Conclusão
Embora apresentando uma obra de riqueza incomparável, quando o aproximamos de Clastres, Hobbes parece ter incorrido em dois deslizes: 1- Ao afirmar que os povos da América eram sociedades em estado de natureza e 2- Ao colocar Sociedade e Estado como indissociáveis.
Hobbes caracteriza o estado de natureza como sendo ‘embrutecido’, onde se teria uma vida sórdida e curta, sem outra forma de poder além daquele presente na família, onde roubar e espoliar seriam práticas recorrentes e portanto, quase não haveria produção, se quer, de alimentos. Diversos estudos antropológicos, arqueológicos e, até mesmo os relatos dos cronistas, nos levaram a conhecer como os povos autóctones da América organizavam suas vidas na época em que Hobbes escrevia, quase todos, apontam em direções que não nos permitem pensar em qualquer compatibilidade com este estado de natureza hobbesiano. Tomemos aqui, apenas os exemplos trazidos por Clastres:
Os indígenas da América, eram sociedades onde um caçador não comia o produto de sua caça, mas dava-o a outro. Uma sociedade que convivia com o poder político embora sem o transferir á um soberano. Produzia o suficiente para a manutenção de suas necessidades incluindo aí, as festas que exigiam grandes excedentes. Viviam em casas coletivas que chegavam a reunir mais de 100 moradores e, uma aldeia poderia conter várias delas. Conhecia a guerra, mas em momentos passageiros, já que do contrário teriam que ter um chefe permanentemente. Uma sociedade onde o roubo e a espoliação não se faziam necessários, já que não almejavam ter ou ser mais que seus vizinhos.
Essas práticas –algumas das quais já reveladas pelos próprios cronistas- e esse modo de organizar a vida, em nada se assemelham ao que Hobbes chamou de Estado de Natureza, nem mesmo, a sua dita versão menos radical. Aludindo a Bobbio e Bovero, o estado de natureza não parece se encaixar em nenhum aspecto da vida dessas sociedades e, portanto, não parece ser possível pensá-lo para esse contexto.
Hobbes também afirmou que não existiria primeiro a sociedade e depois o Estado; não podem ser pensados separadamente. "Sem Estado, nos matamos uns aos outros" (RIBEIRO, p. 63), ou seja, para Hobbes, o estado é a essência da cultura. No entanto o que se vê entre os índios da América é exatamente o contrário: O Estado é essência da natureza. Para eles, cultura é reciprocidade e o que o Estado faz é, justamente, romper com a troca para instaurar o "terror da dívida". Com isso evidencia-se que, para os índios americanos Estado e Sociedade são coisas mais que dissociáveis: opostas em si mesmas. Logo, viver sem Estado é uma possibilidade tão real que esses primitivos terminaram por organizar suas vidas inteiramente contra ele, desenvolvendo o que Clastres chamou de "uma nova filosofia política". É certo que Hobbes falava na impossibilidade de se viver sem o Estado no contexto da sociedade Européia/Civilizada mas, lembremos que, para ele, "a natureza dos homens é sempre a mesma".
Embora seja possível constatar esses dois deslizes de Hobbes ao aproximá-lo de Clastres e da etnologia indígena de modo geral, não se pretende ‘cobrar’ do autor questões levantadas a partir de um conhecimento produzido somente três séculos após sua existência (e, certamente, a luz dela!). Busco apenas sinalizar que, talvez pela própria grandeza que representa a obra de Hobbes e dos contratualistas, ainda é recorrente o pensamento da impossibilidade de uma vida sem Estado, mesmo em contextos distintos do nosso: "Cada um de nós traz efetivamente em si, interiorizada como a fé do crente, essa certeza de que a sociedade existe para o Estado". A Sociedade Contra o Estado parece um ponto importante para que pensemos ‘diferentemente’ [02] disso.
BIBLIOGRAFIA
ARANHA, M.ª Lúcia e MARTINS M.ª Helena. Filosofando: Introdução à Filosofia, São Paulo, Editora Moderna, 1997.
BOBBIO, N. & BOVERO, M. Sociedade e Estado na Economia Política Moderna.
2.ed. Trad. Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Brasiliense, 1987.
CLASTRES, Pierre. A Sociedade Contra o Estado. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978.
HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Abril Cultural. (Coleção Os Pensadores, vol. XIV), 1974.
LA BOETIE, Ètiene de. Discurso sobre a servidão voluntária. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.
LEOPOLDI, José Sávio. Aspectos antropológicos da filosofia de Hobbes. In: Revista ALCEU. V.1, nº 2, p. 108-128. Janeiro de 2001.
MELIÁ, Bartolomeu. A terra sem mal dos guarani: economia e profecia. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 33, p. 33-46, 1990.
RIBEIRO, Renato Janine. Hobbes: o medo e a esperança. In: In: WEFFORT, Franciso
(Org). Os Clássicos da Política. São Paulo: Ática, 1995. p. 53-77.
Notas
- Bartolomeu Meliá também discorda dessa noção de economia de subsistência entre os primitivos. Argumentando por outra via, em seu artigo "Terra sem mal: Economia e profecia" ele chama a atenção para a expressiva quantidade de excedentes produzida pelas tribos Guarani, e que eram usadas para fins de ‘reciprocidade’.
- Com a expressão, venho aludir ao ‘arqueólogo’ Michel Foucault que afirmava: "O estado não é a única fonte de poder".