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A revolução biotecnológica do século XXI.

Reflexões éticas e jurídicas

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3. A dignidade da pessoa humana como balizador da liberdade científica

As complexas questões ético-jurídicas trazidas pelo rápido e intenso avanço das descobertas biotecnológicas impõem uma reação imediata e igualmente ágil do Direito, diante dos riscos a que a espécie humana está sujeita, impondo limites à liberdade de pesquisa, assegurada pelo art. 5°, inciso IX da Carta Constitucional.

Mas a questão é: como, no século biotecnológico, traçar os contornos à liberdade de ação de um cientista? Quais os limites que, em pleno século XXI, poderiam ser impostos à ciência?

É certo que as intensas transformações no modo de vida da humanidade através das inovações científico-tecnológicas produzem novas situações e relações não previstas diretamente no ordenamento jurídico, reclamando, portanto, do aplicador do Direito que ele busque a adequação normativa fundada em regras e princípios que promovam a dignidade humana.

Segundo Maria Helena Diniz, a liberdade da atividade científica, em que pese se apresentar como um direito fundamental assegurado constitucionalmente, não pode ser considerado absoluto. Seu entendimento é o de que, havendo conflito entre a livre expressão da atividade científica e outro direito fundamental da pessoa humana, a solução ou o ponto de equilíbrio deverá ser o respeito à dignidade da pessoa humana, fundamento do Estado Democrático de Direito, previsto no art. 1°, inciso III, da Constituição Federal. Para ela, "nenhuma liberdade de investigação científica poderá ser aceita se colocar em perigo a pessoa humana e sua dignidade" [09].

Para Ernest-Wolfgang o conteúdo da dignidade da pessoa humana teria um núcleo reconhecido por todos, que poderia ser descrito com base na fórmula kantiana "fim em si mesmo". Para ele, esse núcleo da dignidade da pessoa humana abrange a posição e o "reconhecimento do homem como sujeito individualizado; a proibição da instrumentalização do homem, como se fosse uma coisa meramente disponível e desfrutável e, formulado de forma positiva, o direito a ter direitos, que devem ser considerados e protegidos" [10].

Ainda, segundo Ernest-Wolfgang, a dignidade que qualifica um ser pronto, não pode ser cindida ou destacada da própria história deste ser, mas, ao contrário, deve abrangê-la:

"Ao se procurar uma fase determinada do processo da vida, em que o respeito e a consideração são devidos ao homem em razão de sua dignidade, para se excluir ou se graduar processualmente tal consideração ou respeito (seja porque, por exemplo, haja apenas um embrião de dezesseis ou dezoito células, ou porque tenha ocorrido uma nidação incerta), abre-se uma lacuna no desenvolvimento do homem concreto e individualizado. Se o respeito à dignidade deve valer para todos os homens como tais, então ela deve ser concedida ao homem desde o início, no primeiro instante de sua vida e alcançar esse momento, e não apenas ser atribuída ao homem somente se este sobrevier ileso por determinado período de tempo, após, portanto, ter estado desprotegido contra uma coisificação e a dispossibilização arbitrária. Aqui se tornam relevantes conhecimentos e fatos científicos, não especificamente como fonte ou fundamento, mas como substrato para argumentações e valorações jurídico-normativas". [11]

Dessa forma, considerando os enormes avanços da biotecnologia já alcançados e os que ainda se encontram por serem desvendados, faz-se imprescindível a imposição de limites à atividade científica, instituindo parâmetros normativos balizadores de sua conduta. Para tanto, o respeito ao ser humano, em todas as suas fases evolutivas, se mostra em primeiro lugar; e esse respeito só é alcançado quando o trabalho desenvolvido é pautado à luz do princípio da dignidade da pessoa humana.

Sobre o respeito a esse princípio, Norberto Bobbio, citado por Maria Helena Diniz, escreve:

"Mais que um renascimento do jusnaturalismo, se deveria falar do retorno daqueles valores que tornam a vida humana digna de ser vivida e que os filósofos proclamam, com o fim de justificar segundo os tempos e as condições históricas, com argumentos tomados da concepção geral do mundo prevalecente na cultura de uma época" [12].

A única certeza, portanto, é que o respeito à vida humana digna, paradigma bioético, deve estar presente na ética e no ordenamento jurídico de todas as sociedades.

As novas biotecnologias representam, inegavelmente, um desafio para o direito, tendo este por tarefa primordial não somente assegurar o direito à vida e à dignidade humana, mas também a de garantir a integridade das gerações futuras.


4. Reflexões éticas e jurídicas

O ritmo acelerado das inovações tecnológicas, notadamente na seara da medicina, trouxe um grande poder de intervenção do homem sobre a vida e a morte. Um poder, pode-se dizer, assustador, especialmente quando se sabe que, muitas vezes, esse progresso científico é impulsionado por interesses econômicos, reclamando, por tal razão, da sociedade, um debate amplo e público dessas transformações, por meio de uma reflexão bioética do comportamento humano na área das ciências da vida.

Na percepção de Teresa Rodrigues Vieira:

"a ciência está caminhando mais rápido do que a reflexão ética por parte da sociedade. A humanidade ainda não encontrou respostas para diversas questões éticas. Muitos requerem a discussão e a elaboração de leis sobre a bioética para legitimar a sua prática ou para proibir experiências julgadas abusivas. No entanto com o progresso veloz das pesquisas biológicas, corre-se o risco de já estarem defasadas no momento da sua promulgação" [13].

De fato, o avanço biotecnológico despontou de tal forma que as ciências do "dever ser", em especial, a ética e o direito, não puderam se desenvolver na mesma velocidade.

É certo que ao direito não cabe impor barreiras ou estabelecer divisas morais e religiosas intransponíveis, mas sim disciplinar fatos que inevitavelmente venham a surgir em decorrência da evolução humana.

Mas como disciplinar fatos que estão constantemente em mudança e que repercutem tão fortemente na própria existência da pessoa humana e, por conseguinte, no ordenamento jurídico vigente?

A biotecnologia e o ressurgimento da perspectiva do ser humano como espécie vêm colocar importantes questionamentos para o cientista e para o jurista.

As possibilidades quase ilimitadas que se abrem com os conhecimentos da biomedicina, biotecnologia e biogenética levantam urgentemente a questão sobre os pontos de referência e orientações que levem em conta o modo e os limites de como nós homens queremos nos relacionar uns com os outros, de como queremos que seja o convívio entre os indivíduos.

Questões como a clonagem, eugenia e a manipulação genética criam um conflito ético-jurídico entre as perspectivas do ser humano como indivíduo, espécie e sociedade.

Segundo Rifkin, os defensores da engenharia genética humana defendem que seria cruel e irresponsável, por exemplo, deixar de utilizar essa nova tecnologia para eliminar sérios "distúrbios genéticos". O problema com esse argumento afirma o The New York Times em editorial intitulado "Whether to make perfects humans" (Construir ou não ser humanos perfeitos), é que "não existe uma linha divisória clara entre corrigir defeitos genéticos que podem ser herdados e aprimorar a espécie" [14].

E aqui se levanta mais uma polêmica: a de se definir o que seria considerado "defeito" genético. Daniel Callahan, citado por Jeremy Rifkin, atinge o cerne do problema quando observa: "por trás do horror que o defeito genético inspira esconde-se (...) uma imagem do ser humano perfeito. Os próprios termos ‘defeito’ ‘anormalidade’, ‘doença’ e ‘risco’ pressupõem uma imagem, um certo protótipo de perfeição".

A indagação que se faz, por fim, é se devemos ou não iniciar o processo de construir futuras gerações de seres humanos em laboratório e seguindo um projeto tecnológico. Quais as conseqüências potenciais de se tomar um caminho cujo objetivo final é a "perfeição" da espécie humana?

Frente a tantos avanços científicos, carência de regulamentação legal e incertezas da sociedade, a autora italiana Laura Palazzani, citada em artigo de Ricardo Stanziola Vieira [15], menciona a emergência de novos direitos visando reconhecer "a justa expectativa objetiva do homem em função da coexistência humana". Estes novos direitos, em seu entender, consistiriam no direito à integridade física e à não manipulação do patrimônio genético, o direito a não ser geneticamente predeterminado; o direito à própria identidade e também à diferença (isto é, à biodiversidade); o direito de ser concebido heterossexualmente em uma família com duas figuras genitoras.

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Seriam esses os direitos de quarta geração, que são justamente aqueles decorrentes das repercussões biotecnológicas na vida das pessoas.

Como já mencionado, estes ideários ético-jurídicos vêm se conflitando com o paradigma científico e a noção de ser humano enquanto espécie, por isso Rifkin enfatiza sempre que a "autonomia científica deverá terminar quando estiver em jogo o direito de outrem, pois há prioridade da pessoa humana sobre qualquer interesse da ciência, que somente terá sentido se estiver a serviço do homem" [16].


5. O futuro da bioética e do biodireito: o desafio do século xxi

Para a bioética e o biodireito, a vida humana não pode ser uma questão de mera sobrevivência física, mas sim de vida com dignidade.

Nesse cenário, a bioética tem a função de problematizar as questões suscitadas pela biomedicina, cabendo ao biodireito regulamentar como essas soluções deverão ser encontradas.

Segundo Maria Helena Diniz, a "bioética e o biodireito caminham ‘pari passu’ na difícil tarefa de separar o joio do trigo, na colheita de frutos plantados pela engenharia genética, pela embriologia e pela biologia molecular, e de determinar, com prudência objetiva, até onde as ciências da vida poderão avançar sem que haja agressões à dignidade da pessoa humana" [17].

Reconhece-se, portanto, o importante papel do biodireito e da bioética como controladores do desenvolvimento das ciências da vida, como verdadeiros paradigmas para a construção do século biotecnológico, pois somente ações balizadas nesses pilares poderão assegurar o surgimento de uma sociedade calcada no respeito à dignidade da pessoa humana.

Dessa forma, o grande desafio do século XXI será desenvolver uma bioética e um biodireito que corrijam os exageros provocados pelos experimentos e pesquisas científicas, resgatando e valorizando a dignidade da pessoa humana, verdadeiro paradigma bioético humanista [18].


6. Considerações finais

O desenvolver do século biotecnológico deixa ainda muitas incógnitas, por isso mesmo, ao final dessa breve exposição, muitas perguntas permanecem sem respostas. Não são questões simples de serem tratadas, envolvem aspectos econômicos, filosóficos, jurídicos, religiosos, éticos e morais que devem ser melhor debatidos pela sociedade.

Quanto mais discussão houver sobre o assunto, melhor absorvida e compreendida será a matéria pela sociedade. Não se pode mais conceber que os debates acerca dos avanços da biomedicina fiquem restritos às academias e aos laboratórios, afastando das discussões o cidadão comum. Não. As mudanças biotecnológicas estão transformando o cotidiano das pessoas, influenciando em sua relação umas com as outras, razão pela qual toda a sociedade deve estar integrada e engajada nesse debate, não podendo mais ele ser adiado.

Contudo, alerta-se para que as reflexões éticas e jurídicas que permeiam o tema sejam sempre realizadas à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, considerado verdadeiro paradigma bioético humanista, de forma que seja esse princípio a orientar a evolução do novo século biotecnológico.


7. Referências bibliográficas

BÖCKENFÖRDE, Ernest-Wolfgang.Dignidade humana como principio normativo: os direitos fundamentais no debate bioético. Direitos fundamentais e biotecnologia. Organização Ingo Wolfgang Scarlet, George Salomão Leite. São Paulo: Método, 2008.

BORGES, Roxana. Direito e patrimônio genético humano. Disponível em: <http://www.facs.br/revistajuridica/edicao_junho2003/docente/capa.doc>. Acesso em: 15/10/2009.  

DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 6ª. ed. rev., aum. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009.

PENIDO, Henrique. Células-tronco: Limitações éticas e jurídicas à pesquisa e manipulação. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/pdfsGerados/artigos/972.pdf>. Acesso em: 30/09/2009.

RIFKIN, Jeremy. O século da biotecnologia. Tradução e revisão técnica Arão Sapiro. São Paulo: Makron Books, 1999.

SILVA, Ivan de Oliveira. Biodireito, bioética e patrimônio genético brasileiro. São Paulo: Editora Pillares, 2008.

VIEIRA, Ricardo Stanziola. Polêmicas colocadas pela biotecnologia ao debate do direito moderno – uma breve reflexão ética e jurídica. Disponível em: <http://anppas.org.br/encontro_anual/encontro1/gt/sustentabilidade_risco/Ricardo%20Stanziola%20Vieira.pdf>. Acesso em: 13/10/2009.

VIEIRA, Teresa Rodrigues. Bioética e Direito. São Paulo: Editora jurídica brasileira, 1999.


Notas

  1. DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 6ª. ed. rev., aum. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009.
  2. RIFKIN, Jeremy. O século da biotecnologia. Tradução e revisão técnica Arão Sapiro. São Paulo: Makron Books, 1999.
  3. Op. Cit.
  4. Op. cit.
  5. Op. cit.
  6. RIFKIN, Jeremy. op. Cit.
  7. Op. cit.
  8. BÖCKENFÖRDE, Ernest-Wolfgang.Dignidade humana como principio normativo: os direitos fundamentais no debate bioético. Direitos fundamentais e biotecnologia. Organização Ingo Wolfgang Scarlet, George Salomão Leite. São Paulo: Método, 2008.
  9. Op. cit.
  10. Op. cit.
  11. Op. cit.
  12. Op. cit.
  13. VIEIRA, Teresa Rodrigues. Bioética e Direito. São Paulo: Editora jurídica brasileira, 1999.
  14. Op. cit.
  15. VIEIRA, Ricardo Stanziola. Polêmicas colocadas pela biotecnologia ao debate do direito moderno – uma breve reflexão ética e jurídica.
  16. Op. cit.
  17. Op.cit.
  18. Op. cit.
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Sobre a autora
Laura Lícia de Mendonça Vicente

Advogada. Mestranda em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC/SP. Especialista em Direito Ambiental pela PUC/SP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VICENTE, Laura Lícia Mendonça. A revolução biotecnológica do século XXI.: Reflexões éticas e jurídicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2855, 26 abr. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18976. Acesso em: 16 nov. 2024.

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