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Ensino jurídico: entre apatia e militância

14/05/2011 às 12:23
Leia nesta página:

"Eu sei que a vida deveria ser bem melhor e será.

[...] Há quem fale que a vida da gente é um nada no mundo

É uma gota, é um tempo que nem dá um segundo[...]

Eu fico com a pureza da resposta das crianças:

É a vida é bonita, é bonita e é bonita."

(trecho da música O que é, o que é?, de Gonzaguinha)


Qualquer discussão sobre ensino jurídico com professores coloca pelo menos duas posições antagônicas na mesa.

De um lado, professores que não acreditam na possibilidade de influenciar os alunos, nem mesmo por meio de metodologias de ensino ativas e contextualizadas. A favor de sua tese, eles recordam a maioria dos alunos desatentos ou quase hostis que comparecem às aulas apenas para cumprir o percentual mínimo de presenças obrigatórias.

De outro lado, há os professores que se agarram à ideia de modificar seu método de aula, visando construir uma nova relação com os alunos, mais profícua, mais proveitosa para ambos.

Nas histórias vivenciadas ao longo de vários anos de tentativa de ensinar o Direito contextualizado, encontramos a mesma divisão entre os alunos: aqueles que abraçam o modelo de ensino, participando ativamente de todas as iniciativas e projetos e aqueles que se recusam a ter qualquer envolvimento, preferindo as aulas expositivas, as apostilas elaboradas e a postura passiva.

Também podem ser encontrados, em número bem menor, professores e alunos que fazem franca oposição às inovações pedagógicas, agarrando-se aos modelos tradicionais de ensino, exigindo a manutenção do status quo.

É claro que nestes quadros estão representadas as posições naturais das pessoas no mundo – as que militam e as que assistem a carruagem passando. Nenhuma novidade.

A questão, entretanto, deve ser enfrentada sem desprezar nenhuma das contribuições. Um esforço de compreensão das razões que orientam os professores e alunos resistentes, quando o mundo está evidentemente a clamar uma postura mais solidária e efetiva é um bom começo.

Uma das explicações é o medo da mudança, questão filosófica debatida desde sempre.

A propósito da dificuldade de aceitar as mudanças e até fazer parte delas, o filme Pleasantville – a vida em preto e branco [01] - nos dá preciosas indicações, na resistência que os personagens de uma cidade fictícia têm à mudança de seus hábitos já tão arraigados.

No curso de Administração um dos grandes objetivos é justamente desenvolver o espírito empreendedor nos estudantes, que consiste em abandonar o conforto da situação conhecida e experimentada, para ousar em espaços selvagens, não desbravados.

Embora siga conquistando, em ritmo acelerado, avanços importantes, ainda é o medo de mudar que orienta a humanidade no cotidiano.

Além do medo da mudança, a indiferença, a falta de solidariedade, quase naturais numa sociedade inamistosa e altamente gregária, bem separada entre incluídos e excluídos, pobres e ricos, educados e analfabetos, é outro ponto de combate.

A articulação da sociedade em torno dos temas que lhe são fundamentais é, historicamente, a mola mestra de toda a transformação, embora a apatia seja a regra. Uma apatia que nasce do desinteresse pelos problemas do outro. É a falta de cuidado, o desinteresse pelo destino do homem como ser histórico e codependente.

Bobbio [02], discutindo república e virtude com Maurizio Viroli, referiu:

"Diga-me onde há um Estado que se sustente sobre a virtude dos cidadãos, um Estado que não recorra à força! A definição recorrente de Estado é aquela segundo a qual o Estado é o detentor do monopólio da força legítima, força necessária porque a maior parte dos cidadãos não é virtuosa, mas viciosa."

Mais tarde, ele complementa o raciocínio dizendo: "Falar em virtude civil é importante para fazer oposição à indiferença e à apatia que infelizmente hoje predominam em nosso país." Bobbio está se referindo à Itália, mas a sentença cabe perfeitamente para o Brasil: a indiferença é que impede ações sistemáticas de combates às graves ofensas que diariamente são perpetradas contra a dignidade do país.

Cabe às universidades aprofundar o debate, mas o ensino do Direito é que apresenta solo fértil para dilargar a compreensão dos estudantes sobre o importante papel que devem desempenhar para mudar esse quadro, escolhendo alguns caminhos para vencer a apatia.

E nos caminhos assim escolhidos inicia-se a militância que, nas palavras de Olavo de Carvalho [03] assim se define:

Ser um militante é estar inserido numa organização política, submetido a uma linha de comando e envolvido por uma atmosfera de camaradagem e cumplicidade com os membros da mesma organização. Ser um simpatizante ou um "companheiro de viagem" é estar mergulhado nessa atmosfera, obedecendo à mesma linha de comando não por um comprometimento formal com os militantes mas por hábito, por expectativa de vantagens ou conivência emocional.

Wilson da Costa Bueno [04], jornalista e professor, defende outro conceito de militância:

Ser militante não é fazer parte de uma "tribo" qualquer e andar em grupo tentando convencer os outros a adotarem posições extremadas. Ser militante não é tapar os olhos e desobedecer à razão para não enxergar o outro lado, como se existisse apenas uma única verdade (a que defendemos). Ser militante não significa estar disposto a pegar em armas para fazer valer, a qualquer custo, as nossas convicções.Ser militante significa apenas defender, com coragem, as nossas posições, ainda que elas possam nos criar embaraços junto a patrões ou colegas da redação.

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A palavra militância ligou-se, de maneira acentuada, à atuação da esquerda no país. Como se militantes fossem somente as pessoas ligadas ideologicamente à esquerda, em situação de ruptura.

De qualquer maneira, apropriando-me dos dois conceitos, estou certa de que precisamos de uma forte militância na composição de um novo jeito de ensinar Direito.

Precisamos principalmente da "defesa com coragem" e do "espírito de camaradagem" que nos permitam compor a "mala de viagem" juntos, discutindo os conteúdos úteis e necessários a serem levados, e rechaçando o que, consensualmente, seja considerado supérfluo.

E aqui preciso fazer uma consideração sobre a escolha autoritária do ‘necessário’ e do ‘supérfluo’ que leva em conta, especialmente, o perfil do estudante, o destinatário das escolhas feitas no projeto de um curso.

O estudante de hoje é, em regra, uma pessoa contextualizada em ambiente virtual, que interage diariamente por meio de diversos canais de comunicação, inteirando-se de fatos e eventos em escala mundial e em tempo real. A quantidade de informação que ele recebe diariamente já não autoriza que o ensino do Direito se restrinja a uma antiquada e lenta leitura e reprodução de textos legais.

A pesquisa jurisprudencial, por exemplo, que há dez anos poderia consumir quinze dias de trabalho, em leituras de enciclopédias e manuais jurídicos, hoje pode ser obtida em menos de uma hora de trabalho diante do computador, com a utilização dos verbetes corretos e dos sites de busca adequados.

As comodidades dos tempos modernos podem gerar alunos desatentos quando a metodologia aplicada em sala de aula se mostre enfadonha ou desinteressante.

Em outras palavras, o perfil do estudante de hoje exige também um professor novo, articulado, um professor multimídia.

Luis Alberto Warat [05], em crítica contundente, tratando da atual impossibilidade de ensinar o Direito afirma "Alguns professores podem nos ajudar, mas para isso têm que reaprender seu ofício, converter-se em mediadores, em ajudadores em nossos processos individuais de descoberta da própria subjetividade [...]", clareando a ideia de que o professor é um mediador dos saberes, não podendo mais se apresentar como expert, detentor do "saber inteiro e único" sobre o conteúdo da disciplina.

Recordando, ainda uma vez, a lição de Rubem Alves, vale repisar que não compete ao professor voar pelo aluno, nem lhe cabe carregar o aluno em seu voo: sua função é apenas mediar a busca do aluno pelo seu próprio e exclusivo modo de voar.

O sucesso de um projeto de ensino supõe um professor atualizado com as necessidades dos alunos, com os olhos voltados para um futuro apenas intuído; desapegado das fórmulas; atento ao discurso próprio de um Direito funcional, transformador e humanizado, a serviço da sociedade justa e solidária almejada.

Pois bem, dito assim, temos que concluir que a militância dos professores é fundamental para vencer a apatia dos nossos estudantes, para compor esse novo modelo de homens e mulheres, com a virtude civil de buscar o desenvolvimento de uma sociedade amadurecida, não utópica, mas factível e viável.

É preciso esclarecer que não se trata de uma proposição ingênua, que descuida de estabelecer as estratégias suficientes para o sucesso do empreendimento. Por isso mesmo é que sua construção remete a um necessário consenso, que ainda está por ser construído.

E diante de qualquer proposta que permita vencer a apatia e buscar a virtude civil, o empreendimento me parece tão válido, a ponto de me levar a propor uma confraria, onde militem todos aqueles que já se cansaram do sistema posto e consolidado e que desejam fazer uma outra viagem, com novos cenários.

O primeiro passo é colocar o tema em permanente discussão, a fim de que os parceiros de viagem compareçam. O segundo passo é construir propostas pedagógicas de cursos de Direito que prestigiem o ensino contextualizado, amoroso, voltado, a um só tempo, para a sociedade e para o desenvolvimento ético completo do aluno. o terceiro passo é conquistar os alunos para a caminhada e ajudá-los a preparar a bagagem.

O estudante compreenderá que ele fará um voo livre, solto e repleto de aventuras, com o coração disparado e a pulsação acelerada em busca do conhecimento jurídico. Não mais ocupará um canto da sala para cochilar ou acessar a internet enquanto o professor dá aulas para as paredes. Isso pode ser temerário, mas "eu fico com a pureza da resposta das crianças: é a vida, é bonita, é bonita e é bonita".

Alea jacta est!


Notas

  1. http://www.adorocinema.com/filmes/pleasantville/
  2. BOBBIO, Norberto e VIROLI, Maurizio. Direitos e deveres na república: os grandes temas da política e da cidadania. Tradução Daniela Beccaccia Versiani. p. 7. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.
  3. http://www.olavodecarvalho.org/semana/050306zh.htm
  4. http://www.jornalismocientifico.com.br/jornalismocientifico/newsletter/noticia5.htm
  5. WARAT, Luis Alberto. Epistemologia e ensino do Direito: o sonho acabou. Florianópolis: Editora Fundação Boiteux, 2004.
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Sobre a autora
Marilene de Souza Polastro

Mestre em Direito. Coordenadora do Curso de Direito da União Pioneira de Integração Social - UPis, em Brasília (DF). Assessora-Chefe do Conselho Nacional de Justiça.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

POLASTRO, Marilene Souza. Ensino jurídico: entre apatia e militância. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2873, 14 mai. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19110. Acesso em: 23 nov. 2024.

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