uma simples operação aritmética, uma reparação de injustiças ou uma medida de assistência social. Uma reforma agrária democrática tem um alcance muito maior: seu objetivo fundamental é destruir pela base um duplo sistema espoliativo e opressivo; romper e extirpar, simultaneamente, as relações semicoloniais de dependência ao imperialismo e os vínculos semifeudais de subordinação ao poder extra-econômico, político e "jurídico" da classe latifundiária. E tudo isso para libertar as forças produtivas e abrir novos caminhos à emancipação econômica e ao progresso do nosso país (grifo nosso).

Hodiernamente, pode-se constatar que existe uma sistematização substancial do caminho para a transformação da realidade brasileira, sem sucumbir aos limites fatais da Política Agrícola estatal. Trata-se do "Programa Agrário para uma transformação radical no campo", apresentado pelo movimento social Liga dos Camponeses Pobres, a ser realizado pela aliança com o movimento operário e com os setores progressistas da sociedade. Cabe aqui transcrever, na íntegra, seus fundamentos, porque se tratam de uma síntese muito esclarecedora do caminho da chamada Revolução Agrária (apud DE PAULA, 2006):

1. destruição do latifúndio e entrega das terras aos camponeses pobres sem terra ou com pouca terra;

2. libertação das forças produtivas do campo nas áreas tomadas do latifúndio, através da eliminação de todas as relações de produção baseadas na exploração do homem com a adoção de formas cooperadas. A organização em formas associativas das parcelas em diferentes níveis de cooperação segundo sua experiência, desde os Grupos de Ajuda Mútua, forma elementar a formas superiores de cooperação, passando por outros níveis de formas cooperativas. Adoção de meios de produção e instrumentos de trabalho mais avançados e das técnicas mais modernas.

Organização do sistema de produção, distribuição, comercialização, abastecimento e troca entre as diversas áreas e regiões, da infra-estrutura como armazéns, transporte, estradas, pontes, saneamento básico, etc.

3. organização e exercício do Poder político das massas nas áreas tomadas. Organização das diversas formas da participação das massas nos diferentes níveis para a tomada de decisões e do seu auto-governo (Assembléia Popular e o Comitê Popular). Organizar a vida cultural, suas diversas manifestações. Organizar o sistema de autodefesa de massas. Organizar a nova Escola Popular baseada nos três princípios de estudar, trabalhar e lutar (investigação científica, produção e luta de classes) para liquidar o analfabetismo e promover a elevação do conhecimento científico e técnico de todos. Organizar um sistema popular de saúde preventiva e curativa (policlínicas).

4. expropriação das grandes empresas de capital monopolista no campo imediatamente passando sua gestão e produção ao controle dos trabalhadores dessas próprias empresas, na condição de patrimônio do povo trabalhador.

Munido de tal programa, o movimento camponês brasileiro reencontra seu lastro histórico, mediante ações concretas que materializam os princípios sistematizados no Direito Agrário.


6. O papel do jus-agrarista

LARANJEIRA, ao final de sua exposição mencionada alhures (2002,.p. 27), conclui que

O que ela [a doutrina agrária] mais precisa contar, a esta altura, é com o aumento de novos prosélitos e assegurar-se da certeza de que é, de fato, constituída por juristas que sabem manusear o arcabouço jurídico-agrário já existente na sua pátria e que têm um potencial de colaboração para mais um salto de qualidade dele, pois a maior inspiração está aí, em frente a seus olhos e emoções – a própria realidade brasileira que vivenciam (grifo nosso).

Diferentemente de outras áreas do Direito, a maioria das pessoas que se dedicam ao Direito Agrário possuem preponderantemente uma preocupação científica e social, antes de se preocuparem com o prestígio e o enriquecimento. Até porque, se o Direito Agrário tem a defesa dos pobres do campo como razão de existir de maneira desvinculada dos princípios tradicionais do Direito Civil, então não há espaço para a defesa do latifúndio, a menos quando os princípios do Direito Agrário são prostituídos de modo que essa defesa seja justificada neles, o que todavia não encontra sustentação.

Portanto, a geração de agraristas a que se refere LARANJEIRA é formada de advogados, professores e demais profissionais do Direito Agrário comprometidos com a ciência a serviço do povo e do desenvolvimento nacional, sem amarras econômicas e ideológicas às classes sociais dominantes e conservadoras, sobretudo ao latifúndio velho ou novo (agronegócio).

É de se concluir que o mais importante na atuação do jus-agrarista é a consciência e assumimento do seu papel transformador na sociedade. Ou seja, que o profissional do Direito Agrário seja um vetor de força da tão esperada (e retoricamente prometida pelos diversos governos) justiça nos campos brasileiros.


7. Conclusão

Diferentemente de outros ramos do direito, o Direito Agrário traz em seu bojo valores progressistas, relacionados às transformações estruturais e possíveis na sociedade brasileira. Evidentemente, não está privado da confrontação de posições antagônicas, todavia a grave realidade social agrária do país não pode ser ocultada.

A solução dos conflitos agrários não é uma questão meramente de vontade, portanto a abordagem do assunto se faz necessária, de modo que os gritos de justiça do povo da terra são ecoados nos círculos acadêmicos e institucionais.

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Cabe aos jus-agraristas comprometidos com as classes populares colaborar para um novo salto de qualidade no arcabouço jurídico-agrário pátrio, seguindo o caminho das transformações democráticas conseqüentes na medida em que não se limitam à legalidade estatal como referência para a constituição de direitos.


8. Referências

BORGES, Paulo Torminn. Institutos básicos do Direito Agrário. 10. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 1996.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.

BRASIL. Lei n. 4.504 de 30 de novembro de 1964. Dispõe sobre o Estatuto da Terra, e dá outras providências. Subchefia para Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República. Brasília. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L4504.htm>. Acesso em: 24 jun. 2007.

CINTRA JÚNIOR, Dyrceu Aguiar Dias. Direitos humanos e função social da propriedade: o papel do Judiciário. In: STROZAKE, Juvelino José (Org). A questão agrária e a justiça. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2000. p. 292-302.

Coelho, Marcos Amorim. Geografia do Brasil. São Paulo: Moderna, 1996.

CUNHA, Sérgio Sérvulo da. A nova proteção possessória. In: STROZAKE, Juvelino José (Org). A questão agrária e a justiça. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2000. p. 249-276.

DE PAULA, Mário Lúcio. Finalmente, o congresso operário (parte II). A Nova Democracia. Rio de Janeiro: Ano V, n. 30, jul. 2006. Disponível em: <http://www.anovademocracia.com.br/30/12.htm>. Acesso em: 24 jun. 2007.

GUIMARÃES, Alberto Passos. Quatro séculos de latifúndio. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. (3. ed. em 1963).

HASHIZUME, Maurício. Relatório revela explosão de mortes por causas indiretas em 2005. Agência Carta Maior. São Paulo, 18 abr. 2006. Disponível em: <http://www.agenciacartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=10645>. Acesso em: 24 jun. 2007.

LARANJEIRA, Raymundo. O Estado da Arte do Direito Agrário no Brasil. Associação Brasileira de Direito Agrário. Goiânia: 2002. Disponível em: <http://www.abda.com.br/texto/RaymundoLaranjeira.pdf>. Acesso em 24 jun. 2007.

MARQUES, Benedito Ferreira. Direito Agrário Brasileiro. 6. ed. Goiânia: AB, 2005.

MARQUES, Benedito Ferreira. Justiça agrária, cidadania e inclusão social. In: BARROSO, L. A.; MIRANDA, A. L.; SOARES, M. L. Q. O direito agrário na Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

PINTO, João Batista Moreira. A ação instituinte dos novos movimentos sociais frente à lei. In: ARRUDA JR., Edmundo Lima de (org.). Lições de direito alternativo. Vol. 2. São Paulo: Acadêmica, 1992.

RIBEIRO, Roberto Luiz. A autonomia do direito agrário. In: Revista Goiana de Direito Agrário. Goiânia, Renascer, 1997.

SOUSA, Ana Lúcia Nunes de. Negócios de bandidos e os interesses do povo. A Nova Democracia. Rio de Janeiro: Ano V. n. 33, fev. 2007. Disponível em: <http://www.anovademocracia.com.br/33/14.htm>. Acesso em: 24 jun. 2007.

SOUZA JR., José Geraldo de. Movimentos sociais: emergência de novos sujeitos: o sujeito coletivo de direito. In: ARRUDA JR., Edmundo Lima de (Org). Lições de direito alternativo. São Paulo: Acadêmica, 1991. v. 1.

VARELLA, Marcelo Dias. Introdução ao direito à reforma agrária. O direito face aos novos conflitos sociais. Leme-SP: Editora de Direito, 1997.

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Sobre o autor
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Júlio da Silveira Moreira

Advogado. Pós-graduando na Universidade Federal de Goiás (UFG). Vice-presidente da Associação Internacional dos Advogados do Povo (International Association of People's Lawyers (IAPL).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOREIRA, Júlio Silveira. O Direito Agrário e o princípio democrático. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2643, 26 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17491. Acesso em: 2 nov. 2024.

Mais informações

Artigo apresentado no curso de Especialização em Direito Agrário da Universidade Federal de Goiás (UFG).

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