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Eutanásia e distanásia.

A problemática da Bioética

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06 - ÉTICA E EUTANÁSIA:

Há, pelo menos, uma noção intuitiva, em todos, do que seja Ética; sua explicação é, contudo, tarefa difícil. Ademais, tentar defini-la seria nos privar de toda a amplitude de seu significado que pode ainda advir do desenvolvimento do pensamento humano.

Etimologicamente, o termo ética deriva do grego ethos que significa modo de ser, caráter. Designa a reflexão filosófica sobre a moralidade, ou seja, acerca das regras e códigos morais que norteiam a conduta humana. Sua finalidade é esclarecer e sistematizar as bases do fato moral e determinar as diretrizes e os princípios abstratos da moral. Neste caso, a ética é uma criação consciente e reflexiva de um filósofo sobre a moralidade, que é, por sua vez, criação espontânea e inconsciente de um grupo.

Pode ser entendida como uma reflexão sobre os costumes ou sobre as ações humanas em suas diversas manifestações, nas mais diversas áreas. Também, pode ser ela compreendida como a existência pautada nos costumes considerados corretos, ou seja, aquele que se adequar aos padrões vigentes de comportamento numa classe social, de determinada sociedade e que caso não seja seguido, é passível de coação ao cumprimento por meio de punição. Em resumo, tem-se a ética como o estudo das ações e dos costumes humanos ou a análise da própria vida considerada virtuosa.

É possível, ainda, considerá-la como a parte da filosofia que tem como objeto o dever-ser no domínio da ação humana. Distingue-se da ontologia cujo objeto é o ser das coisas. Propõe-se, portanto, a desvendar não aquilo que o homem de fato é, mas aquilo que ele "deve fazer". Seu campo é o do juízo de valor e não o do juízo de realidade, ou da existência. Estuda as normas e regras de conduta estabelecidas pelo homem em sociedade, procurando identificar sua natureza, origem, fundamentação racional. Em alguns casos, conclui por formular um conjunto de normas a serem seguidas; em outros, limita-se a refletir sobre os problemas implícitos nas normas que de fato foram estabelecidas.

As noções decorrentes de ações advindas de uma ou mais opções entre o bom e o mau, ou entre o bem e o mal, relacionam-se com algo a mais: o desejo que todos têm de serem felizes, afastando a angústia, a dor; daí, ficamos satisfeitos conosco e recebemos a aceitação geral.

Para que exista a conduta ética, é necessário que o agente seja consciente, ou seja, que possua capacidade de discernir o bem e o mal. A consciência moral possui a capacidade de discernir entre um e outro, avaliar, julgando o valor das condutas, e agir conforme os padrões morais. Por isso, é responsável pelas suas ações e emoções, tornando-se responsável também pelas suas conseqüências.

Os valores podem ser entendidos como padrões sociais ou princípios aceitos e mantidos por pessoas, pela sociedade, dentre outros. Assim, cada um adquire uma percepção individual do que lhe é de valor; possuem pesos diferenciados, de modo que, quando comparados, se tornam mais ou menos valiosos. Tornam-se, sob determinado enfoque, subjetivos, uma vez que dependerão do modo de existência de cada pessoa, de suas convicções filosóficas, experiências vividas ou até, de crenças religiosas. Do que foi dito, as pessoas, a sociedade, as classes, cada qual têm seus valores, que devem ser considerados em qualquer situação.

A consciência se manifesta na capacidade de decidir diante de possibilidades variadas, decorrentes de alguma ação que será realizada. No processo de escolha das condutas, avalia-se os meios em relação aos fins, pesa-se o que será necessário para realizá-las, quais ações a fazer, e que conseqüências esperar.

Assim, para poder deliberar, realizar constantemente as escolhas, é condição básica a liberdade. Para isso, não se pode estar alienado, ou seja, destituído de si, privado por outros, preso aos instintos e às paixões.

Ocupa-se a ética biomédica com aqueles temas morais que se originam na prática da medicina ou na atividade de pesquisa biomédica. Surgiu a partir de um movimento que tem por finalidade a conciliação da medicina com os interesses éticos e, ao mesmo tempo, humanísticos. Os homens que fazem parte deste movimento tentam, com uma visão crítica, examinar os princípios gerais éticos e o modo como estes princípios se aplicarão à ciência contemporânea e à prática da medicina.

O primeiro agrupamento de princípios da ética biomédica relativo à eutanásia pode ser encontrado no famoso juramento de Hipócrates de Cós:

"A ninguém darei, para ajudar, remédio mortal, nem conselho que o induza à perdição."

Com o fito de uniformizar o entendimento mundial dos médicos acerca da ética aplicada à eutanásia, ortotanásia e distanásia, várias declarações surgiram no decorrer deste século, como se verifica a seguir:

DECLARAÇÃO DE GENEBRA (Adotada pela Assembléia Geral da Associação Médica Mundial. Genebra - Suíça, Setembro de 1948.)

"Na hora de ser admitido como um membro na profissão médica:

Eu, solenemente, juro consagrar minha vida a serviço da Humanidade.

Darei, como reconhecimento a meus mestres, meu respeito e minha gratidão.

Praticarei a minha profissão com consciência e dignidade.

A saúde dos meus pacientes será a minha primeira preocupação.

Respeitarei os segredos a mim confiados.

Manterei, a todo o custo, no máximo possível, a honra e a tradição da profissão médica.

Meus colegas serão meus irmãos.

Não permitirei que concepções religiosas, nacionais, raciais, partidárias ou sociais intervenham em meu dever e meus pacientes.

Manterei o mais alto respeito pela vida humana, desde sua concepção. Mesmo sob ameaça, não usarei meu conhecimento médico em princípios contrários às leis da natureza.

Faço estas promessas, solene e livremente, pela minha própria honra."

CÓDIGO INTERNACIONAL DE ÉTICA MÉDICA (Adotado pela 3ª. Assembléia Geral da Associação Médica Mundial. Londres - Inglaterra. Outubro de 1949.)

"DEVERES DO MÉDICO PARA COM O DOENTE

O médico deve ter sempre presente o cuidado de preservar a vida humana.

O médico deve a seu paciente completa lealdade e empregar em seu favor todos os recursos da ciência.

Quando um exame ou tratamento estiver além de sua capacidade, deverá ele convidar outro médico que tenha a necessária habilidade para realizá-lo.

O médico deverá manter segredo absoluto sobre tudo o que sabe de um paciente, dada a confiança que nele depositou.

o médico deve prestar cuidados de emergência como um dever humanitário, a menos que esteja certo de que haja outras pessoas a prestar tais cuidados."

DECLARAÇÃO DE VENEZA (Adotada pela Associação Médica Mundial em 1983.)

1- O dever do médico é curar, quando for possível, aliviar o sofrimento e atuar para proteger os interesses do seu paciente.

2- Não fará exceção alguma a este princípio ainda que seja caso de doente incurável ou malformação.

3- Este princípio não exclui a aplicação das regras seguintes:

3.1- O médico pode aliviar o sofrimento de um paciente com enfermidade terminal interrompendo o tratamento curativo com o consentimento do paciente ou de sua família imediata em caso de não poder expressar sua própria vontade.

A interrupção do tratamento não desobriga o médico de sua função de assistir o moribundo e dar-lhe os medicamentos necessários para mitigar a fase final de sua doença.

3.2- O médico deve evitar empregar qualquer meio extraordinário que não traga benefícios para o paciente.

3.3- O médico pode, quando não se possa reverter no paciente o processo final de cessação das funções vitais, aplicar tratamentos artificiais que permitam manter ativos os órgãos para transplantes, desde que proceda com as leis do país, ou em virtude do consentimento formal outorgado pela pessoa responsável e sob a condição de que a verificação do óbito ou da irreversibilidade da atividade vital tenha sido feita por médicos estranhos ao transplante e ao tratamento do receptor.

Estes meios artificiais não serão pagos pelo doador ou sua família. Os médicos do doador devem ser totalmente independentes dos médicos que tratam do receptor e do receptor propriamente."

No Brasil, além das responsabilidades civil e penal que podem decorrer da realização da eutanásia pelo médico, também sanção de natureza administrativa exsurge de tal ato, a ser imposta pelo Conselho de Ética Médica do respectivo CRM, pela infração disciplinar insculpida nas seguintes normas:

CÓDIGO BRASILEIRO DE ÉTICA MÉDICA (Aprovado pela Resolução CFM nº. 1.246/88 e divulgado pelo Diário Oficial da União de 26 de janeiro de 1988, pág. 1574 - Seção I)

"Art. 6º. - O médico deve guardar absoluto respeito pela vida humana, atuando sempre em benefício do paciente. Jamais utilizará seus conhecimentos para gerar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e acobertar tentativa contra a dignidade e integridade."

"É vedado ao médico:

art. 66- Utilizar, em qualquer caso, meios destinados a abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu responsável legal."

Infere-se, assim, que a eutanásia ativa, além de configurar ilícito penal, é uma violação aos princípios éticos médicos. Essa prática, qualquer que seja seu sentido e seus argumentos, não passa de uma subversão a toda a doutrina hipocrática, pois distorce e avilta o exercício da medicina, cujo compromisso é voltar-se sempre para o bem do homem e da humanidade, prevenindo doenças, tratando dos enfermos e minorando o sofrimento, sem discriminação ou preconceito de qualquer natureza.

Quanto à suspensão dos meios artificiais de manutenção da vida, estando o indivíduo na situação comprovada pelo exame clínico e pelos meios complementares específicos e idôneos, com parada total e irreversível das funções encefálicas, sendo o paciente maior de dois anos, não há que se falar em eutanásia, pois a morte, nessas condições, já ocorreu. Resta apenas repassar esse conceito à sociedade e exigir que os critérios utilizados nesse tipo de diagnóstico sejam idôneos e incapazes de qualquer outro interesse. Isso é muito importante, não só por razão de segurança jurídica, mas como forma de disciplinar a inclinação pessoal, resguardar o interesse público e manter a ordem social.


07 - EUTANÁSIA SOB A ÓTICA DAS RELIGIÕES:

A eutanásia é valorada de diferentes formas nas mais diversas religiões, como se poderá concluir a seguir.

07.1 - Religião Católica

A posição da Igreja Católica em relação à eutanásia têm sido expressa nas declarações papais e outros documentos, partindo-se da prescrição normativa ínsita nos dez mandamentos "não matarás", como se observa adiante:

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"Toda forma de eutanásia direta, isto é, a subministração de narcóticos para provocarem ou causarem a morte, é ilícita porque se pretende dispor diretamente da vida. Um dos princípios fundamentais da moral natural e cristã é que o homem não é senhor e proprietário, mas apenas usufrutuário de disposição direta que visa à abreviação da vida como fim e como meio. Nas hipóteses que vou considerar, trata-se unicamente de evitar ao paciente dores insuportáveis, por exemplo, no caso de câncer inoperável ou doenças semelhantes. Se entre o narcótico e a abreviação da vida não existe nenhum nexo causal direto, e se ao contrário a administração de narcóticos ocasiona dois efeitos distintos: de um lado aliviando as dores e de outro abreviando a vida, serão lícitos. Precisamos, porém, verificar se entre os dois efeitos há uma proporção razoável, e se as vantagens de um compensam as desvantagens do outro. Precisamos, também, primeiramente verificar se o estado atual da ciência não permite obter o mesmo resultado com o uso de outros meios, não podendo ultrapassar, no uso dos narcóticos, os limites do que for estritamente necessário." (Papa Pio XII, em 1956)

A Constituição Pastoral Gaudium et Spes (n. 27) preceitua:

"Tudo o que é contra a vida, como o homicídio, o genocídio, o aborto, a eutanásia e o suicídio voluntário (...) são coisas verdadeiramente vergonhosas (...)."

Papa Paulo VI:

"A vida humana deve ser absolutamente respeitada: como no aborto, eutanásia e homicídio."

DECLARAÇÃO SOBRE A EUTANÁSIA DA SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, EM 05 DE MAIO DE 1980:

"Não se pode impor a ninguém a obrigação de recorrer a uma técnica que, embora já em uso, ainda não está isenta de perigos ou é demasiadamente onerosa. Na iminência de uma morte inevitável, apesar dos meios usados, é lícito de forma consciente tomar a decisão de renunciar ao tratamento que daria somente um prolongamento precário e penoso à vida, sem contudo interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes."

Pode-se observar, assim, que a posição da Igreja Católica é no sentido de que a obrigação do médico é tratar do paciente, aliviando a dor e o sofrimento e respeitando sua dignidade como pessoa humana. Isso implica os procedimentos chamados ordinários, como a analgesia, a hidratação, e a nutrição artificial. O mesmo não se diga com os "cuidados médicos extraordinários", de altíssimo custo e procedimentos penosos, como a ventilação mecânica, a radioterapia e a diálise renal, denominadas "futilidade médica", pois não ofereceriam nenhum benefício ao paciente, constituindo-se no que passou a chamar recentemente de distanásia, ou simplesmente encarniçamento terapêutico, ante a manutenção obstinada e precária de uma vida sem remissão e redenção.

07.2 - Religião Judaica

Para o judaísmo, o homem não tem disponibilidade da vida e do próprio corpo, pertencentes a Deus, que é o árbitro. A vida é considerada um dom de valor infinito e indivisível, inexistindo diferença moral entre a abreviatura desta em longos anos ou poucos minutos. O direito de morrer não é reconhecido, mas se é sensível ao sofrimento. A Halakah, ou seja, a tradição legal hebraica, é contrária à eutanásia. O médico é visto como um instrumento de Deus para preservar a vida humana, sendo-lhe defeso usurpar o direito divino de escolha entre a vida ou morte de seus pacientes. Para Halakah, a definição de morte não deriva exclusivamente dos fatos médicos e científicos, que apenas descrevem o aspecto fisiológico que observam, mas é uma questão ética e legal, da mesma forma que a fixação do tempo do óbito é questão moral e teológico.

Halakah faz, contudo, uma distinção entre o prolongamento da vida do paciente, que é obrigatório, e o prolongamento da agonia, que não o é. Assim, se o médico está convencido que seu paciente poderá falecer em três dias, fica autorizado a suspender as manobras reanimatórias e o tratamento não analgésico.

07.3 - Religião Islâmica

Para a unanimidade das quatro grandes escolas islâmicas, respectivamente fundadas por Abou Hassifa, Malek, Chaffei e Ahmed Ibm Handibal, é ilícita a eutanásia.

A posição da Escola de Handibal, em relação à pena a ser aplicada ao infrator, é a de que o consentimento da vítima equivale à renúncia de reclamar a imposição da pena, devendo, contudo, responder o algoz, por seus atos perante Deus.

07.4 - Religião Hindu

Embora a Escritura Hindu não faça referência expressa à eutanásia, extrai-se de seu texto a proibição de sua realização, pois que a alma deve sustentar todos os prazeres e dores do corpo em que reside, embora na Índia Antiga terem sido prescritas medidas particulares para por termo à vida de pessoas afetadas por moléstias incuráveis.

07.5 - Religião Budista

Para o budismo, nossa personalidade deriva da interação de cinco atividades: a atividade corporal, as sensações, as percepções, a vontade e a consciência. De todas, a vontade é a mais importante, porquanto representa a capacidade de escolha, de orientar a consciência: a morte de alguém, assim, ocorre quando alguém não mais possa exercer uma vontade consciente, quando seu encéfalo perdeu definitivamente a capacidade de viver, quando o último traço de atividade elétrica o abandonou.

O sofrimento tem grande importância no pensamento de Buda: as Quatro Verdades Nobres para obter a Iluminação são sua verdadeira causa.

Destarte, a eutanásia ativa e a passiva podem ser aplicadas em numerosos casos, admitindo o budismo que a vida vegetativa seja abreviada ou facilitada.

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Sobre os autores
Antonio Soares Carneiro

pós-graduando em Direito na UFRN

Maria Edilma Cunha

pós-graduanda em Direito na UFRN

Jeane Maria Rodrigues Marinho

pós-graduanda em Direito na UFRN

Alexandre Érico Alves da Silva

pós-graduando em Direito na UFRN

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARNEIRO, Antonio Soares ; CUNHA, Maria Edilma et al. Eutanásia e distanásia.: A problemática da Bioética. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 3, n. 24, 21 abr. 1998. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1862. Acesso em: 25 abr. 2024.

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