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Transplantes de órgãos

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A Lei 9.434/97 dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento. Tema fundamental para os direitos humanos, os transplantes de órgãos de que trata a lei é um dos vários aspectos das discussões relativas à bioética frente aos constantes avanços da biotecnologia, seus grandes benefícios e seus dramáticos efeitos negativos como o surgimento de um mercado lucrativo dentro da lógica individualista capitalista.

São vários os casos de denúncias relativas a um mercado negro de órgãos, num gigantesco mercado humano que envolve o já conhecido e revelado mercado de crianças, e com a evolução da tecnologia médica, chega ao mercado de partes do corpo humano de pessoas com morte encefálica, ou ainda de pessoas vivas. Desta forma existem denúncias revelando um bando de traficantes que operava na Alemanha, Holanda e França, transferindo para estes países crianças roubadas ou compradas na Romênia ("Bimbi in vendita per ´catalago´- scoperto a Berlino um traffico di bebé". La Repubblica, 15 de outubro de 1991, p.23) até a comprovação de trafico de crianças no México não só para adoções ilegais e prostituição infantil mas também para o tráfico de órgãos (S. Martinez: "Está confirmado en Mexico el trafico de órganos infantiles" Organizacion Mundial contra la tortura", in processo 907, 21 de março 1994, pp. 57-60).

Caso ilustrativo foi apreciado pelo judiciário inglês: Ferat Usta, morador de um vilarejo da Turquia foi levado por caçador de órgão que o convenceu a "doar" um rim mediante pagamento, sabendo que Ferat precisava de dinheiro para tratar de sua filha tuberculosa. A retirada do rim foi feita em respeitado hospital de Londres por respeitados médicos. Descoberto o caso os médicos foram condenados penalmente, tiveram seus diplomas cassados, acrescentando o juiz do caso que tais atos lançam ao descrédito e tornam mais difíceis a verdadeira doação de órgãos e a prática de transplantes ("O Mercado Humano", Giovanni Berlinguer e Vonei Garrafa, Editora UnB, Brasília, 1996).

Poderiamos citar vários outros caso, mas remetemos o leitor ao livro acima citado, para conhecimento dos detalhes que envolvem a perversa lógica do mercado, dos interesses privados e do lucro a uma questão que não pode fugir do controle estatal e social, com a maior transparência possível.

A lei 9.434/97, que vem sendo debatida pela mídia, tem um caráter público bastante interessante, procurando de maneira moderna preservar o interesse público sem perder de vista a esfera individual, principalmente quando muda a lógica da doação, criando como que uma doação presumida, no seu artigo 4º que dispõe que: "salvo manifestação de vontade em contrário, nos termos desta lei, presume-se autorizada a doação de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano, para finalidade de transplantes ou terapêutica post mortem."

Esta característica da lei traz como fundamento um debate importante para os direitos humanos, e cuja a resposta a doutrina atual encontrou respostas nem sempre coincidentes. Sem entrar em muitos detalhes, podemos localizar três grandes linhas teóricas relativas aos direitos humanos: uma liberal, pertencente aos séculos XVIII e XIX, que defende a perspectiva individual como preponderante, uma socialista que defende a preponderância do interesse social, e uma que podemos chamar democrática, que busca o equilíbrio entre o interesse individual e social, encontrando uma síntese e uma indivisibilidade entre os grupos de direitos humanos de origem liberal (os direitos individuais e políticos) e os de origem socialista (os direitos sociais e econômicos). Está lei tem claramente um caráter democrático.

Uma questão importante surge desta constatação: se o leitor da lei for um neoliberal, ele poderá, se juiz, considerar a lei inconstitucional, assim como se for um socialista. A resposta a esta questão é simples: o interprete da lei não pode ao seu livre arbítrio ler ou interpretar a lei segundo a sua ideologia, mas deverá ler sempre a lei de acordo com os princípios e os valores presentes na Constituição, e a nossa Constituição tem claramente um caráter democrático, não sendo nem liberal, nem socialista.

Finalmente, é necessário convocar a população e os nossos ativos e importantes órgãos de fiscalização, principalmente o Ministério Público, guardião da lei e dos valores democráticos da Constituição, a fiscalizar a aplicação desta lei, que se efetivamente aplicada poderá coibir o tráfico ilegal e desumano de órgãos. Entretanto se a sociedade não estiver atenta, não estaremos livres do que ocorre em quase todo o mundo, quando a lógica do lucro do mercado capitalista se envolve com a vida humana, que tem pouco valor diante do egoísmo e do dinheiro. É importante preservar o caráter de doação, o que implica em gratuidade, e está presente nesta lei.

A Transplatation Society descreveu em 1990, em um Congresso sobre Ética, justiça e comércio nos transplantes, que são cinco as maneiras de se conseguir órgãos de pessoas vivas: a) doações de parentes; b) doações de pessoas ligadas emocionalmente; c) doações com fins altruísticos; d) doações remuneradas; e) comércio agressivo (O Mercado Humano, livro citado, pág. 84).



Com os debates sobre a Lei 9.434 agora mais acirrados percebemos que surgem as primeiras questões polêmicas referentes a sua interpretação e que podem ter repercussões importantes no dia a dia de sua implementação.

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Já abordamos a questão da inversão que a lei provoca ao criar o doador presumido. Não devemos acreditar que o legislador contou com a desinformação ou omissão do cidadão para aumentar as doações. Mesmo que seja por uma causa nobre esta justificativa, para a criação do doador presumido na lei, por si só já seria suficiente para caracterizar a sua inconstitucionalidade. A presunção de doação, então, tem como finalidade facilitar a mesma e salvar vidas, o que é, neste sentido, uma inovação importante da lei.

Uma primeira questão importante é o reconhecimento da vontade individual. A lei 9.434/97 dispõe que, salvo manifestação em contrário, nos termos desta lei, presume-se autorizada a doação de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano, para a finalidade de transplantes ou terapêutica post mortem. Numa leitura precipitada e isolada da lei, pode-se concluir que apenas a manifestação de vontade gravada de forma indelével e inviolável, na Carteira de Identidade Civil e na Carteira Nacional de Habilitação da pessoa que optar por esta condição, nos termos do artigo 4º paragrafos 1º a 5º, tem validade. Nenhuma outra forma de manifestação de vontade pode ser considerada.

Será que esta leitura da lei está correta perante nosso ordenamento jurídico constitucional? Vejamos.

É claro que a única maneira para assegurar aos profissionais envolvidos no transplante de órgãos a certeza de que estão agindo de acordo com a lei, é a criação de um ou dois documentos específicos que permitam sem equivoco a identificação da vontade do cidadão doador ou não doador. Desta forma, estando o cidadão de posse de sua carteira de identidade ou de habilitação, e nesta não houver nenhuma manifestação contrária à doação, estão os profissionais que promoverem a remoção dos órgão com a finalidade de transplante, assim como aqueles que promovem a cirurgia de transplante, amparados pela lei com plena segurança.

Entretanto, se houver, de posse da família ou do paciente doador, qualquer documento juridicamente válido de manifestação de vontade, este não pode ser desconsiderado. Desta forma um documento autenticado ou registrado em cartório com expressa manifestação de vontade do pretenso doador, de que este não é mais doador, não pode ser ignorado. Não foi abolido com esta lei o direito individual, e nem poderia ser.

E a doação condicionada a pessoa da família ou a qualquer um, é possível? Sim.

Neste caso nos deparamos novamente com a manifestação da vontade individual e a forma de sua manifestação. Pode-se condicionar a forma de manifestação desta vontade ou qualquer forma valida deve ser considerada? Ficamos com a segunda opção que já foi demonstrada acima.

O indivíduo não é propriedade do Estado. Embora não estejamos mais no sistema liberal onde o individualismo chegou a proporções exageradas levando ao egoísmo exacerbado e a grandes desigualdades, vivemos hoje um sistema constitucional democrático, onde se busca o constante equilíbrio entre o interesse individual e o social, e a diminuição das desigualdades sociais (ou pelo menos se deveria buscar isto para cumprir a Constituição). Desta forma surgem legítimos limites a propriedade privada sobre os mais variados bens, o que não inclui o corpo humano, por não poder estar o corpo sujeito a uma lógica do mercado, seja no perigoso e ineficaz conceito liberal , seja no conceito social. O indivíduo e sua condição de integridade e dignidade é a finalidade do sistema de direitos humanos, e não pode o Estado ignorar a sua vontade com relação ao seu corpo, a sua cultura e o seu sentimento, seja filosófico, religioso ou político, sendo que a Constituição Federal garante a sua livre manifestação de vontade.

Desta forma, além do disposto na lei, existe todo um sistema constitucional, que condiciona a interpretação de todas as leis infra-constitucionais às suas regras, princípios e valores.

Concluímos que, existindo uma manifestação de vontade individual do doador, de que o seu órgão só seja transplantado para determinada pessoa, esta vontade deve ser obrigatoriamente respeitada.

Importante diante de tudo isto é ressaltar que, embora acreditemos que as soluções jurídicas e a interpretação da lei defendida neste breve artigo de forma sucinta, seja a mais correta, um grande debate está se iniciando. Deve, portanto, o cidadão interessado em que sua vontade individual prevaleça sobre o seu corpo e a destinação de suas partes, garantir-se de todas a formas, pois a situação fática que se coloca no momento da doação é de emergência, não havendo tempo para debates jurídicos em processos judiciais.

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Sobre o autor
José Luiz Quadros de Magalhães

Especialista, mestre e doutor em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais<br>Professor da UFMG, PUC-MG e Faculdades Santo Agostinho de Montes Claros.<br>Professor Visitante no mestrado na Universidad Libre de Colombia; no doutorado daUniversidad de Buenos Aires e mestrado na Universidad de la Habana. Pesquisador do Projeto PAPIIT da Universidade Nacional Autonoma do México

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAGALHÃES, José Luiz Quadros. Transplantes de órgãos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 3, n. 23, 27 jan. 1998. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1847. Acesso em: 2 nov. 2024.

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