Artigo Destaque dos editores

Teoria da guerra justa.

Aspectos ético-jurídicos e político-filosóficos do Direito da Guerra

Exibindo página 2 de 3
Leia nesta página:

5.Considerações Finais

A Teoria da Guerra Justa apresenta-se, em seu próprio auto-retrato, como uma tentativa de ponderação, determinando as motivações para o emprego da violência institucionalizada e os procedimentos e técnicas para tal prática. Se o seu propósito de regular a guerra pode ser interpretado como nobre e mesmo idealista, as críticas à concepção da Doutrina da Guerra Justa são arrasadoras.

Historicamente, como asseveramos, o corpo teórico da Guerra Justa esteve atrelado ao seu berço europeu e consolidou-se como projeto jurídico e filosófico para enfrentar "o outro", a saber, os índios em toda a América, as sociedades na África e os povos "maometanos" no Oriente Médio, todos descritos como bárbaros incivilizados. Em um campo sociológico e filosófico, a Teoria da Guerra Justa mostrou-se como etnocêntrica/eurocêntrica, favorecendo sua aplicação (i) apenas no encontro entre europeus, (ii) incluindo de forma seletiva-discriminatória o Outro, Outro esse cujas ações são abrangidas pelo universalismo apenas para a aplicação de sanções ou para denunciar sua violação de direitos humanos e nunca abarcado para extensão de benefícios do Direito Internacional.

Nesse sentido, a despeito das boas intenções de certos teóricos que possam pensar no emprego seletivo da Doutrina da Guerra Justa para criminalizar as operações militares ao longo do mundo, há que se ter o alerta: a denunciação da violência desmedida, desproporcional e com nítidos propósitos de domínio político-econômico empreendida por agentes hegemônicos no sistema internacional, embora admirável trabalho intelectual, tem uma forte disposição a perder-se, de forma inócua, enquanto formulação discursiva incapaz de fazer frente ao poderio militar. O "Outro", a contraparte do colonizador europeu, na Teoria da Guerra Justa, é tocado pelo universalismo etnocêntrico para a inculpação e criminalização. Esse nexo da Teoria da Guerra Justa com o colonialismo é ignorado pela historiografia predominante e atualiza-se nas contemporâneas relações internacionais.

Basta ver que, outrora, a Martens Clause, colocada no bojo da "1ª Conferência Para a Solução Pacífica de Disputas Internacionais", em Haia (1899), instituíra que, no silêncio de disposições expressas do Direito da Guerra, aplicar-se-iam "os princípios do Direito Internacional, que são resultado dos usos estabelecidos entre as nações civilizadas" (g. n.). Vinte e nove anos depois, o "Protocolo para a proibição do uso de gases asfixiantes e de métodos bacteriológicos na guerra", em Genebra (1928), repetiu a fórmula, declarando que essas precitadas técnicas de combate "foram corretamente condenadas pela opinião geral do mundo civilizado [17]" (g. n.). Posteriormente, o Estatuto da Corte Internacional de Justiça (art. 38, "c"), formulado na década de 1940, estipulara, como fonte de direito, "os princípios gerais do direito reconhecidos pelas nações civilizadas [18]" (g. n.). Finalmente, a "Convenção (I) para a melhoria das condições dos feridos e doentes nas forças armadas em campo [19]", novamente em Genebra (1949), refere-se, no art. 3º (1), às "garantias judiciais que são reconhecidas como indispensáveis pelos povos civilizados [20]". Assim, a exclusão do outro das práticas do Direito Internacional não chega a ser novidade, estando consignados em seus variados documentos que se tratava de um conjunto normativo cujos critérios de aplicabilidade e efetividade eram para "a sociedade de nações civilizadas [21]", e não para os bárbaros.

Conquanto tenha havido forte questionamento da forma colonialista das Relações Internacionais, iniciado no nítido enfrentamento às práticas imperialistas, pela Conferência de Bandung, em 1955, materializado na "Declaração Concedendo a Independência aos Países e Povos Colonizados – Resolução 1514 (XV)" (14 de dezembro de 1960), da Assembléia Geral da ONU e, ao fim, positivado no "Protocolo Adicional à Convenção de Genebra" (1977), alterando significativamente as disposições do Direito Internacional e as formas de se produzir teoricamente a Doutrina da Guerra Justa, nota-se que foi do encontro com o "Outro" e das formas de dominação, que esse corpo teórico desenvolveu-se.

A Conferência de Bandung (1955) repudiou claramente o colonialismo. Já a Resolução 1515 (de 1960) alçou o direito à autodeterminação à posição central do Jus in Bello, interditando o uso de força contra-revolucionária. Assim ("4" da Declaração) "toda ação armada ou medidas repressivas de todas as formas dirigidas contra povos dependentes deve cessar com o objetivo de permiti-los exercitar pacificamente e livremente o direito à completa independência e à integridade de seus territórios nacionais deve ser respeitada [22]". Convém nomear alguns dos países que não votaram na aprovação da resolução, se abstendo: África do Sul, Bélgica, Espanha, EUA, França, Portugal e Reino Unido. Obviamente, tratam-se dos grandes beneficiários e ideólogos da expansão e dominação colonial-racista. A questão do colonialismo foi trazida também na "Declaração de Princípios de Direito Internacional sobre Relações amigáveis e cooperação entre os Estados", da Assembléia Geral da ONU (A/RES/25/2625 em 1970 in Brownlie, 1983), quando se consignou que o colonialismo (qualificado como a "sujeição dos povos à subjugação estrangeira, dominação e exploração") era incompatível com os princípios da igualdade e autodeterminação e, portanto, contrário à Carta da ONU (MIGUEL, 2010b). Finalmente, o "Protocolo Adicional" de Genebra assinalou a extensão da proteção às populações civis "em conflitos armados em que povos estejam lutando contra a dominação colonial, ocupação estrangeira e regimes racistas no exercício de seu direito à autodeterminação (...) [23]" (art. 1º, "4", 1977), reconhecendo o problema e ampliando as garantias a esses combatentes.

Desses elementos trazidos, vê-se que a Teoria da Guerra Justa foi, ao longo dos séculos, um continuum resultante do embate com o colonizado. No mesmo esteio, temos a reutilização do discurso da Guerra Justa contra o Outro, propagado na ideia do choque de civilizações, no enfrentamento contra o terrorismo pós-11/09/2001 e na promessa de libertação dos oprimidos nas periferias do capitalismo mundial, notadamente, no Afeganistão, Iraque e, recentemente, Irã, configurando-se, de fato, um retrocesso nas interdições do uso da força nas relações internacionais. No atual contexto histórico-social, se atualizam as formas descritivas do não-europeu, em freqüente repetição de seu caráter bárbaro, não podendo haver momento de diálogo ou compreensão, lidando com a diferença por meio da violência militar. Como defendemos em outra oportunidade,

"[o] conceito do "outro incivilizado" pode ser sido substituído por um atrativo/assustador termo com o "terrorista" ou pela definição jurídica de "combatente ilegal" – como que se o uso de violência "lícita" fosse um privilégio do "civilizado" nós [24]" (MIGUEL, 2010a).

Se a barbárie do "Outro" não é mais admitida como justa causa para a guerra, a indeterminada terminologia da "guerra contra o terrorismo" cumpre o seu papel de substituto para a institucionalização de formas de controle e domínio face aos novos paradigmas e necessidade do colonialismo. E, contra o terrorismo, já se demonstrou que são aceitáveis as modalidades anteriormente banidas do Jus in Bello, como a tortura, encarceramento sem o devido processo legal e a ampla defesa e que, qualquer uso de força contra o "terrorista" será admitido como proporcional. Evidentemente, tenta-se encobrir, de forma deliberada ou inconsciente, o caráter colonizador e etnocêntrico da mission civilisatrice contida nos postulados ético-jurídicos da Doutrina da Guerra Justa, no exato momento de exacerbado unilateralismo estadunidense.


Referências

Avalon Project. Convention (I) for the Amelioration of the Condition of the Wounded and Sick in Armed Forces in the Field (August 12, 1949). Yale Law School, s. d. Disponível em < http://avalon.law.yale.edu/20th_century/geneva05.asp>. Acesso em 15/12/2010.

Avalon Project. Convention (I) For The Pacific Settlement of International Disputes (Hague I) (29 July 1899). Yale Law School, 1968. Disponível em <http://avalon.law.yale.edu/19th_century/hague01.asp>. Acesso em 15/12/2010.

Avalon Project. Protocol for the Prohibition of the Use in War of Asphyxiating Gas, and of Bacteriological Methods of Warfare (8 February 1928). Yale Law School, s.d. Disponível em <http://avalon.law.yale.edu/20th_century/geneva01.asp>. Acesso em 15/12/2010.

ANGHIE, Antony. The Evolution of International Law: colonial and postcolonial realities. Third World Quarterly. v. 27, n. 5, pp-739-753, 2006.

BEST, Geoffrey. War & Law. Oxford: Clarendon Press, 1994.

BROWNLIE, Ian. International law and the use of force by states. Oxford: Clarendon Press, 1963.

BROWNLIE, Ian (ed.). Basic documents in International Law. Oxford: Oxford University Press, 1983

DRAPER, G. Grotius’ place in the development of legal ideas about war. pp. 177-208. InBull, H.; Kingsbury, B.; Roberts, A. (eds.). Hugo Grotius and International Relations. Oxford: Clarendon Press, 2002.

FITZPATRICK, Peter. Latin Roots: Imperialism and the Making of Modern Law. CLAVE: A Counter-disciplinary Journal of Race, Culture and Power. Disponível em <http://www.clave.org/latinroots.pdf>. Acesso em 15.12/2010.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

FOTION, Nicholas & ELFSTROM, Gerard. Militaryethics: guidelines for peace and war. Boston, Mass; London: Routledge & Kegan Paul, 1986.

GREEN,Leslie C. The contemporary law of armed conflict. 2nd edition.  Manchester and New York: Manchester University Press, 1999.

ICRC (International Committee of the Red Cross). Protocol Additional to the Geneva Conventions of 12 August 1949, and relating to the Protection of Victims of International Armed Conflicts (Protocol I) (8 June 1977). Disponível em < http://www.icrc.org/ihl.nsf/FULL/470?OpenDocument>. Acesso em 15.12.2010.

KENNEDY, David. Modern war and modern law. Pp. 173-194. University of Baltimore Law Review. V. 36, n. 2, Winter, 2007

KENNEDY, David. The dark sides of virtue: reassessing international humanitarianism. New Jersey: Princeton University Press, 2004.

KOLB, Robert. Origin of the twin terms jus ad bellum/jus in bello. International Review of the Red Cross. N. 320, pp. 553-562, 1997.

KOSKENNIEMI, Martti. Occupied zone. Israel Law Review. v. 41, pp. 13-40, 30.10.2008.

MAY, Larry. War crimes and just war. New York: Cambridge University Press, 2006.

MIGUEL, Vinicius Valentin Raduan. Jus in Bello and Just War Theory: The War on Gaza. Dissertação (Mestrado em Direitos Humanos e Política Internacional, Universidade de Glasgow). Glasgow, Escócia, 2009.

______. Orientalism, Imperialism and International Law. America Latina en Movimento, 23 mar. 2010. Disponível em <http://alainet.org/active/36919&lang=es>. Acesso em 15.12.2010a.

______. Orientalismo e o Direito Internacional. Relações internacionais, eurocentrismo, colonialismo e a imagem do árabe-palestino durante o conflito em Gaza (2008-2009). Jus Navigandi. Teresina, ano 15, n. 2706, 28 nov. 2010. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/17938>. Acesso em: 16 dez. 2010b.

O’BRIEN, William. The conduct of just and limited war. New York: Praeger, 1981.

O’DRISCOLL, Cian. Renegotiation of the Just War Tradition and the Right to War in the Twenty-First Century. New York: Palgrave Macmillan, 2008.

OETER, S. Methods and means of combat. pp. 105-208. In Fleck, Dieter. [ed.]. The handbook of international humanitarian law. 2nd ed. Oxford: Oxford University Press, 2008.

ONU. Carta da ONU. [1945]. Disponível em <http://www.onu-brasil.org.br/doc4.php>. Acesso em 13/12/2010.

OREND, B. MichaelWalzer on War and Justice. Cardiff: University of Wales Press, 2000.

PASHUKANIS, Evgeny. Direito Internacional. Marxists Internet Archive. Traduzido por Vinicius Valentin Raduan Miguel. [1925] Disponível em <http://www.marxists.org/portugues/pashukanis/1925/mes/direito.htm>. Acesso em 15.12.2010.

PUFENDORF, Samuel. The whole duty of man according to the law of nature. Indianapolis: Liberty Fund, 2002

ICC (International Criminal Court). Rome Statute of the International Criminal Court. S.d. Disponível em <http://www.icc-cpi.int/NR/rdonlyres/EA9AEFF7-5752-4F84-BE94-0A655EB30E16/0/Rome_Statute_English.pdf>. Acesso em 13/12/2010.

SEPÚLVEDA, Juan Ginés de. De las justas causas de la guerra contra los indios. Edición digital a partir de Boletín de la Real Academia de la Historia, tomo 21 (1892). Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2006. Disponível em <http://www.cervantesvirtual.com/FichaObra.html?portal=0&Ref=18156>. Acesso em 15.12.2010.

Statute of the International Court of Justice. Statute of the Court. Disponível el <http://www.icj-cij.org/documents/index.php?p1=4&p2=2&p3=0>. Acesso em 15.12.2010.

TEICHMAN, Jenny. Pacifism and the just war: a study in applied philosophy. Oxford: Blackwell, 1986.

UNGA (United Nations General Assembly). Declaration on the Granting of Independence to Colonial Countries and Peoples, passed on December 14, 1960. Declaration 1514 (XV). Disponível em <http://daccess-dds-ny.un.org/doc/RESOLUTION/GEN/NR0/152/88/IMG/NR015288.pdf?OpenElement>. Acesso em 15.12.2010.

VATTEL, Emmerich. Les droit des gens. Washington: Carnegie Institution 1916.

WALZER, Michael. Arguing about war. New Haven and London: Yale University Press, 2004.

______. Just and unjust wars: a moral argument with historical illustrations.
New York: Basic Books, 1977.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Vinicius Valentin Raduan Miguel

Advogado. Mestre em Direitos Humanos e Política Internacional pela Universidade de Glasgow. Professor de Direitos Humanos e Hermenêutica Jurídica da Faculdade Católica de Rondônia. Professor Substituto/Auxiliar do Departamento de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Rondônia, onde é coordenador da Pós-Graduação em Segurança Pública e Direitos Humanos. Presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/RO. Representante da Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (ANCED) no Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MIGUEL, Vinicius Valentin Raduan. Teoria da guerra justa.: Aspectos ético-jurídicos e político-filosóficos do Direito da Guerra. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2729, 21 dez. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18083. Acesso em: 19 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos