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A responsabilidade do ensino jurídico no Brasil

20/07/2011 às 15:12
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Entrar num curso superior sempre foi o grande almejo dos jovens egressos do ensino médio, sendo motivo de grande alegria para as famílias a conquista desse intento. Ocorre, porém, que o caminho a ser trilhado e as intenções sobre o quê fazer com o diploma no futuro são duas vertentes que influenciam de maneira indelével na formação do profissional que sairá dos bancos da universidade.

Mas a questão não é simples, não sendo possível limitar e apontar a culpa apenas ao ensino superior. Os problemas vêm da base, da preparação do jovem desde a sua primeira separação do pai ou da mãe na porta da escola. Por dever de delimitação, porém, atenha-se ao vestibular como meio de seleção para se ter acesso ao saber intelectual, sabidamente elitizado.

Os currículos do ensino médio e fundamental no Brasil não preparam mais a pessoa e o cidadão. Preparam a máquina, a pessoa mecanizada pronta para ser acionada e colocada no piloto automático. Máquina de retenção de informações, de calcular, de ganhar dinheiro, de dizer, de aplicar, de encaixar. Não se prepara a pessoa para pensar, para observar o mundo ao seu redor e para buscar meios de melhorá-lo.

O aluno do ensino médio e do ensino fundamental tem hoje uma única meta e incentivo: ler, estudar, reter informações (entenda-se fórmulas, dados e equações) e passar no vestibular, como se este mensurasse o nível da pessoa e do cidadão, bem como se por meio dele fosse possível avaliar a capacidade do futuro profissional.

O ensino médio e fundamental não se preocupa em preparar pessoas para mudar o mundo, para pensar, para criar, para inovar. Não é voltado para a sensibilidade, para a intuição. Não se treina para votar, para dirigir no trânsito, para respeitar a natureza e as pessoas.

No campo escolar há ainda outro fator. O capitalismo e o mercantilismo tomaram conta do mundo educacional. As escolas são verdadeiras máquinas de fazer dinheiro e de produzir no seio da sociedade pessoas insensíveis e frágeis, incapazes de mudar aquilo que recebem pronto e acabado. Incapazes de criticar, de fazer algo diferente. O objetivo das instituições é captar alunos e vender um serviço único e exclusivamente voltado à preparação para o vestibular.

Este ensino frisa a concorrência pela concorrência, o capital pelo capital, o conhecimento pelo conhecimento. Vencer a competição é o que importa. E a primeira a ser vencida é o vestibular. As "máquinas" são preparadas pelas melhores escolas para entrar nas melhores universidades, notadamente nas universidades públicas, feitas para os filhos de famílias de alta renda, preparados em escolas particulares.

E o que dizer das demais faculdades, com cursos autorizados indiscriminadamente, especialmente na área jurídica, que hoje sequer fazem vestibular? Neste caso, o preparo do jovem como "máquina" sequer se torna necessário, pois não há concorrência para o ingresso no curso superior. Mas ai entra outro aspecto. Além de fazer entrar o aluno oriundo das escolas mais caras e mercantilistas, entram também os alunos que sequer sabem escrever um parágrafo, transmitindo por meio da escrita as suas idéias e sua visão de mundo. Ou seja, além de também não saber pensar, do mesmo modo que aluno "máquina", este aluno não demonstra a mínima capacidade para o exercício de uma das profissões das áreas jurídicas.

Vestibular de alta complexidade para entrar na academia, ou a não aplicação do vestibular. Como se observa, no Brasil o ingresso nos cursos jurídicos vai de um extremo ao outro, sem o mínimo de preocupação com a formação de bons juristas, filósofos, pensadores. E que tipo de aluno chega à academia? E chegando lá, que tipo de professor será encontrado? E com qual sistema e filosofia de ensino ele se deparará?

Antes de adentrar no mérito destas indagações, cabe aqui abordar acerca da academia. O vocábulo de há muito é aplicado ao ensino e às atividades universitárias. O termo academia não é usado à toa, sendo que o mesmo possui vários sentidos, podendo ser: 1) Lugar aprazível e solitário em que Platão ensinava filosofia; 2) Escola de qualquer filósofo; 3) Escola de instrução superior (faculdade); 4) Instituto ou agremiação científica, literária ou artística, particular ou oficial; 5) Corporação de estudantes (exceto primários) ou membros de uma academia; 6) Casa em que se reúnem os acadêmicos; 7) Certame literário celebrado por ocasião de alguma festividade pública. [01] Note-se que os sentidos usualmente ligados a palavra academia têm como ponto comum a busca pelo conhecimento, a formação do profissional, a produção e a difusão de estudos científicos, literários ou artísticos.

Nos dias de hoje, entretanto, em que se cultua a estética e se enfatiza a prevenção de doenças, o termo academia passou a ser também utilizado para designar os locais onde se trabalha o corpo. E esse trabalho tem algumas características.

Na academia do corpo o objetivo é trabalhar o físico de maneira sistemática. Nela está presente uma relação interpessoal de aprendizado entre aluno e instrutor onde é apreendida a forma correta de trabalhar os aparelhos e instrumentos disponíveis, usar o tempo, dosar medidas de esforço, e aplicar as espécies e objetivos de cada exercício.

A academia do corpo ainda apresenta a necessidade de presença constante, de reavaliações corporais regulares e o avanço quanto ao esforço a ser empreendido na medida em que o corpo vai apresentando evolução pela remodelagem. Há também a possibilidade de que um professor pessoal venha a dar atenção específica ao aluno, acompanhando-o e ensinando-o a trabalhar melhor seu corpo e seus aparelhos, além de ajudá-lo com recomendações quanto a alimentação.

Tanto do professor pessoal quanto dos instrutores gerais se espera uma dose alta de sensibilidade para ajudar o aluno, assim como do aluno se espera grande dedicação, autocontrole e continuidade para atingir, e manter, seus objetivos.

A meta final da academia do corpo é educar a composição corporal, modelar o corpo, possibilitar uma vida atual e futura mais saudável, e modificar para melhor a avaliação estética que agrade ao aluno, por vezes melhorando a sua auto-estima.

Em síntese, a academia do corpo apresenta como características a sistematicidade, a presença de relações interpessoais de aprendizagem, manuseio correto dos instrumentos, exercício constante, sensibilidade de quem ensina, dedicação de quem é ensinado, continuidade, finalidade e manutenção.

Entre a academia do corpo e a academia universitária os pontos são comuns, sendo que a grande diferença entre elas reside no objeto, pois enquanto que na primeira se prepara o corpo, na segunda se prepara o intelecto para o exercício de uma atividade profissional.

As duas possuem cognição, sendo que uma envolve o conhecimento e a satisfação das exigências do próprio corpo visando a melhoria da saúde e da estética, e a segunda exige a retenção do aprendizado para o desenvolvimento do intelecto.

A academia universitária, para atingir seu objetivo, deve ter as mesmas características da academia do corpo, quais sejam, a sistematicidade, manuseio correto dos instrumentos, exercício constante, continuidade, finalidade e manutenção, além da presença de relações interpessoais de aprendizagem, sensibilidade de quem ensina e dedicação de quem é ensinado. Importa verificar os contornos que tais características tomam para a academia universitária.

Na universidade a sistematicidade inclui o aprendizado direcionado e organizado com o objetivo do repasse e da retenção lógica de informações. O manuseio correto dos instrumentos deve facilitar tanto o aprendizado quanto o exercício futuro da profissão, viabilizando o desenvolvimento de um espírito crítico e de novos mecanismos de cognição e de resolução de problemas. O exercitar constante está em consonância com o manuseio correto dos instrumentos, já que esta correição deve ser resultante do exercício constante. Este possibilita, na universidade, o uso correto, seletivo e lógico dos instrumentos, deles extraindo soluções para as novas necessidades e em acordo com a evolução dos valores envolvidos no objeto de estudo, criando caminhos inéditos que permitam a criatividade e a inovação, ainda que estas surjam a partir de sem modificação da essência, mas tão-somente da forma. Este manuseio correto dos instrumentos e o exercitar constante permitem que o aluno possa alcançar uma autonomia e capacidade, ambas relativas, de "caminhar com as próprias pernas".

A finalidade diz respeito ao alcance de um objetivo. Não de um objetivo por si só, mas de um objetivo qualificado. Na universidade, o aluno deve ter por objetivo qualificado o entendimento e a retenção de conhecimento para que possa dar sua contribuição prática para a melhoria do mundo. O aluno deve ter a capacidade de pensar, de desenvolver novas idéias e de mudar a visão do mundo a partir do conhecimento que lhe foi repassado. Este é um objetivo acadêmico qualificado. Sua meta não deve ser de apenas concluir o curso e adquirir uma titulação.

Em relação a continuidade, esta implica na observância do estudo regular, mesmo após as atividades realizadas dentro da universidade, assim como depois o término do curso. Aliás, a palavra curso diz respeito a um período que tem termo inicial e termo final, cumprindo-se com determinada matriz curricular. Um curso acadêmico, para ser válido e atingir sua finalidade qualificada, pressupõe a continuidade, que tanto se aplica ao período de estudos e debates exercitados com o professor e com os demais alunos, mediante o contato com o campus, quanto o de buscar, mesmo após o término desse período, continuamente cursar e exercitar, sozinho, a releitura e a crítica do conhecimento para que se desenvolvam novos estudos, novas possibilidades e uma nova visão de mundo.

Do mesmo modo como o físico, na academia do corpo, o intelecto e a formação profissional, na academia do saber universitário, para alcançar um bom nível de excelência, precisam ser bem trabalhados e adequados às atividades, exigências e problemas oriundos do cotidiano. É preciso ter em mente que, para a solução dos problemas, o atleta do intelecto não mais terá o professor ao seu alcance, nem a sala de aula e seus colegas como fonte de discussão e debate. Ele mesmo deverá ter desenvolvida sua própria dosagem de autonomia intelectual para, dentro da lógica do razoável e do conhecimento básico adquirido, ter a capacidade de encontrar, sozinho, suas próprias soluções, obtendo o sucesso almejado.

A seqüência mais ou menos lógica das características comuns entre a academia do corpo e a academia universitária seria: finalidade, sistematicidade, manuseio correto dos instrumentos, exercício constante e continuidade. Estas características, no entanto, devem estar temperadas com três ingredientes fundamentais: a presença de relações interpessoais de aprendizagem, sensibilidade de quem ensina e dedicação de quem é ensinado. As relações interpessoais de aprendizagem envolvem tanto a relação entre docente e discente, quanto entre discentes, devendo ambas estar voltadas para a difusão, para a crítica e para a retenção do conhecimento. E é justamente nelas, especialmente na primeira, que reside o maior problema do ensino jurídico no Brasil.

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Acerca da responsabilidade da educação jurídica brasileira, devem ser colocados como pontos nodais os três aspectos questionados no início deste título: quem chega (corpo discente), quem está (corpo docente) e aonde se encontram (sistema de ensino). Indicar apenas um desses fatores como responsável pela má performance do ensino jurídico pátrio é muito fácil, se mostrando inclusive uma leviandade. A responsabilidade não é única, nem simples, mas sim complexa e conjunta. Esses três elementos devem ser analisados, pois todos, sem exceção, contribuem para o mau desempenho da educação jurídica brasileira. [02]

Antes de passar a abordagem desses aspectos da responsabilidade, importa entender o significado de educação e de universidade. Por educação entende-se o "processo com o intuito de levar o ser humano a realizar suas potencialidades físicas, morais, espirituais e intelectuais, exercido pela ação de transmissão do saber do educador (quem ensina) e pela vontade do educando (quem aprende)". Já universidade tem o sentido de universalidade, de totalidade, ou pela expressão "studium generale" por conta dos estudos gerais ensinados por mestres a alunos. A universidade possui três finalidades, sendo elas o ensino (que é a transmissão de conhecimento relativo a cultura universal), a pesquisa (envolvendo a atividade que busca abrir espaço para a descoberta do novo e para a contínua reconstrução do saber) e a extensão (colaboração que a universidade dá, por meio de sua estrutura, recursos e conhecimento, à comunidade fora de seus muros). Ao assumir a função de educar, a universidade deve ter a condição e o compromisso de cumprir de modo efetivo e eficaz com tais objetivos (TRINDADE e MAZZARI JÚNIOR. 2009. pp. 11, 62-65).

Feita esta digressão, passa-se a análise da responsabilidade discente, docente e sistêmica na formação do profissional-pensador ou de um simples profissional-técnico do Direito.

Acerca da primeira indagação colocada, qual seja, de qual é o tipo de aluno que chega a universidade, pode-se dizer que é aquele que raramente vem com alguma bagagem intelectual e com conhecimento primário acerca da filosofia. Esperar, então, bque o corpo discente que atualmente ingressa numa instituição de ensino superior tenha conhecimento interdisciplinar de sociologia, antropologia e de ciência, ai é ter um otimismo efetivamente admirável.

O discente que sai das escolas tem pouca ou nenhuma noção de filosofia e de disciplinas auxiliares do conhecimento, como as acima mencionadas. Seu conhecimento reúne apenas aquele exigido no vestibular, para o qual foi preparado nos anos imediatamente anteriores, destacando-se as disciplinas de português, matemática, história, geografia, física e química.

Este aluno recebe de modo pronto e acabado, sem efetuar qualquer questionamento, até porque para isso não foi preparado, axiomas, ditados, supostas verdades, fórmulas, equações, dados. Para ele procurar saber as razões, o fundo histórico, os motivos e fundamentos daquilo que está sendo a ele repassado pouco importa. É perda de tempo.

Resultado disso é um corpo discente, encontrado no ensino superior, desprovido de qualquer interesse nos fundamentos, na validade e nos valores, e no estudo do conhecimento. O seu desejo é continuar sendo uma "máquina", isto é, conhecer a lei e saber como aplicá-la. Este fato explica seu desinteresse pela filosofia, pela sociologia e pela antropologia, cabendo ao professor a árdua tarefa de fazer desse indivíduo um pensador, desenvolvendo nele a capacidade de criticar e de criar, fazendo-o deixar de lado a tendência positivista para que ele tenha uma reserva de capacidade intelectual criativa e autônoma.

Outro obstáculo observado nos alunos é, além da não propensão para o raciocínio jurídico, é a dificuldade de expressar idéias por meio da linguagem escrita. Não se está aqui tratando dos problemas com o domínio gramatical e ortográfico da língua portuguesa, apesar destes serem uma realidade. Ainda maior é a dificuldade de escrever ordenadamente, mediante concatenação e clareza na exposição de idéias, sendo pouca a capacidade de fazer uma defesa, de fundamentar, de buscar um fundamento, de integrar, de motivar. Pode ser exigido do professor de Direito a paralisação de sua aula para ensinar os alunos a escrever? Pode o professor ser culpado pela limitada capacidade de raciocínio jurídico do aluno? É possível que uma aula jurídica seja capaz de suprir essa lacuna trazida pelo aluno em sua formação de base?

De fato, estas não são funções do professor de Direito. Não pode ele parar a sua aula e a fluência das matérias a serem abordadas em sua disciplina para ensinar redação aos seus alunos, ou para convencê-los a ter interesse no raciocínio jurídico.

Em adição, há outra questão a ser entendida, qual seja, a existência de duas espécies de alunos. A que apresenta pouca vocação para o exercício das profissões jurídicas, conforme disposto acima, e a que se apresenta vocacionada, mas que é estragada pelo ensino jurídico. Na verdade, as duas categorias têm sua parcela de culpa para a formação congênita do profissional, pois ambas se entregam a um comodismo intelectual e a não determinação para sair do curso como um futuro jurista.

Isto porque, mesmo o aluno egresso do ensino médio com todas as vicissitudes acima delineadas, poderia, se tivesse real e efetivo interesse, desenvolver a capacidade de raciocínio jurídico, de pensamento e de espírito crítico.

E o que dizer do corpo docente, nossa segunda indagação? Ao professor não cabe também dirigir toda a responsabilidade pelo ensino jurídico no Brasil. Afinal, não pode ele ser responsabilizado pela formação de base da maior parte dos alunos, não possuindo condições nem tempo hábil de fazer essa reparação. Mesmo assim, o corpo docente tem o seu grau de responsabilidade.

Tanto para o aluno viciado quanto para o aluno que apresenta qualidades, há aspectos negativos no corpo que indicam a sua responsabilidade. De fato, se observa que é pequena a presença de professores realmente comprometidos com a qualidade educacional. E para isso alguns fatores devem ser levados em conta.

O exercício do magistério como complemento de renda, fato que leva a ausência de amor e a não profissionalização, real e efetiva, do corpo docente; a existência cada vez maior de professores oriundos do referido corpo discente (positivistas e com desprezo ao raciocínio jurídico); desinteresse na filosofia e na ciência, salvo aqueles que lecionam disciplinas correlatas ou os mais antigos; pessimismo generalizado e não individualização no trato com os alunos; pensamento de desvinculação entre a teoria e a prática; não preparação das aulas; e falta de empatia.

Todos estes fatores detectados no corpo docente, em conjunto, apresentam-se como motivos para a má qualidade do ensino jurídico. Havendo o encontro de um corpo docente pouco comprometido com a inexistência de vontade na maior parte dos alunos, o resultado não poderia ser outro senão a formação tão-somente técnica dos profissionais lançados no mercado. Falta de dedicação e de profissionalismo do lado docente, e má formação de base e comodismo do lado discente, podendo o tema ser sintetizado pela palavra comodismo em ambos os lados, somente poderia resultar em mais técnicos de direito e menos juristas.

Tal realidade docente não é privilégio das instituições privadas, sendo encontrada também nas universidades públicas. Nestas há professores que, pela estabilidade do cargo público, pelo corporativismo e pela baixa remuneração, não possuem o menor interesse em desenvolver um ensino jurídico de qualidade. Nas instituições públicas observa-se ainda o conluio e a corrupção na seleção para acesso aos cursos de pós-graduação, porquanto exista a preferência para os bacharéis egressos de seu campus em detrimento dos poucos e bons alunos saídos das universidades privadas.

Além da parcela de culpa do corpo discente e do corpo docente, essa realidade é reforçada pelo próprio sistema de ensino, que também tem a sua parcela de contribuição para a formação de técnicos do direito e não de juristas. Neste caso, assim como o encontro nefasto do comodismo de alunos e professores, há o encontro entre a negligência e a política liberal do poder público com a ânsia do capital na iniciativa privada.

No sistema, salvo raras exceções em algumas instituições de ensino superior, o poder público busca as estatísticas enquanto os cursos de direito almejam o aumento na quantidade de seus alunos. Tudo é uma questão quantitativa e não qualitativa. Os fatores detectados no sistema, que levam a formação técnica do profissional do direito se mostram os mais diversos.

Os currículos dos cursos com pouco tempo para disciplinas importantes, a opcionalidade daquelas que deveriam ser obrigatórias e a colocação de disciplinas incompatíveis com a ordem constitucional; mercantilismo e captação desmedida de clientela pelas instituições privadas; falta de investimento em bibliotecas; fornecimento de material de estudo pelas instituições; contratação de professores por corporativismo, nas instituições privadas, e não por compromisso e qualidade; falta de treinamento inicial e contínuo do professor; e baixa remuneração dos professores.

Não restam dúvidas de que tais elementos são decisivos para o resultado negativo na formação do aluno. Disciplinas como direito eleitoral, matéria de suma importância para a formação do cidadão e do pensador do direito como influente na sociedade, ainda são optativas, quando na verdade, por sua importância, deveriam ser obrigatórias.

A existência de instituições de ensino jurídico mantidas por ordens religiosas, que sob o manto da liberdade de crença e de religião, e da livre iniciativa, ofertam cursos de direito com currículo desvirtuado do objetivo maior que a formação de uma pessoa para a sociedade e para o Estado, e que tolhem a liberdade de expressão. Esquecem que o aluno de direito não está sendo preparado só para ele e sua família, mas também para a comunidade em que se encontra inserido. Solta-se no mercado um profissional despreparado e instruído sob ordens religiosas, tendo estudado tópicos teológicos em um Estado laico. Protege-se a liberdade religiosa e a livre iniciativa, mas perde-se a autodeterminação do cidadão.

Outra anomalia hoje praticada é o fornecimento de material didático, por algumas instituições de ensino superior, tolhendo do aluno e do professor, pelo comodismo, o interesse na aquisição e estudo de livros de autores que não podem ser deixados de lado. Se para a maioria do alunato de hoje adquirir livros é gasto e não investimento, resultando em profissionais de pouca leitura e pouca bagagem intelectual, imagina-se a piora substancial na formação dos alunos de instituições que fornecem este tipo de material.

Outro aspecto de fundamental importância é o curto tempo para a abordagem de certas disciplinas, especialmente as filosóficas, impedindo um desenlace a contento dos tópicos envolvidos na matéria. Pouco tempo de sala de aula, comodismo e não aquisição de livros acabam sendo elementos extremamente negativos e que resultam numa formação técnica dos alunos.

O fato é que o sistema, não valorizando o magistério, apenas ratifica a negatividade existente no encontro entre aluno e professor, perpetuando a formação somente técnica.

O tecnicismo do alunato é visto no interesse apenas no estudo das leis e dos códigos, não entendendo o discente que a lei é lacunosa e não traz solução para todas as situações. Com isso, apresentam-se no mercado juizes positivistas e despreparados para julgar casos cada vez mais complexos, oriundos de uma sociedade complexa, e advogados que não sabem provocar e dar a sua contribuição para as mudanças sociais.

Para essa formação, bastaria um curso técnico, de dois anos no máximo, podendo deixar de lado um tempo tão longo de preparo. Afinal, para que passar cinco anos num curso jurídico se a meta é formar apenas um mero aplicador das leis?


Conclusão

Não se pode continuar aceitando o quadro educacional existente no ensino jurídico brasileiro, devendo ser combatido o comodismo de alunos e professores, e a não valorização do magistério, além da não preocupação com a qualidade, mas sim com a quantidade.

O primeiro passo envolve a melhoria da formação de base, ou seja, pela alteração dos currículos dos ensinos médio e fundamental visando o treinamento e a preparação dos alunos para o exercício do intelecto e do raciocínio.

Medida que parece surgir para melhorar a seleção de alunos para ingresso no ensino superior é a do Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM, que busca avaliar o raciocínio do aluno, além de democratizar o acesso às universidades públicas. Esse novo método barra em bom volume o tecnicismo na formação de base, devendo ocorrer mudanças substanciais no ensino fundamental e médio, refletindo positivamente na qualidade do aluno que adentra nas universidades.

Em relação ao ensino superior propriamente dito, ainda não se observam medidas para modificar o quadro apresentado, cabendo especialmente ao aluno lembrar que o professor já se encontra no mercado ganhando a sua vida, enquanto que ele ainda precisa encontrar o seu espaço. Essa consciência deve fazê-lo agir, buscar seu diferencial, dedicar-se aos estudos e a leitura visando uma qualificação que pode vencer as barreiras do comodismo e dos defeitos do sistema de ensino.

Sobre o corpo docente é preciso uma maior profissionalização e controle das ações de ensino, envolvendo uma maior capacitação dos candidatos a docência, o que exige tanto uma titulação mais aprofundada quanto preparação prática de sala de aula, e o acompanhamento de seu desempenho pela instituição de ensino.

Quanto ao sistema, o mesmo deve procurar valorizar o magistério, o poder público ser mais criterioso quanto a abertura de cursos jurídicos, além de tornar obrigatório para as faculdades, inclusive as privadas, a adotar o ENEM como vestibular. Vedar o fornecimento de material didático para o ensino jurídico e aumentar a carga horária exigida dos alunos para as práticas de extensão como condição de conclusão.

Melhorar o ensino jurídico no Brasil requer um esforço conjunto, não sendo difícil implementar medidas que tragam verdadeiro avanço e que formem o profissional-pensador do direito, e não o técnico, que somente barra o progresso jurídico e social do país.


Bibliografia

LEITE, Eduardo de Oliveira. A aula em direito. In: João Bosco da Encarnação; Getulino do Espírito Santo Maciel (orgs). Seis temas sobre o ensino jurídico. São Paulo: Cabral Editora, 1995.

TRINDADE, André; MAZZARI JÚNIOR, Edval Luiz. Autonomia universitária e direito educacional. In: André Trindade (org); Paulo Ferreira da Cunha; Edval Luiz Mazzari Júnior (colab). Direito universitário e educação contemporânea. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.


Notas

  1. MICHAELIS. Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=academia.
  2. Diferentemente da responsabilidade aqui exposta, Eduardo de Oliveira LEITE responsabilidade apenas o docente, devendo ser analisada a partir da trilogia relacionada com os aspectos da concepção do ensino jurídico, preparo do corpo docente e dedicação à carreira de professor universitário (1995, pp. 18, 19).
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Sobre o autor
Michel Mascarenhas Silva

Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza-UNIFOR. Advogado. Professor da Universidade Federal do Ceará-UFC, da Universidade de Fortaleza-UNIFOR e da Faculdade Sete de Setembro-FA7.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Michel Mascarenhas. A responsabilidade do ensino jurídico no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2940, 20 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19584. Acesso em: 23 abr. 2024.

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