4. A LEI 11.343/06 COMO NOVATIO LEGIS IN MELLIUS
Analisar a adoção da Nova Lei de Drogas aos casos praticados anteriormente à sua vigência parece assunto de difícil resolução. Devido às causas de diminuição de pena do §4º do art. 33 da Lei 11.343, reacendeu-se discussão quanto à possibilidade, ou não, da combinação de partes de duas leis diferentes para a aplicação ao caso concreto, bem como foram colocadas em voga as formas de resolução de conflitos de leis penais no tempo, destacando a grande dificuldade em determinar qual das duas normas - a antiga ou a nova - é a mais benéfica ao réu.
4.1 CONSIDERAÇÕES SOBRE A COMBINAÇÃO DE LEIS
A doutrina e a jurisprudência divergem muito quanto à possibilidade, ou não, da combinação de leis quando da sua aplicação ao caso concreto.
Chama-se de lex tertia a combinação de leis, consistente na aplicação das partes benéficas das leis, no intuito de favorecer o réu. Baseado no princípio do tempus regit actum, o magistrado aplicaria o preceito benéfico da primeira cumulado com a parte favorável da posterior, com fulcro no postulado da retroatividade da lei penal mais benéfica.
Defendem esse posicionamento renomados doutrinadores, como Cezar Bitencourt, Magalhães Noronha e José Frederico Marques. Afirmam poder ser efetuada não só a inclusão de um dispositivo de uma lei na outra, "como também a combinação de partes de dispositivos da lei anterior e posterior, considerando o sentido da garantia constitucional, que deve sobrepairar a pruridos de lógica formal" [08].
Sob o pretexto de que "quem pode o mais pode o menos", asseveram que sendo possível ao juiz aplicar a lei por inteiro, poderá aplicá-la também em parte. Não seria, assim, criação de nova lei, mas tão somente interpretação para adequação aos ditames constitucionais e penais, inerentes aos julgadores "garantistas". Portanto, o julgador estaria "apenas movimentando-se dentro dos quadros legais para uma tarefa de integração perfeitamente legítima" [09].
Em outro sentido, concordando com os ensinamentos de Nelson Hungria e Aníbal Bruno, acastela-se a impossibilidade da retroação de partes de uma lei, cumulando-se com outras, sob pena de se aceitar a figura do juiz legislador, inovando o ordenamento positivado e violando o princípio da legalidade, bem como o princípio da tripartição orgânica de Montesquieu. É inadmissível que o juiz crie leis e invada o campo exclusivo e privativo do Poder Legislativo, configurando-se como legislador positivo. O juiz monocrático pode ser legislador negativo, por meio do controle de constitucionalidade, nunca positivo.
Importante destacar, ainda, que o parágrafo único do art. 2º do Código Penal determina a retroatividade da LEI posterior que de qualquer modo favoreça o réu. O parágrafo único tratou da lei como um todo, vigente após aprovação e promulgação pelo Congresso Nacional, respeitando os devidos procedimentos legislativos, e não fazendo menção a meros dispositivos que, isoladamente, possam ser benéficos.
De fato, é licito ao juiz escolher, no confronto das leis, a mais favorável e aplicá-la em sua integridade, não em pedaços, sendo-lhe vedado criar e aplicar uma terza legge diversa, para favorecer o réu. Com os mesmo argumentos, o Supremo Tribunal Federal adota há muito a segunda teoria, afirmando veementemente que "os princípios da ultra e da retroatividade da lex mitior não autorizam a combinação de duas normas que se conflitam no tempo para se extrair uma terceira que mais beneficie o réu" [10].
Recentemente, ainda, o STF se manifestou sobre a cumulação de leis, definindo por completo a premissa a ser aplicada na interpretação do ordenamento pátrio, ao firmar que:
A busca da norma mais favorável ao acusado [...] não se dá pela conjugação de dispositivos mais benéficos em diplomas legais que se seguiram no tempo. É inadmissível a criação de um terceiro estatuto normativo para reger o caso concreto [11].
Do mesmo acórdão, extrai-se que a utilização de tais métodos de solução de conflito intertemporal, "pinçando" contrastantes dispositivos de diplomas legais diversos que se seguiram no tempo, "conjugando-os e criando um novo estatuto normativo para reger o caso concreto", é inventar lei.
Como bem definiu o relator, não há que se discutir a possibilidade da ultra-atividade e da retroatividade da lei penal mais benéfica ao réu, tanto que tal postulado está amplamente previsto na Carta Política Brasileira no seu art. 5º, XL. Pode-se, efetivamente, extrair do ordenamento o diploma mais favorável ao caso concreto. Mas, ao contrário, "pinçar o conjunto mais favorável de normas de Direito Positivo é arbitrariamente combiná-las para compor um novo modelo legal. Uma lei imaginária. E a partir desse improvisado mosaico fazer as vezes de legislador".
Por fim, conclui-se que, diante de um conflito de leis no tempo e da impossibilidade de combinação de dispositivos de normas diversas para resolvê-lo, deve o aplicador do direito buscar, dentre os parâmetros de cada caso, qual das leis em confronto deverá ser aplicada, considerando a condição de maior benignidade.
4.2 A ANÁLISE DO MAGISTRADO E A APLICAÇÃO DA PENA MAIS BENÉFICA
Sabendo que a lei só retroagirirá quando pró acusado e, partindo-se da premissa de que não poderá haver retroação de fragmentos da lei penal, ainda que a combinação seja mais favorável ao réu, por entender haver vedação legal e constitucional para tanto, devem ser analisadas as possibilidades práticas atinentes ao tema.
Ao receber o caso fático, o magistrado deverá, então, verificar em qual tipo penal o agente irá se enquadrar, antes de proceder à aplicação da pena propriamente dita, procedendo às etapas do art. 59 do Código Penal para determinar qual norma viria a ser mais vantajosa.
Havendo dúvida, será considerada mais benéfica a lei que oferecer maiores restrições ao ius puniendi estatal e que, consequentemente, ampliar o rol de direitos e garantias do indivíduo. Assim, regras que excluam figuras criminosas, que reflitam sobre culpabilidade e antijuridicidade, ou mesmo aquelas que comutem penas mais brandas ou de menor severidade, serão consideradas lex mitior.
Nessa ótica, em princípio a lei 6.368/76 seria mais branda por prever pena de 3 (três) a 15 (quinze) anos àqueles incursos no art. 12 da citada lei, contrapondo-se à pena mínima de 5 (cinco) anos e quinhentos dias-multa, previstas na Lei 11.343/06.
Contudo, a análise não se restringe à pena-base in abstracto, pois, sabidamente, outros fatores irão influenciar na sanção final a ser aplicada, como circunstâncias agravantes, reincidências, atenuantes e outras circunstâncias especiais de aumento ou de diminuição da pena.
É nesse ponto, então, que o magistrado decidirá qual lei será mais vantajosa ao réu. Sendo o caso de aproveitamento do § 4º do art. 33 da Nova Lei de Tóxicos, se aplicados os índices previstos sobre a pena-base de 5 (cinco) anos, ter-se-á penas variando entre 4 anos e 2 meses e 1 ano e oito meses e, possivelmente, a pena final ficará aquém daquela determinada no art. 12 da Lei 6.368/76, ignorando-se, ainda, a pena de multa.
Ou seja, após a projeção antecipada da dosimetria, será possível ao juiz o cálculo da pena antes de decidir qual lei justapor. Após, ainda que aplicada pena-base superior àquela da Lei Antiga ao caso concreto, será possível que, preenchidos os requisitos do § 4º do art. 33 da Nova Lei, sopesando-se as penas privativas de liberdade finais, seja caso de incidência da Lei 11.343/06 por inteiro.
Se ainda assim sobrevier dúvida, Nelson Hungria sugere o questionamento do acusado, dirimindo, com isso, eventuais dúvidas do magistrado.
4.3 APONTAMENTOS QUANTO À PENA DE MULTA
Por último, cabe comentar a pena de multa, prevista a todos os crimes capitulados na Lei 11.343/06.
O art. 43 da citada lei definiu que:
Na fixação da multa a que se referem os arts. 33 a 39 desta Lei, o juiz, atendendo ao que dispõe o art. 42 desta Lei, determinará o número de dias-multa, atribuindo a cada um, segundo as condições econômicas dos acusados, valor não inferior a um trinta avos nem superior a 5 (cinco) vezes o maior salário-mínimo.
Ao crime de tráfico previsto no art. 33 do regramento acima indicou o legislador que fosse determinado, além da pena privativa de liberdade, o pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.
Impossível passar despercebido por essa questão, considerando o aumento significativo da multa a ser imposta, antes fixada no patamar de 50 (cinqüenta) a 360 (trezentos e sessenta) dias-multa.
Ocorre que, no momento da aplicação da lei penal mais benéfica, o magistrado deverá considerar, também, a pena de multa a ser cominada. Nessa toada, havendo incidência da Lei 6.368/76, não há o que discutir. Todavia, sendo caso de aplicação do art. 33, com a causa de diminuição de pena do § 4º, da Lei 11.343/06, ensejando em pena inferior, cabe lembrar que, ainda que se tenha pena pecuniária fixada no mínimo legal, o valor da multa será, no mínimo, dez vezes superior ao previsto na Lei Antiga.
Contudo, avaliando que o tema ora debatido poderia, se acatado como empecilho, impedir a aplicação da menor pena privativa de liberdade e, sabendo que os bens jurídicos atingidos são ora a liberdade e ora o patrimônio, estima-se que deve predominar a liberdade do indivíduo. Até porque, conforme previne o art. 50 do Código Penal, a multa pode ser parcelada de acordo com as possibilidades do apenado, sendo vedada, ainda, sua conversão em pena privativa de liberdade ou restritiva de direitos.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Lei 11.343/06, mais conhecida como "Nova Lei de Drogas" surge num momento em que a violência das grandes cidades é assunto em voga. O crescente índice de criminalidade instaurado no país e, aparentemente sem previsão para regredir, alarma todos aqueles que, de certa forma, são obrigados a conviver, diariamente, com as mazelas da sociedade. O povo brasileiro vem enfrentando uma crise oriunda dos seus próprios erros, seja quando vota, quando corrompe, quando é corrompido ou, ainda, quando se posiciona de forma indiferente às desigualdades presentes em nosso país.
A desesperança gerada por baixos níveis de escolaridade e por mercados cada vez mais competitivos, que acabam por gerar mais e mais marginalizados, funciona como força propulsora de organizações criminosas, que se aproveitam da ignorância e da fraqueza de alguns para difundir suas atividades e estender seus tentáculos em todas as camadas da população.
Nessa cadeia encontramos os mais variados tipos de pessoas envolvidas, em atividades que muitas vezes surgem como única possibilidade para sobreviver com um pouco de dignidade em um mundo doente, que promove seu crescimento sobre o sofrimento de muitos. E é nesse meio que encontramos o público-alvo das leis penais: geralmente negros, pobres, analfabetos, famintos e desempregados, criminalizados por uma sociedade lombrosiana, que condena o ser, não o fazer.
Renomados doutrinadores, entre juristas, sociólogos, antropólogos, etc., defendem a minoração da atuação do direito penal, priorizando a formação do indivíduo, como solução a médio e longo prazo para a questão da criminalidade. Por outro lado os detentores do poder, com o auxílio da mídia, só fazem crescer o ódio contra os ditos criminosos e implementam, cada vez mais, normas estigmatizadoras, pregando maior rigor na punição, colocando por terra toda a história de lutas em prol das garantias e direitos fundamentais do homem.
Entre tantos absurdos legislativos, promulgou-se a Lei 11.343/06.
Inicialmente com uma boa proposta, essa lei criou, entre os crimes nela previstos, formas de se dirimir os prejuízos causados pela desesperança provocada. Aparentemente a lei adotou a Teoria da Co-Culpabilidade de Eugênio Zaffaroni, atingindo diretamente a culpabilidade dos incidentes em crimes de tráfico ilícito de entorpecentes, repassando à comunidade parte da culpa pela formação de seus criminosos e dirimindo as penas aplicadas, de acordo com o envolvimento e a reprovabilidade das condutas praticadas.
Nesse sentido, dentro das limitações constitucionais e infraconstitucionais vigentes, entende-se ser necessária a aplicação, quando em benefício do réu, das causas de diminuição de pena previstas no art. 33, § 4º, da Lei 11.343/06. Trata-se de um meio de diferenciar o traficante contumaz do ocasional, de acordo com os prejuízos à sociedade por eles provocados.
Trata-se de conceder ao indivíduo o que é seu por direito, não de proporcionar regalias.
Respaldando-se nas leis e nos princípios, havendo possibilidade de retroação do art. 33, § 4º, da Nova Lei de Drogas, com penas aplicáveis inferiores àquelas previstas na legislação anterior e, considerando vedada a combinação de leis, deverão os magistrados, portanto, aterem-se a tais pressupostos. Dessa forma, seriam aplicadas penas mais brandas a indivíduos menos lesivos, que apesar de envolvimentos anteriores com a criminalidade ainda podem ser recuperados e ressocializados, como meio de garantir a aplicação do princípio da igualdade.
Por fim, como preconiza Zaffaroni, "la carga de reproche que deve restársele a quien padece una carencia social, debe cargala la sociedad que motiva esa carencia y no el carenciado que no puede proveer a su superación" [12].
6. REFERÊNCIAS
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______________. Legislação Penal Especial. São Paulo: Ed. Damásio de Jesus, v.2, 5. ed., 2006.
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Notas
- Apud FRAGOSO, pág. 2.
- GONÇALVES, Danielle.
- CAPEZ, 2005, pág. 49.
- Idem.
- AI 177.313, Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 18-6-96, DJ de 13-9-96.
- MARTINS, p. 476.
- Retirado de http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u26216.shtml
- DUCCINI, Clarence.
- MARQUES, 1954.
- STF, HC 68416/DF, Rel. Min. Paulo Brossard, julgado em 8.9.1992
- STF, Ext 925/PG, Rel. Min. Carlos Britto, julgado em 10.8.2005
- ZAFFARONI, p. 59.