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De como o ensino do Direito se tornou passarinheiro

05/05/2011 às 12:33
Leia nesta página:

"O meu amor é passarinheiro. Ele só quer passarinhar

Seu beijo é um alçapão, seu abraço é uma gaiola

que prende meu coração, que nem moda de viola."

(Zeca Pagodinho, em Água da minha sede)

O poeta, com coração caçador, canta a prisão a que os enredos do amor o conduziram, superando sua natureza volúvel, que o levava a uma caça voraz e permanente, sem permitir sua acomodação romântica.

Para o dicionário, passarinheiro é aquele que prepara as armadilhas, as arapucas para caçar os passarinhos. O que pretende o caçador? Um de dois resultados possíveis na caçada: engaiolar a caça ou matá-la.

A morte merece um capítulo próprio no estudo do Direito, embora possamos, desde logo, fazer aqui uma reflexão sobre o seu significado, do ponto de vista da educação.

Num texto que circula quase sempre apócrifo e a mim foi encaminhado com a assinatura simplesmente de "Marins", há um resgate do poema A Fábula da Sereia e dos Bêbados, de Pablo Neruda, para tratar de como a educação nos marca.

No poema, a Sereia teria saído do mar complemente nua e entrara em uma taberna, onde os homens estavam bebendo. Os homens a viram e sem compreender sua presença, macularam sua carne, cuspiram nela e a marcaram com seus cigarros. Ela não falava, porque não sabia falar; não chorava, porque não sabia chorar. Era apenas uma sereia. De repente ela saiu, caiu no mar e nadou até nunca mais.

O autor, então, comenta que devemos ter sido assim: puros, limpos e inocentes como a sereia da fábula e a educação pode ter sido um percurso onde recebemos muitas marcas na pele, descobrimos versões e, como diz Rubem Alves, certamente andamos aprendendo o uso da partícula "se" e do dígrafo.

No Direito, aprendemos as intricadas teorias do crime, da pena, do direito privado, da Constituição, do Estado e vamos ficando sempre mais marcados, repletos de conceitos e, consequentemente, de preconceitos.

Há realmente um grande esforço, um conjunto bem orquestrado de atos para que cheguemos a nos engaiolar dentro de conceitos fechados e muito bem definidos em rigorosa linguagem jurídica, ou pior, para que matemos em nós os inocentes e atávicos conceitos de mundo que trouxemos do mar distante...

Substituímos tudo pela crença num pretensioso cientificismo acético, partindo já da certeza de que o Direito é ciência, que não admite a contaminação da realidade.

Nesta abordagem, comecemos pela matriz curricular e vamos vendo o enredo, a teia que nos une.

O currículo dos cursos nem sempre é uma articulada, consciente e bem feita arapuca, embora tenha esta intenção. Muitas vezes é apenas um emaranhado de conteúdos ditos essenciais, que os alunos precisam concluir com êxito para graduar-se.

Ali são colocadas, nem sempre com muito critério, as disciplinas de fundamento, soltas, isoladas e consideradas chatas e inúteis pelos alunos: ciência política, sociologia, filosofia, ética, história, psicologia, antropologia e economia.

Esses conteúdos, de profundidade teórica inquestionável e de importância capital para a compreensão do chamado fenômeno jurídico, conquistam logo a antipatia dos alunos ingressos no curso de Direito e ávidos por compreender melhor as notícias policiais.

Colocados assim, deslocados, isolados e sem as construções e arrumações necessárias, os conteúdos parecem desnecessários aos estudantes, que perguntam sobre o porque de estudarem sociologia ou economia no curso de Direito. Eles precisavam ser convencidos sobre a importância daquela marca na pele.

Algumas faculdades chegam a oferecer estes conteúdos em sistema semipresencial, acentuando sua secundariedade, pelo menos enquanto o ensino à distância ainda não é um modelo aprimorado nos cursos de Direito.

Perdeu-se aí uma grande oportunidade de conduzir os estudantes por veredas onde eles entrassem como protagonistas. E têm sido muito graves as conseqüências deste posicionamento.

A apatia que, de modo geral, caracteriza a geração atual, é agravada pela ausência de uma reflexão crítica mais apurada no âmbito dos estudos fundamentais.

Estas disciplinas sofrem tamanho desgaste que a referência aos seus conteúdos estabelece uma imediata rejeição em grande parte dos estudantes, exigindo um esforço extra do professor.

Seguindo, ainda na matriz curricular, o que fazem os cursos de Direito são ofertas dos conteúdos profissionalizantes num encadeamento que vai da teoria geral das diversas áreas do Direito até os ramos específicos, sempre como conteúdos autônomos, fechados em "caixinhas" que os professores entregam durante o semestre.

Na linearidade da matriz não se vê espaço para interação, partilhamento de conteúdos, para vivência conjunta por duas, três ou mais disciplinas.

Os alunos estão engaiolados, presos na arapuca.

Os professores, presos também na sua caixinha, determinam a leitura de inúmeros textos, muitos capítulos de muitos manuais, sempre desconsiderando que o aluno não poderá cumprir esta demanda, porque outros quatro ou cinco professores do mesmo semestre terão feito a mesma encomenda.

O aluno não tem saída: para escapar da arapuca, mete-se em fraudes. Um copia o fichamento do outro, ou ambos copiam tudo da internet, e começa um sistema duradouro de logros e mentiras, patrocinados pelo próprio sistema.

Não seria lúcido que a matriz curricular fosse construída semestralmente considerando a espécie de competência que se pretende desenvolver no estudante, passo a passo?

Não seria lógico que em cada semestre ele estudasse cinco, seis ou sete áreas do Direito que tivessem leituras e reflexões comuns, tudo alinhavado com o conteúdo de fundamento que se adequasse àquela área do Direito? Não serve a Sociologia para ancorar os estudos em Direito Penal tanto quanto pode ser fundamental para os estudos em Direito do Trabalho ou em Direito de Família? Não se dá o mesmo com a Filosofia ou com a Psicologia?

O construtor de uma casa não deve, por acaso, fazer o projeto da construção considerando que cada uma de suas etapas conta com esse ou aquele material, essa ou aquela mão-de-obra? O mestre de obras não sabe que no inicio da construção os operários farão operações grosseiras, mas no acabamento deverão lidar com assentamentos, pinturas e outras atividades que exigem habilidades específicas?

No ensino do Direito não colocamos em questão tais aspectos. As disciplinas são realmente isoladas, trancadas dentro de uma caixa.

A aceitação do conteúdo, a preferência do estudante por esta ou aquela disciplina depende mais do carisma do professor do que de sua importância formativa.

Não são raros os casos em que a organização curricular sequer se fundamenta em um pressuposto pedagógico. Em algumas matrizes se vê nitidamente disciplinas que foram lançadas, em constantes reformas parciais, sem qualquer ligação com o discurso que fundamenta o curso.

E assim prosseguimos. Engaiolamos nosso aluno – pois prefiro pensar que não o aniquilamos totalmente – impedindo seu voo, cortando suas asas, podando sua criatividade e imaginação. Apesar de termos todos os instrumentos para auxiliá-lo no vôo e apesar de nos apresentarmos como uma pista segura para eles.

A imagem da educação que engaiola é de Rubem Alves [01] que assim refere:

Pois ontem, de repente, esse aforismo me atacou: "Há escolas que são gaiolas. Há escolas que são asas".

Escolas que são gaiolas existem para que os pássaros desaprendam a arte do vôo. Pássaros engaiolados são pássaros sob controle. Engaiolados, o seu dono pode levá-los para onde quiser. Pássaros engaiolados sempre têm um dono. Deixaram de ser pássaros. Porque a essência dos pássaros é o voo.

Escolas que são asas não amam pássaros engaiolados. O que elas amam são os pássaros em voo. Existem para dar aos pássaros coragem para voar. Ensinar o voo, isso elas não podem fazer, porque o voo já nasce dentro dos pássaros. O voo não pode ser ensinado. Só pode ser encorajado.

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O ensino passarinheiro do Direito quer caçar os pássaros, quer dizer a última palavra, quer manter o poder, não pode abandonar a chamada "zona de conforto". Não pode permitir a transgressão, nem pode encorajar o voo.

Aliás, muitos professores sequer sabem voar. E ninguém pode ensinar aquilo que não sabe!

Rubem Alves conta que a ideia da gaiola lhe veio quando ouviu assustadas professoras do ensino médio contando como era difícil controlar os alunos revoltados, barulhentos, desinteressados nos conteúdos que elas precisavam passar, avaliar e concluir. Tais professoras nem sabiam o que era amor aos alunos, alegria em lecionar. Estavam esgotadas, assustadas e apavoradas.

Lembrando de sua infância, o autor conta que apanhava passarinhos em arapucas e depois os trancava em gaiolas, onde eles se lançavam furiosamente contra os arames, encrespavam as asas, se ensangüentavam e depois se acomodavam à prisão.

São as marcas na pele que a educação, a lapidação nos impõe.

Marins, conclui naquele texto, que:

"A metáfora marinha me permite dizer que todos nós, diversos, estranhos, únicos, pertencemos a um mesmo mar e que bem no fundo de cada um habita a lembrança de uma sereia como a da fábula. Uma sereia que nos fala da urgência e que nos segreda coisas simples como a justiça, a verdade, o amor ou a coragem. Algo inexplicável, que os Kantianos poderiam chamar de "a lei moral dentro de nós", fundamento de nossa própria condição de seres livres que fazem opções e que são por elas responsáveis."

Sim, não nascemos para estar engaiolados. Somos tanto transcendentes como imanentes, conforme ensina Leonardo Boff [02], ao dizer que ninguém nos aprisiona, somos livres mesmo quando escravizados ou trancados em calabouços.

A idéia é também traduzida por Henry Thoureau [03] quando conta que, preso por ter se recusado a pagar os impostos e contribuir com a guerra - que ele repudiava -, sentia-se absolutamente livre. As grades da cadeia não podiam prender seu espírito livre, que cumpria rigorosamente seus princípios e suas crenças.

Seria bom acreditar que mantemos uma reserva de autonomia, capaz de nos impelir à "abertura, de romper barreiras, de superar interditos, de ir para além de todos os limites. É isso que chamamos de transcendência. Essa é uma estrutura de base do ser humano", como defende Boff.

Porém, estamos tão assustados quanto nossos alunos.

No exercício da coordenação de curso de Direito sentimos, incontáveis vezes, o desespero igual ao das professoras referidas por Rubem Alves: um estarrecimento diante da couraça que revestia nossos alunos, que os tornava impermeáveis a todas as tentativas de construção que propúnhamos.

Nem sempre compreendíamos que eram as terríveis marcas na pele daqueles alunos que os impediam de alçar voos, de ousar novamente, de sair do mar e adentrar de novo na taberna, agora sabendo falar.

Sem dúvida, os mais importantes passos, depois da compreensão, é abandonar o ensino passarinheiro, ávido por engaiolar; desarmar as arapucas, depois os estilingues e buscar ensinar um Direito abolicionista, que alforria, que fortalece e que transforma o mundo.


Notas

  1. http://www.rubemalves.com.br/gaiolaseasas.htm
  2. BOFF, Leonardo. Tempo de transcendência. Editora Sextante, 2000
  3. THOREAU, Henry. Desobediência Civil.
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Sobre a autora
Marilene de Souza Polastro

Mestre em Direito. Coordenadora do Curso de Direito da União Pioneira de Integração Social - UPis, em Brasília (DF). Assessora-Chefe do Conselho Nacional de Justiça.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

POLASTRO, Marilene Souza. De como o ensino do Direito se tornou passarinheiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2864, 5 mai. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19043. Acesso em: 24 dez. 2024.

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