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Considerações sobre a dialética tratado-costume e o desenvolvimento progressivo no direito dos investimentos internacionais

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14/10/2010 às 08:42
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7. A Solução de Controvérsias relativas a Investimentos Internacionais

Por fim, a quarta série de dispositivos presentes nos TBIs visa assegurar a efetividade das cláusulas previstas, por meio de um mecanismo compulsório de solução de controvérsias entre Estado hospedeiro e investidores. O afastamento das concepções clássicas de solução de controvérsias em matéria de investimento internacional constitui uma das características mais marcantes do direito internacional econômico. Até mesmo os TBIs concluídos a partir do final da década de oitenta pelos países da América Latina contam com cláusulas de solução de controvérsias desse tipo. Resta saber se esse mecanismo entre Estado e investidor não foi concebido para acomodar os interesses particulares das empresas transnacionais face ao interesse geral representado pelos Estados.

Em matéria de solução de controvérsias, os Estados são cautelosos quanto a sua liberdade de ação, como prova sua desconfiança com relação à cláusula facultativa de jurisdição obrigatória da Corte Internacional de Justiça. Ademais, as controvérsias suscetíveis de surgir no contexto dos investimentos internacionais não são exclusivamente comerciais, ao contrário, muitas vezes dizem respeito a questões políticas do país hospedeiro, envolvendo interesses públicos importantes e diversos. Assim, faz-se necessário assegurar que o mecanismo de solução de controvérsias entre Estado e investidor não constitua uma grave ameaça à soberania nacional em matéria de regulamentação ambiental, social e outras, servindo para acomodar os interesses particulares das empresas transnacionais face ao interesse geral representado pelos Estados.

Normalmente, o artigo destinado à solução de controvérsias entre Estado e investidor dispõe que, em seguida de negociações infrutíferas, as Partes submeterão o litígio a um tribunal arbitral, seja ad hoc, seja institucional. Nesse último caso, o ICSID desempenha papel essencial. O ICSID deve seu papel à vontade do Banco Mundial de promover os investimentos no Terceiro mundo, controlando o poder jurisdicional do Estado em relação aos investidores internacionais.

Ora, em primeiro lugar, essa cláusula contraria o princípio consagrado no direito internacional desde o século XIX, relativo ao esgotamento dos recursos internos [16], e segundo o qual o Estado deve ter a oportunidade de reparar o ato ilícito e o dano dele decorrente, no âmbito de seu sistema jurídico nacional, antes que se possa questionar sua responsabilidade no plano internacional. A renúncia a essa prerrogativa pode resultar na internacionalização do regime jurídico dos investimentos. Em segundo lugar, a possibilidade do investidor estrangeiro de recorrer a arbitragem internacional contra o Estado hospedeiro colocaria em condições de igualdade dois sujeitos absolutamente desiguais: um Estado, dotado de personalidade jurídica internacional e que visa o interesse público, e um sujeito de direito interno, que visa um interesse lucrativo particular. Em terceiro lugar, resta saber se esse privilégio concedido ao investidor estrangeiro não vai de encontro ao tratamento nacional, visto que o investidor nacional deverá recorrer sempre ao Poder Judiciário interno. Por fim, não há como negar que a arbitragem internacional, tal como prevista nos TBIs, contraria o princípio da soberania, que inclui necessariamente o exercício da jurisdição no território nacional.

Sabe-se que os tribunais arbitrais, de forma geral, podem aplicar um direito que escapa à ação unilateral do Estado. A cláusula que prevê o direito aplicável muitas vezes faz referência aos princípios gerais do direito ou às regras do direito internacional. No momento da negociação, a principal meta do investidor que celebra um contrato com um Estado é encontrar fórmulas jurídicas que permitam neutralizar o poder normativo do Estado co-contratante, através do "deslocamento" ou "internacionalização" desse contrato por meio de cláusulas compromissórias que evitarão a competência dos tribunais nacionais do Estado hospedeiro.

Essa é a razão pela qual encontramos nos contratos de investimento, que mediante algumas condições são chamados de "contratos de Estado", cláusulas que visam neutralizar o poder normativo do Estado contratante [17]. Para esse fim, o investidor tentará, por meio da cláusula de direito aplicável, retirar o contrato de investimento da ordem jurídica do Estado hospedeiro. Isso será feito através da previsão do direito nacional do Estado "congelado" em uma determinada data, nas chamadas "cláusulas de estabilização do direito", como direito aplicável, ou ainda através da combinação do direito do Estado com princípios de direito internacional através de fórmulas diversas, ou com princípios gerais do direito.

Todavia, e embora muito já se tenha debatido em doutrina e jurisprudência sobre a eficácia jurídica dessas cláusulas, inúmeras divergências persistem sobre a matéria. Quando existe um TBI entre o Estado hospedeiro e o Estado nacional do investidor, o respeito dos compromissos contratuais pode ser objeto de um compromisso específico do Estado hospedeiro no nível do direito internacional convencional [18]. São as chamadas umbrella clauses. Alguns autores, como Prosper Weil, consideram que diante da existência de tais tratados, as obrigações contratuais entre o Estado hospedeiro e o investidor são transformadas em verdadeiras obrigações internacionais, no sentido do direito internacional público. Pierre Mayer, ao contrário, sustenta que a natureza das relações entre as partes permanece subordinada à lex contractus, e que somente a relação interestatal é subordinada ao direito internacional. Por sua vez, Charles Leben sustenta que independentemente da teoria adotada, a violação de suas obrigações contratuais pelo Estado hospedeiro implica em uma violação, direta ou indireta, do direito internacional público [19]. Segundo ele, está-se diante da internacionalização dos compromissos contratuais assumidos pelo Estado hospedeiro, por meio dos tratados bilaterais. A sentença ICSID AAPL/Sri Lanka de 27 de junho de 1990 estabeleceu que um investidor pode se prevalecer diretamente dos compromissos assumidos pelo Estado hospedeiro vis-à-vis de seu Estado nacional em um TBI, independentemente da existência de um contrato entre o investidor e o Estado hospedeiro. Por conseguinte, se nesse tratado o Estado hospedeiro comprometeu-se a aceitar o mecanismo arbitral para resolver eventuais controvérsias com investidores, um contrato entre esse Estado e o investidor incluindo uma cláusula compromissória deixa de ser necessário. A situação seria a mesma se o Estado receptor do investimento aceitou a competência do ICSID em sua legislação nacional [20].

Considerando-se a existência de mais de 900 TBI prevendo o recurso à arbitragem ICSID ou o mecanismo adicional ICSID [21], ou ainda arbitragens ad hoc segundo o regulamento UNCITRAL, percebe-se um movimento em direção à internacionalização dos litígios relativos aos contratos de investimento. A maioria dos casos subordinados ao ICSID resulta da aceitação da arbitragem por um Estado, seja em um TBI seja em sua legislação nacional, e não em um contrato concluído com o investidor [22]. Por conseguinte, tudo indica que essa rede de TBI será, em um futuro próximo, o fundamento mais importante do contencioso entre Estado e investidor. Por outro lado, as questões relativas à nacionalização darão lugar àquelas relativas a quebras de contrato, mudanças de legislação, danos causados ao investidor por desordem local, problemas oriundos da privatização das empresas ou da legislação ambiental, entre outros [23].

Por fim, faz-se mister observar que alguns acordos plurilaterais existentes também ensejam a possibilidade de um investidor procurar uma instância arbitral, mais comumente o ICSID, para solucionar uma controvérsia com o Estado hospedeiro com quem tenha ou não uma relação contratual [24]. Disposições desse tipo estão presentes no NAFTA, no Protocolo de Colonia para a promoção e a proteção recíproca dos investimentos no âmbito do MERCOSUL, no tratado constitutivo de uma área de livre comércio entre a Colômbia, a Venezuela e o México, na Carta da Energia, que entrou em vigor em 1998, além de tratar-se da fórmula prevista no projeto AMI. Mais recentemente, essa solução está presente na Minuta de Acordo da ALCA, no artigo 15 do Capítulo sobre Investimentos.

Essa evolução traz sérios riscos para os Estados. Há que se considerar que as cláusulas de arbitragem obrigatória normalmente fazem com que as tentativas do Estado no sentido de impor uma regulamentação aos investidores possam ser questionadas, como por exemplo, em matéria de transferência de tecnologia ou em matéria de quotas de nacionais a serem recrutados pelos investidores. Segundo Brigitte Stern, arrisca-se assistir a um fenômeno de "privatização" ou até de uma "comercialização" do direito, pois a arbitragem prestada ao encontro de um Estado será uma arbitragem comercial [25]. Por conseguinte, conclui-se que a solução de controvérsias do tipo mista ou transnacional constitui grave ameaça à soberania nacional, sendo a melhor solução a retomada da concepção clássica relativa à solução de controvérsias do tipo interestatal.

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8. O Desenvolvimento Progressivo no Direito dos Investimentos Internacionais

Por outro lado, além da dialética tratado-costume, há que se falar também do fenômeno do desenvolvimento progressivo no direito internacional dos investimentos, e notadamente com relação à incidência da corrupção nas transações internacionais. Segundo a UNCTAD, a incidência da corrupção reduz o fluxo de investimentos internacionais, causando desvantagens competitivas entre as empresas, principalmente entre as pequenas e médias, e criando incertezas em relação a seus investimentos [26]. Esse fato não é sem importância para os TBIs, cujo objetivo é justamente contribuir para um ambiente estável aos investimentos internacionais.

Como já mencionado, os TBIs e alguns acordos de integração econômica estendem suas matérias tradicionais para além das questões relativas à liberalização do comércio e à proteção do investimento, prevendo direitos e benefícios para as empresas transnacionais, que podem inclusive ser reclamados em tribunais internacionais. Em revanche, os Estados poderiam considerar apropriado equilibrar os direitos e obrigações que tais instrumentos prevêem entre os países hospedeiros, as empresas transnacionais e seus países de origem. A prevenção e a proibição da corrupção transnacional poderiam ser vistas como um componente essencial dos TBIs, ao menos em termos de medidas extrapenais aplicáveis às empresas e destinadas a prevenir e a combater transações corruptas. Tais dispositivos poderiam ser formulados em termos compulsórios ou não, exigir a reciprocidade, a fim de torna-los mais flexíveis, além de que os Estados poderiam optar por estender os benefícios relativos à proteção do investimento apenas aos Estados que aceitassem tais obrigações. Ademais, a condição de reciprocidade poderia ser estendida às empresas por meio de uma cláusula de perda de benefícios, prevendo para os Estados a possibilidade de negar os benefícios decorrentes da proteção do investimento às empresas envolvidas em corrupção. A inclusão de dispositivos específicos proibindo a corrupção transnacional nos TBIs ajudaria a criar a confiança pública no sentido de que os benefícios estendidos aos investidores pela globalização seriam complementados pela cooperação internacional na prevenção do abuso das liberdades no mercado global [27].

Segundo a UNCTAD [28], existem várias opções que os negociadores de TBI poderiam considerar para o problema da corrupção transnacional.

A primeira opção e a mais comum consiste em não fazer referência aos pagamentos ilícitos. Por sua vez, a segunda opção consiste na inclusão de uma cláusula geral sobre pagamentos ilícitos como a afirmação da importância da cooperação internacional na prevenção e no combate do crime. A terceira opção consiste na inclusão de cláusulas esclarecendo os efeitos das sanções contra pagamentos ilícitos em obrigações cobertas pelos TBIs. Em decorrência de vários instrumentos internacionais, entre os quais estão a Convenção Interamericana contra a Corrupção da O.E.A. e a Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais internacionais da OCDE, os Estados assumiram obrigações no sentido de implementar leis proibindo o suborno transnacional, e de adotar medidas penais e extrapenais contra os culpados. Algumas medidas dispõem sobre a prisão dos envolvidos, incluindo investidores internacionais, outras prevêem o confisco de propriedades resultantes de atos de corrupção, ou a anulação de quaisquer direitos ou vantagens adquiridos mediante transações ilícitas. Ocorre que tais medidas poderiam ser consideradas contrárias às obrigações assumidas pelo Estado em virtude de um TBI. Por exemplo, a aplicação de uma legislação anticorrupção poderia resultar na proibição de transferência de fundos prevista em um Contrato de Estado celebrado graças ao suborno de um funcionário público. Haveria violação das obrigações assumidas no TBI nesse caso? Cabe aos Estados partes de um TBI prever as exceções à aplicação de suas legislações anticorrupção. Nesse sentido, o Capítulo sobre Investimentos da Minuta de Acordo da ALCA prevê, no artigo 9 destinado às transferências, que as Partes poderão implementar sua legislação referente a infrações criminais.

Uma quarta opção consiste em estabelecer vínculos com acordos internacionais destinados à prevenção e ao combate da corrupção transnacional, como por exemplo a incorporação de alguns dispositivos dirigidos à corrupção transnacional, ou a indicação desses dispositivos. Todavia, com o intuito de prevenir eventuais conflitos de legislação, deveria haver uma previsão de hierarquia jurídica entre esses acordos.

Por fim, a quinta opção consiste na inclusão de cláusulas substantivas sobre pagamentos ilícitos. Um exemplo desse tipo são as Diretrizes da Comunidade Caribenha (CARICOM) para uso na negociação de tratados bilaterais. Outro exemplo de circunstâncias nas quais as partes poderiam prever cláusulas substantivas relacionadas à corrupção transnacional diz respeito à cooperação internacional nas questões anticorrupção que podem surgir especificamente no contexto dos TBI. Tais dispositivos serviriam para reforçar as obrigações resultantes dos acordos anticorrupção, quando os países envolvidos fossem partes de ambos.

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Sobre a autora
Larissa Ramina

Doutora em Direito Internacional pela USP, Coordenadora do Curso de Relações Internacionais e Coordenadora Adjunta do Curso de Direito, ambos da UniBrasil, Professora de Direito Internacional e de Direitos Humanos da UniBrasil e do UniCuritiba.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RAMINA, Larissa. Considerações sobre a dialética tratado-costume e o desenvolvimento progressivo no direito dos investimentos internacionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2661, 14 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17625. Acesso em: 24 abr. 2024.

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