4 - CONCLUSÃO
A observância do processo judicial como método democrático casa com a linha traçada por, entre outros, Jürgen Habermas, consubstanciada no desenvolvimento da noção de autonomia de Kant, com a realização da transição da reflexão monológica do Imperativo Categórico para o diálogo, necessário para se considerar a comunidade moral como "uma comunidade formada de indivíduos livres e iguais que se sentem obrigados a tratar uns aos outros como fins em si mesmo" (2004, p. 13), o que leva à busca do consenso, como um acordo racional, decorrente da autoridade epistêmica de cada participante, que objetiva alcançar soluções que sejam racionalmente aceitáveis para todos os envolvidos, havendo a necessidade, porém, da existência de um órgão garantidor – que, no nosso caso, pode ser identificado com o órgão judicial -, que tenha legitimidade para impor o acordado.
Sem embargo, não apenas a noção de comunidade comunicativa é colocada sob ataque, mas também a própria assertiva de que caberia ao Poder Judiciário promover a resolução consensual de conflitos. Ora, a democratização do correio eletrônico e de outras formas de comunicação a distância tem por corolário a maior universalização do acesso ao Judiciário, com possível diminuição de custos e desburocratização do trâmite procedimental. Por consequência, a via judicial, por natureza destinada primordialmente às questões contenciosas, como vem sendo aparelhada, tornar-se-á a via principal do cidadão para a resolução de conflitos, superando não só as esferas política e administrativa, mas também o próprio diálogo que deveria ele, cidadão, manter com o Outro, transformando-se os argumentos jurídicos, com todas as suas deficiências, na peça principal do discurso público, levando à judicialização da vida.
A situação resta amplificada pela assunção dos processos coletivos (group action, class action, etc), causados pelos conflitos trazidos pela complexa sociedade de massa, em uma era de hiperconsumo e de grandes e fechados conglomerados empresariais, assim como pela ação dos entes governamentais, eternos litigantes.
Não seria absurdo pensar, então, que o indivíduo poderia, no futuro, optar pela transferência de sua autonomia para o Estado [07], este na qualidade de um ente asséptico e adiaforético, que decidirá em seu nome, mesmo que não a seu favor, para fugir do incômodo de dialogar diretamente com o Outro ou mesmo pelo descrédito nas instituições estatais reguladoras e administrativas e na conduta dos grandes conglomerados empresarias em uma sociedade massificada.
Assim, o indivíduo estaria abrindo mão de uma liberdade cuja conquista lhe foi muito cara, enquanto o Estado, ao revés, acabaria por montar uma gigantesca, embora sempre insuficiente, estrutura burocrática judicial, com decisões cada vez mais verticalizadas e homogeneizadas. Perderia o cidadão, tutelado, que deixaria de construir os seus limites em contato com o Outro, aprimorando o seu próprio desenvolvimento ao criar instrumentos de convivência social; tal qual perderia o Judiciário, que teria podada a atividade criativa diuturna de seus juízes, bem como a sua função primordial , na linha de FISS (2007), de dar significado e expressão concreta aos valores públicos contidos no direito, e não meramente de resolver conflitos, levando em conta o caráter essencialmente público da decisão judicial, para enfatizar a reprodução mecânica de decisões judiciais concentradas, comportamento que em muito é auxiliado pela utilização da tecnologia inerente ao procedimento eletrônico.
A motivação da decisão judicial é a mais pura expressão do poder que foi ao Juiz concedido para dizer o direito, corporificando os valores civilizatórios mais caros àquela sociedade, naquele específico caso. Tal ação é, por natureza, artesanal. Os meios criados pelo gênio humano, como as inovações tecnológicas insertas nos mecanismos eletrônicos, devem servir para melhor qualificar a decisão judicial, permitindo o acesso seguro a todos aqueles que participam do processo às informações necessárias para a busca da definição mais justa. Não se deve inverter a lógica, quero crer, para moldar a participação dos cidadãos na constante construção do seu Judiciário, dentro de uma sociedade democrática, a uma relação de prestação de serviços massificados. Com efeito, se a crise contemporânea é gerada pelas dúvidas causadas pelo excesso e pela rapidez das informações, o caminho democrático não deveria levar à sacralização do pensamento único, com a recriação dos oráculos, mas sim conduzir ao estímulo da reflexão e da responsabilidade pessoal em relação ao Outro.
Não se deve olvidar que a linguagem, qualquer que seja sua forma - não perdendo de vista que o processo eletrônico permite a expressão multimídia -, tem sua origem na experiência humana e, portanto, deve observar o ethos, pois as tradições e as instituições são construídas para permitir que homem conviva - mas do que sobreviva -, através do estabelecimento de relações pessoais. O juiz ao decidir, portanto, nada mais faz que reviver a experiência fundante daquele pensamento, que se tornou universal através dos tempos para aquela sociedade, remodelando-a de acordo com a nova realidade. Ao assim proceder, o juiz, em conjunto com todos os demais participantes do processo, refunda a experiência comum, modificando condutas e redelineando o próprio conceito a respeito do comportamento até então sedimentado. Cada decisão judicial abala a estrutura da própria sociedade, contribuindo para o seu desenvolvimento civilizatório, devendo, portanto, ser reconhecida como ato humano único, de reflexos extensos, que precisa ser partilhada, controlada e legitimada, uma a uma, por toda a sociedade, o que só pode acontecer através da análise da sua motivação.
Se o futuro a Deus pertence, como reza um antigo ditado, cabe ao Homem a responsabilidade pelas suas decisões presentes, já que toda experiência é modificadora. Tem o juiz, então, a obrigação de exercer o poder que lhe foi concedido nos limites do consentimento social, de forma artesanal, como o é toda a ação intelectual, observando o dever de zelar pelo processo judicial como meio de construção do processo democrático, prestando contas a todos, e não apenas aos sujeitos do processo, cada vez que justifica a decisão proferida.
5 – Referências Bibliográficas
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Notas
- Cf: Brüggemann, citado por Barbosa Moreira (2004.p.107), o estado de direito se caracteriza justamente como "Estado que se justifica" (rechtfertigender Staat).
- v.g: RAC para os estadunidenses e métodos extrajudiciais de soluções de controvérsias – MESCS no âmbito local.
- Cf. Artigo 19 do Código Modelo Iberoamericano de Ética Judicial
- Estudioso da lógica de Gottilob Frege.
- Tendo sido a herança precedida de testamento, lembrando Hanna Arendt (
- Enunciados que surgem a profusão, lembrando um processo just in time nos moldes da toyotização.
- O relato de Raushenbush descrito por CASSIRER (2003. p.333) é emblemático : " A um merceeiro alemão que me tentava explicar a situação do seu país após o advento de Hitler, transmiti o meu sentimento de que alguma coisa de muito valiosa se tinha perdido com as liberdades políticas. Replicou ele: ‘ Mas você, afinal. Não compreendeu nada. Antes dessa situação tínhamos de nos preocupar com eleições, partidos, votos. Tínhamos responsabilidades. Mas agora tudo isso acabou. Agora somos livres’".